domingo, 30 de outubro de 2022

Casa

 

As minhas memórias da escola são muito raras, às vezes penso que só iniciei a escolaridade no Ensino Secundário, pois desse período as lembranças são vivas e intensas. 

Não recordo aulas, professores ou matérias. Não me lembro de nada do que aprendi. Tenho a ideia de que escrevia num diário. Tenho a ideia vaga de que uma vez a professora de Português me deu os parabéns por um texto e o li em aula. 

Dos pré fabricados em que estudei do 7º ao 9º ano lembro, porém, um dia de chuva. Eu e a minha amiga, direi mesmo grande amiga, decidimos que a deixaríamos cair sobre nós numa dança irreverente. Dançamos assim patinhando nas poças do pátio e abrindo os braços, rindo. Eu acho que também chorei. Os colegas chamavam-nos loucas, os professores pouco se importavam, à excepção de uma professora que nos chamava para dentro. Acho mesmo que foi depois desse dia de água a cair e a sair por todos os poros que voltei a ter memória. Foi o meu primeiro corte com a mágoa, a tristeza profunda em que sozinha vagueava. Talvez tenha aprendido a dizer casa e tenha sido esse o milagre.

~CC~


quinta-feira, 27 de outubro de 2022

À tona e à toa

 

Esta sala de yoga é pequena, bem cheirosa, completamente feminina.

Oiço a professora falar sobre as deusas, os equinócios, o valor da saudação ao sol e à lua, o modo como ela põe um acento vagoroso e emocionado em cada coisa que invoca. E tenho vergonha da minha infinita descrença, de estar ali tão só e apenas para sentir partes do meu corpo que já me esqueci que existiam. Por isso sou apenas uma aluna medíocre, ontem mesmo, incapaz de me concentrar como devia, troquei várias vezes a direita e a esquerda, virando ao contrário do que toda a gente virava. Apeteceu-me, pela primeira vez, desistir. Contudo, não o farei. Incapaz de ir ao fundo de um fundo de que não conheço, tentarei nadar à tona, respirando e sobrevivendo.

~CC~


domingo, 23 de outubro de 2022

Palavricas

 


Gosto desta flor, em particular desta canção. Um pescador capaz de pescar as nossas dores com palavricas de amor, que bonito Edith.

Ideal para um domingo em que o sol espreitou um bocadinho.

~CC~

sábado, 22 de outubro de 2022

À escuta

 

É talvez das minhas melhores estudantes. Gosto genuinamente da sua honestidade.

Vejo-a do outro lado do écran mais de uma hora, pediu-me para a ouvir. Limpa frequentemente as lágrimas enquanto fala. Sinto a cada momento que era preciso desfazer um por um todos os mitos que a fazem sofrer. A pressão tremenda do sucesso escolar, a lógica do trabalho ter que inspirar felicidade, essa ideia de realização profissional com a qual todos crescemos, a trágica fantasia de que queremos de alguma forma marcar o mundo e não nos diluirmos na massa anónima (algures, por ali o célebre empreendedorismo), tudo acompanhado por não conseguir escolher, por não saber o caminho. Tudo o que eu digo tem os anos e anos que ela não tem, por isso temos dificuldade em compreender-nos. Repetidamente lhe digo que só tem 23 anos e o mundo ainda terá múltiplos caminhos, múltiplas escolhas e raramente poderá saber se fez a certa, mais vale aprender a gostar da que fez. Digo-lhe que é bom gostar de tantas coisas, poder simplesmente ter caminhos, há quem não veja nenhum. Tento sobretudo diminuir-lhe o sofrimento.

Como terminamos sem que lhe veja aparecer um sorriso e me sinto extremamente cansada por ter tido uma jornada longa, eu própria duvido que tenha tido algo êxito. Ainda assim, sinto o conforto da sopa quente e de ter tentado. Afinal talvez seja isso que me diferencie dela, chega-me perfeitamente o consolo das coisas pequenas que os dias me trazem. Já não sofro por ser apenas alguém na massa anónima, aceito-o e tento ver nos meus semelhantes, sobretudo nos mais simples, nos mais desprotegidos, a grande companhia de quem com eles atravessa a jornada. E é nesse laço que encontro grandeza.

~CC~




quinta-feira, 20 de outubro de 2022

Cinzento-amarelo

 

Tento habituar o corpo à humidade, dizendo-lhe para não se manifestar assim com dor, a água é um bem precioso. Falo com ele para lhe dizer que não tarda volta o sol e como choveu poderemos depois beber dele sem remorso. Estes diálogos entre o cinzento necessário e o amarelo amado não são fáceis.

~CC~


sábado, 15 de outubro de 2022

Aproveitá-lo

 

Entrei na papelaria do bairro e o senhor conversava com a senhora que estava antes de mim. Perguntava-lhe se já tinha ido ao cabeleireiro agora renovado, e ela que sim, que os clientes sempre esperam e voltam. É uma questão de apoio, disse ela. A seguir entrou alguém com voz forte: preciso de moedas! Rimos todos, e eu comentei-lhe a voz, recomendando-lhe um coro. Também rimos, e o senhor da papelaria disse: tem que ir lá à frutaria deste senhor, não há melhor. Agora rimos eu e o senhor da frutaria pois sou há muito cliente. Apareceu a mulher do senhor da papelaria e pediu-lhe que lhe guardasse um bom melão pele de sapo. Passe lá antes da uma, respondeu ele. Talvez consiga lá passar também, disse eu. E ali ficámos a conversar sobre fruta entre jornais e raspadinhas.

Talvez esta seja a única coisa que agradeço à pandemia, mostrou-me que morava num bairro e devia aproveitá-lo.

~CC~

quarta-feira, 12 de outubro de 2022

Sim, o que queriam?

 

A determinada altura o moderador, depois de ter interrogado brilhantemente os autores sobre como convivem com um poder inútil (a poesia) e ter lido um poema de cada um dos presentes, desfez-se do seu tom (mais) intelectual e colocou-lhes as perguntas que as filhas lá em casa gostam de fazer à hora do jantar. O que salvavas de uma casa em chamas? Se tivesses um superpoder, qual escolhias? Também gosto de me divertir com essas coisas.

E então, qual seria o vosso superpoder?

É que ele fez batota e disse que seria a liberdade, a mais humana das construções.

Ora, superpoder é algo inatingível que o ser humano não consegue por si próprio obter. Sim, sim, o que queriam?

~CC~

domingo, 9 de outubro de 2022

Vertigem e pausa

 

As horas fogem e fogem e não consigo agarrá-las para lhes encaixar tudo o que preciso. 

Ainda assim, houve lugar a encontros comovidos com pessoas, cidades e aldeias. Nessas alturas esqueço-me, deixo-me ficar, respiro. É o coração que bate em cada pausa.




~CC~