quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

Entre o fogo fátuo e o gelo frágil



Ela ligou só para elogiar, para dizer que a sessão tinha sido boa e útil. E eu que tinha sentido exactamente o contrário, que me tinha faltado a luz. Há pessoas generosas, capazes de coisas pequeninas que fazem bem aos outros, que têm esse dom de exprimir afecto. Outras, são incapazes de um abraço. O que nos torna quem somos? O que nos molda desta forma tão oposta? E como é que a vida nos muda? Que acontecimentos, pessoas e/ou experiências actuam na nossa mudança?

Lembro-me do meu pai, adorava andar abraçado a nós na rua, lembro-me de adolescente lhe tirar delicadamente o braço dos meus ombros, cheia de vergonha. Da minha mãe, hei-de lembrar o abraço quase só como o amparo que lhe dou na sua velhice, para a ajudar a caminhar. Entre o gelo e o fogo, cresci assim. Um fogo fátuo, um gelo frágil.

Não me lembro de telefonar a alguém apenas para lhe dar um elogio. Mas já fui capaz, embora tardiamente, de ligar para saber apenas como a pessoa se sentia e estava.

~CC~

11 comentários:

  1. Identifico-me tanto com o que escreve, ~CC~, e não estou a fazer género, é mesmo verdade.
    Textos curtos que geralmente me deixam a pensar, mas sem palavras para comentar como gostaria.
    Aconteceu com o Frágil e agora com este.
    Isto dos blogs é como nos livros: há escritores que leio e não me dizem nada, e há outros que me deixam ficar parada a pensar no que acabei de ler e me fazem voltar atrás para reler e reler e (re)reler :)

    Não sei o que torna as pessoas assim tão diferentes umas das outras, todas pensarão que têm razões de sobra para serem como são. Será que é a vida que nos torna mais egoístas e indiferentes, ou isso já nasce connosco?
    Não sei!

    Abracinho, ~CC~.
    🌹

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    1. Maria, as suas visitas são as de uma amiga que aparece para o chá, sempre um prazer bebericar consigo enquanto as palavras se soltam vagarosas. Obrigada por vir.
      ~CC~

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  2. Não sei se já liguei a alguém só mesmo para elogiar. Custa-me falar ao telefone e é quase raro fazê-lo. Não entendo os elogios como elogios, enaltecer algo que é propriedade de, ou feito por alguém. Antes os vejo como verdade necessária, algo que o outro fez e me agradou; a minha gratidão expressa-se dizendo-lhe isso mesmo. O elogio de que falo é retribuição. A maioria de nós não é muito dada ao elogio, CC. E outros cultivam o elogio fácil (em blogues por exemplo, basta escrever palavras como maravilhoso, extraordinário, adorei...), mas o elogio fácil é como escrita de lápis que o tempo apaga e em que só os tolos acreditam. E outros vêm pelo lado oposto, são críticas de quem gosta de nós e quereria que ninguém tivesse nada a apontar-nos e o mundo nos achasse o máximo. Há que saber distinguir.
    E no entanto elogios sinceros - ou pelo menos oportunos - fazem falta. Bom Dia:)

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    1. Bea, o elogio fácil é o oposto do que nos sai cá de dentro e não é fácil de dizer, exactamente por vir tão de dentro. Eu fico meio sem jeito a dar e a receber, restos de uma timidez que me acompanhou muitos anos.
      ~CC~

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  3. Sou homem de afeições (há algum tempo que a palavra afecto me não soa), contudo actualmente limitada a festas em cãezinhos. A minha filha, quando mais tenra, era como a CC, desviava-se, não sei porque raio de pudor. Com crianças, evito, não me vão os progenitores confundir com pedofilia pelo que traduzo as "festas" e carícias em palavras e a uma leve passagem da mão pela cabecinha.
    O pudor é tramado e para o qual não apetece agora estender-me, mas dava para tese.

    Tendo a concordar com a Bea no concernente ao elogio. No aplauso fácil, mesmo sincero, há que distinguir o que é isento do que é meramente afectivo, até porque a ambiguidade laudatória tolhe o artista, deixando-o cúmplice dum equívoco que a gratidão denuncia.

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    1. "O pudor é tramado" - acho mesmo que devia aprofundar Joaquim. Penso que sim, por um lado é tramado, por outro é protector - daria uma tese, mas também belas histórias. Quanto ao elogio, como a tudo na vida, é trabalho nosso distinguir. E dar.
      ~CC~

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  4. Penso muitas vezes que deveria elogiar mais e melhor, mas não me é fácil. Isto em contexto interpessoal não mediatizado, com colegas de trabalho, por exemplo. Também me incomodam certos elogios que sinto exagerados e interesseiros. É bom quando se reconhece a sinceridade do elogio que a CC aqui relata.

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    1. Em Portugal temos falta deles, dos sinceros, claro:) Nas famílias, nas empresas, entre amigos, no amor...
      ~CC~

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  5. talvez nos falte a todos mais afectos... parece que a interacção com máquinas desinibe as pessoas, mas as limita a essa forma. um dia seremos objectos de estudo :)

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    1. Acha? Talvez...Eu acho o futuro absolutamente incerto, não o consigo adivinhar, mas sim pode ser a tecnologia a tomar conta de tudo...
      ~CC~

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  6. Bolas, Joaquim, que inspiração profunda.
    Bom dia:)

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