segunda-feira, 30 de julho de 2018

Oxigénio




Respirar é mais do que sorver ar.

É quando conseguimos que o oxigénio tenha um alto grau reparador, nos limpe até ao fundo.

Por isso há que parar, deixar tudo para trás como se não houvesse amanhã. Não importa para onde se vá, pode ser no interior da nossa casa, embora mais difícil.

Para mim uma cidade diferente, um acordar no campo, a primeira vez que vejo o mar naquela praia, uma noite de lua, tudo isso é feito desse oxigénio reparador.

Sou daquelas que deixa o computador em casa, um dia lá mais adiante, mediante algumas circunstâncias favoráveis, deixarei também o telemóvel.

~CC~

sábado, 28 de julho de 2018

O outro, sempre esse mistério


Foi por causa deste post dela que me lembrei de ti.

Não foste a primeira lembrança que essa pertenceu ao rapaz sobre o qual teci o meu comentário. Foste a segunda.

A tua mão suada que pingava literalmente um amor que não tinha para te dar. Não sei se fui generosa deixando-a ficar na minha durante todo o passeio pela serra de Sintra. Queria tirá-la, queria dizer-te que não a sentia, mas não conseguia. Não guardei nenhum dos poemas que me escreveste e, contudo, deves ter sido dos únicos ou mesmo o único a fazê-lo. Eras o nosso patinho feio, a tua inclusão no grupo era feita com pinças, metade tinha pena, outra metade era indiferente. Penso agora que pouco sabia de ti, apesar de estares tão ligado a mim. 

Para onde é que a vida te terá levado?

Pouco depois desse episódio de Sintra, desapareceste quase de um dia para o outro. Não te procurei por não te querer fazer sofrer? Ou terei ficado aliviada?

Nunca mais me cruzei contigo e nem consigo lembrar-me do teu rosto, mas tenho a clara sensação da tua mão suada presa à minha e da tristeza que senti. O outro, sempre esse mistério.

~CC~

terça-feira, 24 de julho de 2018

Quando o passado bate à porta



O passado pode ter qualquer coisa de futuro. O passado às vezes bate à porta.

Foi isso que senti naquela noite, na sociedade recreativa, a ouvir jazz. Tinha sido ali que 60 anos antes a minha mãe tinha dançado no salão de baile e concorrido ao concurso da mais bela da terra. Saí com o cartão de sócia quente na carteira. No corredor a exposição era sobre os refugiados e na plateia quase tantos estrangeiros como portugueses.

Nada sabiam eles e elas sobre este futuro 60 anos depois.

Eu também não consigo adivinhar o que será este lugar daqui a 60 anos.

Conseguiria, contudo, passar os próximos seis a vir aqui todos os sábados ouvir música, não obstante ser moça de poucas rotinas, às vezes apetece-me ter um lugar onde ir sempre. Lembro então a leitaria no Rossio em Lisboa onde, jovens que éramos, durante três anos nos encontrávamos sempre, sem telemóvel para combinar, sem telefonemas prévios, sem saber quem encontraríamos, era ali o ponto de encontro e alguém havia de aparecer. Sou pouco dada à saudade das coisas. Mas de vez em quando infiltra-se no presente alguma coisa de um outro tempo e fica ali a durar um tempo, até que o meu pensamento parta em busca de futuro. O presente, esse nem sempre o consigo pensar e sentir, é tão rápido.

~CC~




domingo, 15 de julho de 2018

Desconforto


É estranho que ser bem tratada num serviço público me tenha causado tal desconforto. E note-se, não sou das que acham que todos os serviços públicos são maus, bem pelo contrário. Tal mal estar só é explicado pela diferença de tratamento que usufrui face aos outros cidadãos. É verdade que eles procuravam um serviço que não era o mesmo que o meu, que o meu estava antecipadamente marcado e por isso pude entrar à frente da enorme fila que às 8h30m da manhã já esperava por tirar a senha. 

Mas esses motivos não foram suficientes para me eliminar o desconforto associado ao tom de voz usado para comigo e para com os outros, nem ao tratamento por senhora professora, nem às mil desculpas usadas para não conseguir tirar as minhas impressões digitais a não ser à 9º vez no uso da máquina. Não era esse tratamento que estava errado, reflecti depois, mas o que era dado aos outros. Vivemos num país ainda tão parolo, em que os direitos humanos se resumem a posters que se colocam nas paredes e tão, mas tão convencido do contrário, que é humanista, tolerante e tal.

Todo o dia fiquei com o estômago às voltas (ah, é verdade que não o tenho mas vale a metáfora) com o aviso colocado na parede: os acompanhantes devem ficar na sala de espera. Ora se o acompanhante for um bebé, como é? E mesmo uma criança com 5/6 anos?

~CC~

terça-feira, 10 de julho de 2018

Mesmo em doses pequenas



Registei o segundo banho de mar, bem gelado, a só permitir entrar e sair quase no mesmo minuto. Mas com ele tive a certeza do poder regenerador da água salgada, do bem que se infiltra pele dentro e me chega às células que determinam a satisfação, o bem estar e a alegria. Li, deitada na areia, três contos peregrinos do Gabriel Garcia Marques, maravilhada com a sua mestria no uso da palavra, do humor e da cultura dos lugares do mundo. Há muito que não lia só por prazer.

Registei ainda o modo como a família se reuniu quase toda, atravessando cinco deles o atlântico até aqui. Comemos, bebemos, rimos, conversámos, dormitámos. E tive a certeza que aqueles momentos eram também dopamina pura, uma injecção transmissora de alegria ao sistema nervoso central, com a vantagem se aí se depositar como uma pequena reserva, talvez a usar em dias mais sombrios.

Eu e ela provámos à vez fatos de banho, invertendo a ordem, ora era ela a provar e eu a trazer, ora o inverso. E é dessas coisas tão pequenas que nasce a cumplicidade e agora que ela se foi por durante mais uns dias ou semanas, nascerá também a saudade. A saudade é vida pura, faz o sangue circular para se entristecer e depois para se extasiar.

E a paragem de apenas alguns momentos no ritmo intenso mostrou-me mais uma vez o quanto estou a desperdiçar o tempo a trabalhar. À procura de caminhos para poder abrandar, como quem procura saber qual o fusível que pode desligar e ainda assim manter a luz acesa.

A alegria pode vir assim, mesmo em doses pequenas, é a ela que me agarro.

~CC~






terça-feira, 3 de julho de 2018

Arrepio



Estendi-lhe uma face para a cumprimentar com um beijinho e depois a outra, foi aí, nesse pequenino momento de inclinação para o segundo que percebi que ela estranhou e quase rejeitou pois só me ia dar um beijinho. E foi também nesse curto momento que me arrepiei pois tomei consciência que eu tinha nascido num berço e ela noutro e que entre nós havia um oceano. Nessa coisa tão simples, intrometeu-se a distância, o gelo, algum desprezo. 


~CC~

domingo, 1 de julho de 2018

Das perguntas (a mim)



Era uma miúda com uns oito anos, belos olhos redondos pretos, tom de pele de canela e cabelos longos, muito escuros. Ia pela mão de um adulto, talvez o pai, homem entre os 30 e os 40 anos. Passei ao lado deles e pude ouvir claramente a pergunta dela:

- Quando é que eu posso usar a jillaba?

Levei comigo a pergunta dela por todo o resto do caminho que fiz. Como é que uma criança a viver em Portugal, com um cabelo tão espantosamente bonito, pode um dia querer cobri-lo? Como é que querer crescer pode ser um desejo em vez de gozar espantosamente a liberdade da infância? Lembrei-me então das miúdas pequenas com as unhas pintadas, do seu desejo de pintar unhas das mãos e dos pés. Pensei em qual das coisas me chocava mais, se uma coisa que estava dentro das referências culturais ocidentais ou uma que não estava.

E cheguei à conclusão de que uma e outra me provocavam grande desconforto.

~CC~