sábado, 24 de abril de 2021

Desilusão, talvez a primeira.

 

Ele saltava o muro mas eu saltava mais vezes.

O meu quintal era caótico, tinha duas grandes mangueiras, muita terra livre e bichos ocasionais.

O dele tinha cimento, uma enorme gaiola cheia de pássaros, muitos vasos com flores, nenhuma terra, algumas árvores pequenas que não recordo se davam frutos. O quintal dele era lavado com água e lixivia, cheirava sempre a limpo e a organização.

Eles eram dois irmãos, um deles sempre adoentado, o outro vibrando de saúde, olhos esverdeados e caracóis, sorriso pronto, muita vontade de brincar aos médicos.

Um dia o irmão doente quis saltar o muro com o irmão para o meu quintal. Tudo correu absurdamente mal, a queda, os gritos das nossas mães, e o menino que por causa da queda ficou cada vez mais doente. Nunca mais espreitámos por cima do muro, ora um chamando, ora o outro chamando. Uns tempos mais tarde as portas e as janelas fecharam-se, nunca mais os vi, nem a ninguém da família. Não sei se pensei que o menino doente tinha morrido ou se morreu mesmo, mas achei que tinha a culpa também tinha sido minha.

E do meu amigo nunca mais nada soube. Tinha sete ou oito anos, a desilusão de amor, talvez a primeira.

~CC~




4 comentários:

  1. Pode ter sido a primeira desilusão de amor, mas há certa ternura em contá-la e, sobretudo neste caso, e apesar do que diz, sem culpa.

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    1. "sem culpa": agora acho que já sem, processei, mas atormentou-me um bocadinho a infância.
      ~CC~

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  2. Como a Bea diz, há uma certa ternura no contar desta desilusão de amor; perdoe, mas até apetece ouvir mais...
    Há milhares de vidas silenciosas, furtivas como as dos animais, irreflectidas como as das plantas, indiferentes como as da multidão, desatentas, mas parece-me que a sua não:
    "De vez em quando, nos momentos mais improváveis, quando ando a correr de um lado para o outro, dou com uns olhos de homem fixos em mim. O meu primeiro pensamento costuma ser que há algo errado comigo, que devo ter o casaco vestido ao contrário (o que acontece com frequência), que deve ser alguém que não estou a reconhecer (estou sempre a encontrar gente em todo o lado) , ou que é uma pessoa que deve precisar de ajuda para alguma coisa (defeito profissional). Nunca penso que aquele homem está a olhar para mim como um homem olha para uma mulher, que estou a ser olhada como mulher, e não estou a falar daqueles olhares marialvas centrados em partes do corpo salientes, mas sim naquele olhar que é todo ele um interesse centrado em nós, um olhar que também nos olha para os olhos".
    ~CC~

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    1. Um dia, quando eu precisar, sei a quem recorrer para as minhas memórias, o Joaquim tem essas coisas mais presentes do que eu própria as tenho, como agradecer essa atenção?! Não sei, dizendo simplesmente obrigada.
      ~CC~

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