segunda-feira, 30 de maio de 2022

Casal

 

Talvez entre quarenta e quarenta e cinco anos. Ele pediu uma coca cola XL, ela um corneto de morango. Não trocaram palavra, cada um entretido a saborear a sua escolha, olhos deitados ao rio, meios sorrisos. Depois levantaram-se, deram as mãos e seguiram caminho.

Acho que nunca perceberei os casais, nunca dominarei o ingrediente certo para a sua manutenção, mas suspeito que deve haver uma relação qualquer entre os alimentos consumidos por aqueles dois, quem sabe o segredo.

~CC~

sexta-feira, 27 de maio de 2022

É a vida, devagar, devagarinho

 


Como ela, a mais velha lá na cama de hospital, voltar devagarinho à vida.

Com ela, a Cátia, ontem, aqui, cidade que abracei. Com a mesma ambiguidade, a mesma incerteza, essa viagem entre a tristeza e a alegria que fazemos tantas vezes, como se num momento fosse a lágrima a descer, e noutra um belo sorriso, ou, como ela diz, sem jeito para drama ou comédia, há que saber viver no melhor dos dois planos.

É a vida, devagar, devagarinho.

~CC~





domingo, 22 de maio de 2022

Ainda connosco

 

Rompendo medos, consegui vê-la. O equipamento é impressionante, como é que os profissionais aguentam aquilo horas a fio. Depois de 15m eu mal me aguento e faço um esforço enorme para conseguir suportar.

Agarro-me aquela parte dela que é ainda a minha mãe, nunca lhe vi os olhos tão verdes, de vez em quando ainda capazes de exprimir sentimentos. outras opacos, longe. Agarra-nos a mão. E é só. Sabemos que sofre e tudo tentamos para diminuir isso mas sabemos perfeitamente que não o conseguimos.

Os sentimentos são extremamente ambíguos, entre o querer que fique connosco mais tempo para usufruir um bocadinho do que ainda gostava da vida e nós dela e a vontade que não sofra mais e que a deixemos ir (sabendo que isto é que não está nas nossas mãos mesmo que o quiséssemos). No mesmo dia, às vezes na mesma hora, experimento a esperança na recuperação vagarosa mas plena e o desalento por imaginar que nada será como antes e que talvez ela preferisse partir. Penitencio-me sempre que não tenho esperança.

A casa, o vazio desta casa.

~CC~




sexta-feira, 13 de maio de 2022

Temos que voltar lá

 

Depois de três doses da vacina, dois confinamentos e a crença cada vez mais enraizada em todos de que a pandemia já tinha passado, o contágio aconteceu sem percebermos como. O vírus não se instalou apenas no teu corpo já cansado de 93 anos, entrou como uma avalanche.

Por ti farei esse acto irracional. Uma vela de uma descrente num santo que não é santo. Eu serei crente e ele será santo. E poderei novamente ouvir-te dizer que tens saudades minhas, há tão pouca gente a dizê-lo. Com o tempo aprendeste a exprimir essas emoções, coisa que te faltou durante tanto tempo. Eu também tenho saudades tuas, de me fazeres escolher entre a écharpe a, b, c ou d para uma simples saída tua ao café. Faz agora um ano levei-te ao fim da tarde a comer caracóis e meteste conversa com todas as mesas da esplanada, foi uma festa. Temos que voltar lá.

~CC~ 

quarta-feira, 4 de maio de 2022

Anseios

 

Meses amados: Abril, Maio e Junho.

Como me estou a esforçar para vos conjugar com esperança.

~CC~

terça-feira, 3 de maio de 2022

Para sempre meu mestre

 

Tive um mestre quando tinha apenas 16 anos. Um mestre é alguém que nos espanta, nos revira de alto a baixo, nos olha nos olhos, nos faz ver o mundo de outra maneira. Foi cedo demais para tal. Nunca mais consegui encontrar outro que se lhe comparasse. Talvez o tenha procurado em cada professor/a, em cada orientador/a académico, em cada encenador/a, em cada cruzamento na comunidade, na vida. Não devemos ter mestres tão cedo, todos os outros se lhes comparados, são apenas uma imagem. Cedo percebi também que estava longe de ser perfeito, pelo contrário, ele apresentava-se no esplendor da sua imperfeição e isso, contudo, não o diminuía. Se das minhas palavras depreendem que era uma jovem apaixonada, longe disso, a mestria é todo um outro amor que não passa por paixão ou desejo. Era-lhe grata não só pelo que ele me mostrara do mundo, como também pelo que me mostrara de mim própria, sendo que eu, na minha infinita timidez, estava longe dos holofotes dos olhos dele, mas importava-o na justa medida em que todos os jovens daquela sala lhe importavam. Era confortável para mim não ser o centro, isso permitia-me observá-lo melhor.

E tantos anos depois voltei a ouvi-lo, condecorado pelo Presidente da República e senti quase o mesmo maravilhamento adolescente. Diz ele que se levanta cada dia contente por existir, grato por mais um dia de vida. Tal e qual o que eu sinto meu mestre, isso até nos dias maus, imaginem nos dias bons

~CC~