domingo, 19 de maio de 2024

Unicórnios

 

Os dias melhores são aqueles em que me deixo ficar apenas mais um bocadinho na esplanada de um café qualquer, espreguiçando o tempo que não tenho.

- Pai, eu nunca vi unicórnios, podemos ir ver?

O pai atrapalhado respondeu: agora vamos ver a exposição dos golfinhos, outro dia vamos ver se há uma de unicórnios. 

Chegue aqui senhor pai...Ou explica à criança que eles, como animais fantásticos, só existem na nossa imaginação como as fadas e os duendes ou então diz à criança que contacte o actual presidente da Autarquia Lisboeta pois é um dos maiores especialistas no assunto, embora ela possa vir a ficar desiludida quando perceber que afinal é qualquer coisa que rima com biliões e não com seres mágicos e alados. Eu, se fosse a si, não estragava tão cedo o mundo infantil.

~CC~

sábado, 18 de maio de 2024

Lugar de memória

 

Era para ser mais uma pousada, mas venceu o lugar de memória. Se não os tivermos, tudo será ainda mais difícil. 

Tenho sentimentos ambivalentes face às visitas guiadas. Se não tiver ninguém, tenho a sensação de que vagueio sem aprofundar, se tenho um guia, falta-me o deambular, o gastar tempo onde o meu interesse recai. Foi também assim no sábado passado no forte de Peniche, hoje museu da Resistência e Liberdade. 




Há coisas que nós precisamos de ouvir deixando que eles entrem no nosso coração por um lado que só nós sabemos, o passado quando fala connosco tem que ser em diálogo íntimo. E o nosso agradecimento surge quando somos tocados pela dor do outro, esse caminho em que alguns deixaram a própria vida.




Uma cela a fechar-se é para mim um dos piores ruídos que este mundo pode comportar. 

Eu nem fecho portas.

~CC~


quinta-feira, 16 de maio de 2024

Não chegou Maio

 

O vento trouxe o pólen primaveril que se infiltrou na minha exaustão. 

O corpo obrigado pelo dever a levantar-se diariamente parece que irá ali desfazer-se num canto do caminho. Vi o meu rosto no espelho e não o reconheci de tão gasto e cansado.

Sobrou da alegria apenas o casaco de muitas cores e a echarpe rosa e essa pequena chama lenta que nunca me abandona e é por certo o que me ficou do genes maternos e da infância inocente.

Não foi ainda Maio, aquele que me traz os primeiros passeios de pés nus na orla do mar.

~CC~


sexta-feira, 10 de maio de 2024

Esperança

 


Tenho uma caixinha de esperança.

Não é bem, é quase. Nela deposito todos os brincos que ficaram solitários. Fico à espera que o par apareça algures, que volte para mim. Hoje aconteceu. E era um dos brincos de que mais gostava, quase não queria acreditar que estava outra vez a formar aquele par e que os poderia usar. Um par oferecido, o que em si é também raro. 

Para quem só soube o que era usar brincos aos 42 anos isto tem sabor, fui furar as orelhas com um grupo de adolescentes da família.

~CC~


terça-feira, 7 de maio de 2024

Nada se conserta sozinho

 

Volto às salas de aula dos meninos pequenos no âmbito deste meu ofício que se desmultiplica, o que mais aprecio nele, esta possibilidade de deambular por muitos mundos.

Ainda estou impressionada com o menino de ontem. Costuma ser intempestivo e fazer birras, zangado com a vida. Muito inteligente, astuto, sensível. Vinha de cara amuada logo ao início da manhã e assim esteve, bastante calado ao contrário do que costuma acontecer. A professora chamou-o perto de si e perguntou-lhe o que se passava. E ele chorou pois tinha feito chorar a mãe logo pela manhã, fê-la zangar-se por causa da roupa que queria vestir (um clássico). E pediu para telefonar para casa e pedir desculpa à mãe, caso contrário naquele dia não ia cumprir nenhuma tarefa bem. Só oito anos...e que lição para tantos adultos que não sabem usar a palavra, nem entristecer com a tristeza que nos outros provocam, andam sempre em frente, nunca voltam atrás para reparar nada, acham que tudo se conserta sozinho.

Que se conserve sensível, imune à masculinidade tóxica que parece estar outra vez na moda, é ver como ela grassa entre políticos e figuras públicas.

~CC~


domingo, 5 de maio de 2024

Cuidarei do teu lugar em mim

 

Mais tu

Visto-lhe os casacos que me ficam invariavelmente grandes, pois no fim da vida ela tinha diminuído em altura e em peso, mas não deitava a roupa fora, cuidava dela como ninguém, lavando à mão e separando cada coisa por cores.

É o primeiro dia da Mãe em que não lhe oiço a voz. Era ela quem me prendia a estas convenções, sabendo que delas eu não sou adepta, perdoava-me a falta de fascínio, mas pelo menos o telefonema tinha que existir. Ela gostava muito de rosas e de orquídeas, enquanto eu prefiro as flores do campo e as de jardim, as estrelícias, os girassóis, as flores sem nome ou cujo nome não sei. Sendo duas mulheres tão diferentes, não sei o que nos aproximou tanto nos últimos anos. Talvez tenha sido eu, tardiamente a reconhecer-lhe o esforço de uma vida e o desamparo em que ficou, talvez a sua solidão tenha tocado na minha própria solidão. Dei-lhe a protecção que ela não me deu, perdoando-lhe ausências, omissões e escolhas menos boas. E comecei-lhe a achar-lhe graça, uma coisa fundamental para nos ligarmos a alguém, não é apenas o laço de sangue que o faz.


Mais eu


Cuidarei do teu lugar em mim.

O casaco castanho fica-me tão mal, tu nem deixarias que o usasse, com o teu fino sentido estético. Mas olha, sou eu e sendo assim também me importa que me cubra toda e não tenha que levar o guarda-chuva neste dia em que ela cai amiúde. 

~CC~

sexta-feira, 3 de maio de 2024

Mais do que...


 

Umas pedras retiradas da terra. Uns paus apanhados pelo campo. A infinita paciência de um artesão. Tenho a certeza de que não lhe chamavam reciclagem, era apenas a lenta sabedoria de aproveitar o que  estava ali à mão. A peça era única e mesmo assim quase sem custo. Tanta coisa deixada para trás, resta saber o que ganhámos, o que aprendemos a fazer, o que construímos. Às vezes penso no que acontecerá quando a tecnologia estourar no centro de qualquer pandemia ou efeito semelhante. O que saberá cada um fazer com as suas mãos?! De salientar que isto não é apenas sobre o outro mas também sobre mim própria, como aliás quase tudo o que escrevemos. Luto para as minhas mãos saberem fazer muito mais coisas do que apenas disparar letras no teclado, luto para dar abraços reais, com cheiro e tudo.

~CC~


quarta-feira, 1 de maio de 2024

1º de Maio, dedico-o às seis Nepalesas

 


Aos quinze anos comecei a trabalhar durante as férias (na altura "grandes") num restaurante. O patrão pagou-me um mês em dinheiro pois no mês a seguir saí de lá para outro trabalho numa roulotte de praia. Nesse mês experimentei o assédio dos clientes e o ainda mais sistemático o do filho do patrão. Tudo se dizia a uma miúda de quinze anos sem posses, era presa fácil. Outras começaram muito mais cedo que eu e foram sujeitas a muito pior, sem opção. Na roulotte já era quase dona do meu tempo e do que fazia e já tinha aprendido a fazer cara feia aos clientes mais inadequados.

Nunca mais deixei de trabalhar desde essa altura, acumulando com os estudos, primeiro naquilo que agora se designa de trabalho parcial, depois no precário e por fim com contrato de trabalho, ainda assim durante muitos anos a termo certo (anual). Sobre assédio e pressão no mundo laboral vi muitas coisas e sob várias formatos e batalhei para não me tornar vítima e muito menos agressora, mas não é fácil. Ao mesmo tempo fui fazendo coisas que me deixavam grata e feliz.

Passamos metade da nossa vida no trabalho e para muitos de nós é uma metade muito dolorosa, seja pelas condições de trabalho, seja pelo vazio que não preenche, seja pela falta de identificação. Quase tudo no mundo do trabalho necessitava de uma revisão profunda. Para já começaria por diminuir o tempo que lá passamos e por mudar para a reforma gradual, em vez de abrupta, quando a saúde já não dá a muitos de nós grandes tréguas.

Este ano tenho em particular no meu coração as seis jovens Nepalesas que entrevistei numa zona rural e recôndita deste país e que trabalhavam num lar de idosos, a sua dignidade, o seu sorriso e a forma como responderam quando lhes perguntei como comunicavam com os idosos e elas usaram a mímica para representar como o faziam.

~CC~