domingo, 30 de abril de 2023

Das orquídeas

 

Pensei muito tempo se as devia deitar fora. Trouxe-as do supermercado baratíssimas no ano passado, por esta altura. Precisava de ter flores em casa. Durante o Inverno elas praticamente secaram, até as hastes que tinham florido. Considerei as orquídeas irrecuperáveis. Contudo, sobraram a cada uma três folhas verdes, não pareciam estar mortas, nem vivas. Não fui capaz de as jogar para um caixote do lixo. Consultei a literatura e percebi um dos meus erros, tê-las colocado em vasos bonitos de barro. Fiz tudo mal, elas respiram e bebem pelas raízes, logo têm que estar em recipientes com luz e ser regadas de outra forma. 

Fiz tudo bem. Durante mais de um mês não lhes vi recuperação alguma. Mas no último mês, numa delas, saíram duas novas hastes das que tinham ressequido e devagar, muito devagar, começaram a emergir uns pequenos botões que vigio com desvelo. Na outra, a recuperação parece mais difícil, não tem as hastes, cortei as ressequidas e não o devia ter feito, mas parecem estar a emergir da terra duas novas hastes guia, não sei bem se serão.

Sempre que pensava em deitá-las fora, sentia que era a mim própria que deitava fora, alguém, neste percurso de doença, poderia ter feito o mesmo comigo, simplesmente desistido, ou mesmo eu própria.  E agora é como se a minha luta fosse a luta de todos os seres vivos, todos aqueles que têm algo a menos, algo diferente, um défice, um mal, um problema. Até a orquídea sem flor, é ainda uma orquídea, ficarei com ela.

~CC~


sexta-feira, 28 de abril de 2023

DEZ

 

Duas vezes gelado de pistachio, um com nota de cinco valores, outro de sete. Estão longe dos nove valores do fazedor de gelados que não posso visitar amiúde pois moro longe dele. Contudo, comi um de framboesa, nota 9. Mas quem é que faz dieta no Verão?! 

~CC~

quarta-feira, 26 de abril de 2023

Prémio Camões

 

O discurso do Chico Buarque deve ser lido na íntegra, é uma pérola. Uma das muitas que nos tem deixado. Para mim, o modo como ele soube se colocar na voz das mulheres é uma das coisas mais interessantes da sua carreira. Mostrou a voz das que eram dominadas e subjugadas, das que resistiram, das que brilharam, das que se libertaram. Falou de todas nós, das que fomos em algum momento, das que conseguimos deixar de ser, das que queremos ser. De quando em quando uma canção dele infiltra-se em mim como se fosse a minha própria pele e respiro-a e canto-a, mesmo que só para mim.


~CC~

terça-feira, 25 de abril de 2023

Para memória futura

 


Senti-me tão bem, tão livre. O ano passado foi excelente descer a avenida com os cartazes feitos pelos jovens, verdadeiramente brilhantes e diferentes, a companhia deles foi o ingrediente certo para vencer a tristeza que queria ganhar-me. Este ano foi muito bom nadar, absorver o azul, conversar, beber uma sangria frutada e fresca com um amigo e depois ir ver o filme que o João Botelho fez sobre o jovem Cunhal. Interessa-me a figura enquanto legado importante da nossa história, entender um homem que esteve treze anos preso e resistiu. 

E registei tanta coisa do João Botelho, tem frases únicas. Uma das que disse é que o 25 de Abril inaugurou a possibilidade de sermos um colectivo, nos sentirmos capazes de uma construção conjunta de alguma coisa. 

É verdade que a meio da tarde surgiu uma leve tontura e o cansaço e com isso veio o receio. Mas depois passou e pensei que resistir é vencer. 

~CC~

Nota: no filme, Margarida Vila Nova é brilhante a ler este poema da irmã (Maria Eugénia) de Cunhal sobre o filho ausente, depois dos 20 anos ele mal viu a família, notável é o perdão e a compreensão dela perante essa escolha.





domingo, 23 de abril de 2023

UM

 


É uma ria pequenina a de Alvor se comparada com a Ria Formosa. Os passadiços oferecem uma saída para várias praias, todas quase sem ninguém. Saí numa delas e fui pela praia até ao passadiço da outra, fazendo vários percursos em vez de um só de ida e volta. São planos e para quem gosta de mar, de flores marinhas, de aves, de vento. O azul do mar é deslumbrante, esse azul só se vê no Barlavento, Sophia descreveu-o como ninguém quando se apaixonou por Lagos. O valor destes passadiços foi de permitirem preservar cerca de 5km sem empreendimentos nem outros atentados urbanísticos, abundantes por aqui.

Meia hora na areia junto ao mar e o meu mundo pincelou-se de esperança.

~CC~



quinta-feira, 20 de abril de 2023

Lista para os próximos meses (mas depois vou querer mais, ok?)

 

- Caminhar nos Passadiços de Alvor 

- Visitar um amigo e uma amiga que há muito não vejo

- Perceber se o Alberto Manguel é tão interessante quanto a sua vida sugere

- Ir ao Festival Músicas do Mundo

- Comemorar com a irmã mais nova os anos (já nem me lembro a última vez que estive com ela nessa data)

- Dormir no Hotel "Os Poetas"

- Ir mais vezes ao "Grupo dos Desenhos"

- Seguir as pisadas da Sophia na Viagem à Grécia (tenho que encontrar o livro).

- Estar junto de quem sinto que gosta mesmo de mim, me sabe falar de si mas também escutar-me.

- Não perder tempo com quem não interessa, não se interessa.

- Nunca perder a oportunidade de comer um bom gelado de pistachio.

~CC~

Nota: Será que alguém partilha algo da lista?

terça-feira, 18 de abril de 2023

O Ofício

 

Não importa se não cheira a hospital, se o jardim tem orquídeas, se a vista se abre para o belo Tejo. Não importa que a chamada para a consulta se faça com um telemóvel cedido ao doente (ou será cliente?).

Não importa se há bolo caseiro, se há máscaras à disposição, se o pessoal se veste com uma farda concebida por um designer e há multibanco à disposição no interior.

Nada disso é negativo em si, pode mesmo ser bom, ser muito bom. Mas importa mais outra coisa.

Importa um olhar dentro dos nossos olhos e o desenho de um abraço, seja ele dado ou não. E a palavra directa, clara, informativa mas macia (sem ser piegas). O ofício é difícil, estar doente também é.

~CC~

segunda-feira, 17 de abril de 2023

Esses vampiros

 

Voltam os fantasmas dentro do corpo. Como eu já os vinha a adivinhar.

Qual vampiros na calada da noite. Como domá-los, como dominá-los, às vezes já não sei, chegam sombras chamadas desistência. 

Hei-de escapar-me para junto do mar, hei-de molhar o rosto de sal. 

Não passarão, diziam os resistentes de todo o mundo. Hei-de tomar-me da força deles, dos que constroem barragens contra o pacífico, dos que combatem a solidão em Macondo, dos que falam com os limoeiros nos quintais, dos miúdos de rua que foram capitães da areia...ou tão simplesmente dos que fazem de cada dia, nos locais em que trabalham, em que vivem, uma batalha pela vida, pela dignidade humana. De pé nas urgências dos hospitais, de pé nas salas de aula dos bairros difíceis, abraçando aqueles miúdos no centro de acolhimento, ouvindo aqueles idosos nos lares, essas pessoas sem nome na praça pública, os resistentes. Toda a vida procurei ser um deles, uma delas. 

E se os vampiros vierem em bandos com pós de veludo, hei-de cantar-lhes a tua canção, bem alto, bem forte. 

~CC~


domingo, 16 de abril de 2023

Na maré

 

Já vi muitos, muitos espectáculos, de teatro, de dança, das duas coisas misturadas. 

Mas Fúria e Encantado, de Lia Rodrigues rompem com muito do que já vi, vão para além dos limites, chocam, questionam, incomodam. A nudez frontal é logo a primeira imagem que retemos e a forma como aqueles corpos nus podem simbolizar violência, choque, subjugação, opressão, são corpos dominados que se querem libertar em fúria. Mas são também corpos lindos, em festa, em encontro, em voo, em seres imaginários. São homens que são mulheres, mulheres que são homens, são seres livres, sem limites. As estudantes que levei ao primeiro espectáculo ficaram estarrecidas, incapazes de bater palmas, agarradas às cadeiras, contrastando em absoluto com a plateia, em êxtase. Também isso me causou muitas interrogações.

Os espectáculos foram feitos de forma colaborativa com os jovens da escola de dança livre da Maré, localizada na favela da Maré, no Rio de Janeiro.

Durante muito tempo ficarei presa daqueles panos que de muitas e variadas formas se enrolavam na nudez, basta tão pouco para fazer tanto.

Saber mais aqui.

~CC~


sexta-feira, 14 de abril de 2023

Amor no seu estado puro

 


Entrei por acaso, nem era para ir ao cinema e muito menos conhecia nada do filme, a intenção era saber qual era o cartaz da festa do cinema italiano, gosto de caminhar por outras geografias.

E depois foi acontecendo a magia, fui tomada de surpresa e acabei em lágrimas.

Amor, palavra anti convencional e sagrada. 

Agradecida aos seres humanos que sabem amar deste modo, pois só assim vale a pena. 

~CC~







terça-feira, 11 de abril de 2023

O fazedor de gelados

 

Poderia apaixonar-me pelo fazedor de gelados. 

Não, ele não é um vendedor, é ele que os desenha e os manufactura, escolhe cada ingrediente, pesa cada dose, investiga, decide o que colocar mais, o que tirar. Dá-me colheres de sabor a provar de cada um, para que possa apreciar, ajuizar, recomendar. Colheres a sério, não são de plástico. Quando abriu a porta a primeira vez este ano, disse-me a coisa mais estranha de todas, que tinha baixado o preço de cada bola, claro que elogiei e nem perguntei a razão para tal.

Temos intensas conversas poéticas. Como fazer o melhor gelado de pistachio, porque é que o maracujá tem um sabor tão peculiar, quais os melhores morangos para fazer um gelado que não leva apenas a simples essência. Dos sabores misturados estamos conversados, essa coisa de cookies and cream ou cheesecake de frutos vermelhos é para estrangeirados, habituados desde bebés aos gelados industriais, cada gelado deve ser apenas de um sabor, para se poder reconhecer bem.

O fazedor de gelados não é apenas um homem bonito e doce, é mesmo um poeta. O problema de me apaixonar por ele nem é a mais provável hipótese de não ser correspondida, as paixões platónicas são bem boas, a questão está claramente nos quilos a mais e nos danos à saúde. Da próxima vez vou recomendar-lhe que faça mini doses, umas bolinhas pequeninas, próprias apenas para encantar mulheres de meia idade. 

~CC~


segunda-feira, 10 de abril de 2023

Já foi Páscoa

 

Na sua memória quase incapaz de reter novos factos, ela procurou fixar aquele momento e aquele lugar e soletrá-lo em duas palavras, de tal modo que ainda fosse capaz de os recomendar a outros. Até se esqueceu o quanto detestava a cadeira de rodas e o modo como nela as pernas se desalinhavam num desconchavo que tinha que ser coberto com uma manta. Não é muito o que fazemos, ainda assim conforta-nos conseguirmos fazê-lo. Dois terços são por ela, um terço por nós mesmos.

Hoje saboreou a amêndoa de chocolate deitando fora a amêndoa que já não consegue trincar, em termos de sabor teria sido igual dar-lhe apenas o chocolate, mas em termos simbólicos não. E a vida, muitos não sabem, é feita de símbolos, tanto quanto daqueles pequenos nadas.

Agora sim, já foi Páscoa. É ela que me prende ao calendário.

~CC~

terça-feira, 4 de abril de 2023

Cá cheguei

 

Ciência sim é fundamental.

Mas sem comoção e compaixão ficamos no limiar de tudo.

Tanto que estudei para chegar aqui.

À base de um bom profissional da área humana e social.

E para quê sê-lo?

Porque metade da nossa vida é vivida a trabalhar e não é por certo o ordenado recebido ao final do mês que nos permite criar um sentido para tal.

~CC~


segunda-feira, 3 de abril de 2023

É isto


 É isto, braçadas largas para não ir ao fundo.

Mais adiante é já a Primavera, talvez ela me abrace e me faça florir.

~CC~


sábado, 1 de abril de 2023

Como se faz roxo?!

 

Como se faz roxo? De repente não sei. Ocorrem-me ideias.

Cruzar sorrisos de anjos de latitudes diversas. Recolher amostras de primeiros olhares sobre coisas belas e misturá-los, por exemplo, a primeira vez que se vê o mar. Poderá resultar das mãos dadas daquele casal de meia idade, dando um passeio pela tarde de domingo. Poderei ir buscá-lo as poções mágicas dos livros sobre bruxas, certamente terão essa cor. Poderá extrair-se da timidez de um homem grande com cara de menino. Sei que não existe como cor primária, sei que é secundária, é impura, é mistura, é troca, relação.

Depois lembro-me.

E misturo o vermelho e o azul para pintar no meu rectângulo aquela flor que me calhou no primeiro dia do mês de Abril.

~CC~