sexta-feira, 29 de abril de 2022

Se eles pudessem dançar

 

O meu pé de chumbo direito diz ao meu pé de chumbo do lado esquerdo que fique parado, um acordo silencioso feito de vergonha. Mas a minha alma, essa coisa que mora cá dentro, essa sempre dançou tão livre, tão livre. Talvez um dia ela possa contaminar um pé e depois o outro e sacudam ambos o receio que os prende ao chão. Se eles pudessem dançar...

~CC~


quinta-feira, 28 de abril de 2022

Rostos

 

Descubro agora como é o rosto do senhor da mercearia (olha, parece mais novo), que a empregada do café do lado sorri quando nos atende e que a cara da senhora que gere o restaurante de peixe é ainda mais carrancuda do que era de máscara.

E sei que as ruguinhas ao lado dos meus lábios os ajudarão a descobrir a minha real idade, esperando que o sorriso possa compensar alguma desilusão. Isto nos momentos em que me esqueço do perigo e enfrento o mundo tal qual ele era dantes, sem a máscara. Na verdade ainda a levo sempre comigo, pronta a usá-la em sítios em que me sinto desconfortável.

O que é bonito não é ver agora os rostos, bonito é irmos perdendo o medo e o que ele nos congelou em vida e abraços.

~CC~~


domingo, 24 de abril de 2022

Dizê-la sempre!

 


LI-BER-DA-DE

LIBERDADE

 Fico a dizê-la devagar, silaba a silaba, sabe a vermelho, a sal do mar, a cerejas.

Nem sei dizer quanta Primavera tem dentro, o quanto me aquece e o bem que me faz saboreá-la.

~CC~




sexta-feira, 22 de abril de 2022

Novas habitantes

 

Comprei-as muito baratas no supermercado, como se conseguisse trazer a Primavera ansiada para dentro de casa.

Bárbara perdeu todas as flores numa semana e ficou nua perante o meu olhar que vigia cada hipótese de botão. Zélia aguentou melhor a mudança e deixou-me assistir ao modo como um botão se vai lentamente abrindo para deixar emergir as pétalas rosa e os filamentos amarelos, que suprema beleza. Nos raros momentos em que em vez de estar sozinha me sinto só, falo com elas. E não, elas não me respondem, como tal sei que ainda não enlouqueci, mas não posso prometer-vos nada. Na verdade gostava de saber se gostam dos nomes que lhes coloquei, mas a mim também não me perguntaram nada e causaram-me este conflito entre um primeiro nome próprio detestado e um segundo nome próprio amado. 

É a primeira vez que cuido de orquídeas, dizem que são de feitio difícil.

~CC~


quarta-feira, 20 de abril de 2022

(Des)caminhos





E eu fui. Mas gostava de continuar a ir e a ir e a ir. Contudo, tive que voltar.
O que descobri é que todos os caminhos são descaminhos e por isso me são desejados. Sempre adorei trabalhar, em que lugar me perdi então, pergunto-me. Talvez no do excesso.
~CC~

 

terça-feira, 12 de abril de 2022

Coisas de aves (II)


Beleza inscrita para sempre num certo dia de Dezembro, tão longe daqui, tão perto de mim. 
Tanto que gostaria de ter visto a ave que saiu daqui.
~CC~

 

segunda-feira, 11 de abril de 2022

Coisas de aves

 

Achamos que estamos preparados, o trabalho interior começou há muito, um lento processo em que sabes que a partida do outro é um voo há muito começado, tão proporcional ao voo que tu própria iniciaste. Eram linhas antes cruzadas, agora apenas paralelas próximas.

Contudo, quando o vês voar cada vez mais pleno, cada vez mais longe, encantado por tudo o que esses voos lhe trazem de luz e novidade, sabes que demorará afinal mais do que esperavas para chegar ao nível zero da dor. Mas anseias lá chegar e sabes que chegarás, concede-te esse tempo. É aquele lugar em que já não choras, ainda não consegues sorrir. Nesse limbo, nesse interstício, nesse quase lugar, também tu podes ensaiar voos pequenos, talvez um dia consigas que o teu bater de asas toque ao de leve o coração de alguém. É assim nas coisas pequenas que as coisas grandes acontecem.

~CC~

 

domingo, 10 de abril de 2022

Rituais

 

A idade, o peso dela pode tornar-nos subitamente leves.

Jamais antes deixaria que um jovem de vinte anos, com um rabo de cavalo louro e modos doces me fizesse experimentar a diferença entre cuidados de corpo e de rosto, usando a minha mão esquerda para um e direita para outro. A princípio pensei que ele fosse apenas espalhar creme e não toda uma gama de cuidados que levou cerca de 15 minutos para cada mão. E as explicações demoradas mas muito técnicas, o cuidado em escolher cada aroma que eu gostava, mais uns elogios que devem constar de qualquer brevet de vendedor. 

Uma pessoa finge que acredita porque a velhice nos tolda a razão e nos faz necessitar de mimos adicionais, deve ser assim que nos tornamos oficialmente pessoas de uma certa idade. E é assim também que gastamos dinheiro em coisas fúteis e inúteis, ainda que muito aromáticas e macias.

Espero apenas ter acrescentado alguma coisa ao seu salário, a mim os cremes não me farão mal, até porque mais de metade do tempo foi de propaganda ao veganismo da marca.


~CC~

terça-feira, 5 de abril de 2022

Bem lhe peço ao ouvido

 

Tenho-lhe dito e repetido que preciso de estar com a mãe velhota que já mal consegue falar comigo ao telefone. Tenho-lhe pedido que me deixe em paz pois agora há uns dias em que posso sair daqui e mergulhar no perfume alentejano das estevas, molhar os pés na ria, caminhar com cheiro de mar. 

Tenho implorado que venha mais tarde, tão mais tarde que já se tenha esquecido definitivamente de mim. Oxalá esse vírus, tão mutante, tão rebaptizado, tão resistente seja sensível aos meus pedidos e não precise de nenhuma das minhas células para se reproduzir e se eternizar neste século estranho em que vivemos.

Mas que anda muito, muito próximo anda, sem dúvida esteve aqui em casa. E até lhe contei do estudo para o qual me convidaram sobre as pessoas que em dois anos de pandemia não tinham tido a doença, é que seria fantástico participar.

~CC~


domingo, 3 de abril de 2022

Como distinguir hoje as classes sociais:)

 

Tinha 250 cápsulas de café da Delta oferecidas e apenas uma máquina da dita marca para o evento.

Com a pandemia e o bar por longos períodos fechado, sabia que nos gabinetes dos docentes, as máquinas de café se tinham multiplicado. Contudo, não podia entrar nos mesmos, muito menos perguntar um a um quem as tinha. Dirigi-me assim aos funcionários, sempre aqueles que conhecem melhor que ninguém todos os cantos à casa.

Ora, segundo eles, os professores não têm máquinas de café dessa marca, só de marcas melhores, mais finas e conhecidas. Ora, eu que tenho uma máquina de café da Delta em casa, descobri assim a que mundo afinal pertencia. E trouxe a máquina de casa.

~CC~