segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

De alguma forma lá



Terei o jantar de namorados mais original de sempre. Será amanhã, em pleno hospital, com dois amores e não um, já que amor inclui, penso eu, mais do que um companheiro ou companheira, são aqueles que amamos. Não fora a impossibilidade, faria mesmo lá um jantar de amigos, de muitos abraços. Assim, ficarão muitos por dar.

A importância das coisas, destas coisas dos dias x e y, é muito relativa, eu vou variando, permeável que sou a tudo o que me rodeia, não lhe fico completamente indiferente mas também não lhe dou atenção especial, à medida que cresce o intuito comercial, o meu desprezo aumenta. 

Desconheço se o hospital terá ementa original para o dia, provavelmente o ambiente hospitalar, imune a quase tudo, também o será a estes rituais. Desejo apenas que o cirurgião beba com moderação na noite anterior, para que as suas mãozinhas possam acertar nos sítios certos.

Se tenho medo?! Não lhe chamaria assim. O que me inquieta é a minha própria ansiedade, traduzida nesse pânico de estar em sítios fechados, onde outros têm mais controlo sobre mim do que eu própria. O exercício de pensar que esses outros estão ali não para me aprisionar, prender, roubar a liberdade assemelha-se a um longo e penoso jogo de auto domínio, coisa para a qual já demonstrei ter e não ter capacidade. Nessa noite que será longa, nessa manhã, bem cedo, terei que dar o melhor de mim. 

O amor, esse ingrediente, esse tempero, também de alguma forma fará parte.

~CC~


sábado, 11 de fevereiro de 2017

Paragem obrigatória (IV)



Foi este verão que conheci a Elena Ferrante, tão tarde mas ainda a tempo. Li os quatro volumes, cujo primeiro se intitula "A amiga genial" num instante. Apanhei a polémica em torno da identidade escondida dela e a sua dita revelação (que eu saiba, não se confirmou nada). Não sei se ela faz mal ou bem, tudo o que é escondido suscita ainda mais curiosidade sem dúvida mas ela está também no seu direito de não entrar nos festivais literários e outros eventos que trazem os escritores até ao público. Amei a escrita dela, ao mesmo tempo que me sentia muitas vezes enganada. Ela sabe do que falo, pois não há nada sobre o qual ela escreva melhor do que sobre os sentimentos contraditórios que nos habitam, como o amor pode conter ódio e o ódio pode conter o amor. A escrita dela prendeu-me mas nem sempre gostava dessa prisão, sentia muitas vezes que ela usava e abusava de um truque (habitual das telenovelas) para nos fazer ir de um livro a outro, a forma como cada um deles acabava deixava-nos sem hipótese de não começar a ler logo o seguinte. Foi assim que me emprestaram os dois primeiros e comprei logo os outros dois. Deixar o leitor arrasado no fim de um livro, absolutamente preso de saber mais, querer mais, é talvez obra de génio. Mas ao mesmo tempo é limitador da nossa liberdade, revelador das nossas fraquezas, é uma via directa para o lado voyeur que há em cada um de nós, sentia que esse jogo me irritava, que ela era tão boa escritora que não precisava de o usar.

Agora ofereceram-me "Escombros" e leio-o devagar, mais próxima dela do que alguma estive, embora não deixe de ser estranho ler um livro sobre dois outros livros (os primeiros) que eu não li. Mas gosto da ideia, por exemplo, se apanho um filme ou uma série a meio não volto para trás, gosto do jogo de tentar descobrir o que está para trás e se consigo entender só apenas a partir do meio. Este livro não é um romance, é uma viagem ao seu universo, ao que a faz escrever. Algumas das coisas que diz são como se fosse eu a dizê-las, são as minhas palavras.

~CC~




sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

Do que não sabem...




Exame a exame, cada um deles pede mais um, numa cadeia que me parece interminável. Sinto-me absolutamente escrutinada, vista por uma lupa fininha que vê tudo o que antes permanecia incógnito, silencioso. Há sempre mais qualquer coisa que está mal ou parece mal, há sempre que saber mais. Apetece-me dizer-lhes que não me acordem os monstros interiores que dormiam sossegados, que tanta inquietação não lhes fará bem. Que não me digam tanto, escondam qualquer coisa só para eles. Escapa-lhes, contudo, qualquer coisa que é só minha, uma alma meio partida, e dessa é que eu tenho que tomar conta. Eles aí não mexem, não querem mexer ou ignoram que temos mais que ossos, artérias, células. Dessa coisa de dentro, chamada pessoa fala-se quase nada. Trato dela só eu, ando a colar-lhe os cacos para ver se me sustenho e vou por diante.

~CC~

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

Humilhação suave


Vou lá às vezes. É um lugar pequenino e pouco atractivo mas com comida muito boa, sobretudo doces. Trata-se de um casal nas antípodas um do outro e aparentemente pouco comum. Ele cozinha, ela faz tudo o resto. Ele é extremamente comunicativo, ela calada, reservada. Ele fala com todos os clientes, fala sozinho e fala com muitos amigos que por lá aparecem ou que se tornaram amigos por lá aparecer. Normalmente diz coisas um bocado parvas, tem um olhar insistente com as mulheres e usa uns elogios sem grande graça, naquele género engatatão que a mim me passa ao lado. Ela tudo ouve e não liga, fixa o olhar em nós, fingindo-o inexistente. Ontem, com um amigo, dizia o seguinte:

- Uma mulher para me levar daqui tinha que ser muito especial. Mal por mal fico com esta.
- Mas ninguém está a falar disso, só de divertimento.
- Não, apaixonar-me isso sim, deixava esta por uma mulher especial.

Esta conversa era feita em voz alta, não como dois amigos que falam num canto, a mulher ouvia tudo, vi-lhe os olhos vagos, perdidos, a dificuldade em concentrar-se no pedido que lhe fazia.

Eu tinha-o deixado ali mesmo, saía porta fora e ele que tratasse dos clientes nesse dia...e já agora também nos seguintes. 

Esta violência suave é tão humilhante para as mulheres, não sei como aguentam. É com frequência que namorados e maridos elogiam outras à frente delas ou as comentam ainda com mais pormenor, fingindo que elas não existem, não estão a ouvir. Um sufoco este país marialva.


~CC~

terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

Breves (I)




Na minha rua passa tanta gente. Mas ainda não tinha passado aquele rapaz, usando o skate como guarda chuva.

~CC~

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

De olhos presos no tecto



Já não tenho lágrimas para chorar a tua tristeza, esta noite queria deitá-las e não conseguia, deixava ficar os olhos abertos presos no tecto do quarto e nesse branco passavam imagens das nossas vidas juntas. Foram muitas as vezes que te vi debruçada no negro dos dias mas nos últimos anos querias mesmo pendurar-te no sol. Depois chegou isto, este bicho ruim que te visitou primeiro e de forma mais grave. Via imagens no branco do tecto, a tua voz tão certinha a cantar aquele sorriso, nós nos anos 80, já tão adultas, ainda tão adolescentes.

Já não tenho lágrimas para chorar a forma como as nossas vidas se desagregam, como sobram pedaços que não sei colar. É uma tristeza que se cola ao corpo e faz com que o meu doa como se fosse uma parte do teu. Não poderei dizer-te estas coisas, nem estas, nem outras. Viajas para lugares tão longe, a minha voz já não chega lá, deve ser isto a que se chama impotência. Ainda assim eu sei, uma amiga é um calor que fica para sempre.

~CC~



sábado, 4 de fevereiro de 2017

Inverno em saldo



Reparo que as montras estão a mudar, enchendo-se de branco, tons pastel e flores. Noutros sítios a Primavera, que na realidade ainda parece tardar, disputa o lugar com o Inverno em saldos, já quase ninguém o quer. Ultimamente anda a fazer das suas, lançando vento e chuva. Mas eu ainda vasculho nele e trago um pijama por 8 euros, umas pantufas por 6, umas meias por um. Preparo-me para a operação, para a clausura que a seguir virá. 

Mas o meu olhar, esse de quando em quando fica preso numa roupa de flores, imaginando um vestido na brisa ligeira da tarde.

~CC~

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Sem...



O cabelo cresceu ligeiramente desde o dia 9 de Janeiro, dia em que cessei a quimioterapia. Mas ainda sou uma pessoa careca. No entanto, a libertação da bomba infusora, o regresso de alguma da minha energia, uma imersão temporária no local de trabalho, tudo isso quase me fez esquecer que estou doente, que aguardo a operação, que ainda não é o fim mas o terço do caminho.

Resultado: hoje saí pela primeira vez à rua sem boina ou chapéu, simplesmente esqueci-me.

Não sei se olham mais ou menos para mim como mulher careca ou mulher de chapéu. Talvez o olhar para a mulher careca contenha essencialmente pena, já para a mulher de chapéu, é mais incisivo, julgando talvez a excentricidade ou um eventual traço de classe (pensa que é alguma princesa ou rainha?). Mas na verdade, diria como Caeiro, nada sei do olhar dos outros, é só um olhar e mais nada.

~CC~