quinta-feira, 30 de setembro de 2021

Dia de cinema

 

No regresso ao meu querido cinema.

O homem repete-se mas achamos sempre graça. 

E desta vez a homenagem aos filmes e realizadores da sua vida, nessa pintura a preto e branco dentro do filme, é de uma grande candura. Foi o que mais gostei, talvez pelo desafio em reconhecê-los, confesso não adivinhei todos, mas uma parte significativa sim. 

Além disso, há outra coisa nele muito interessante. Ele acha que um homem pode ser feio e desajeitado e atrair mulheres pelo brilhantismo da sua capacidade intelectual, é temática repetida em muitas das suas obras. Parece-me bem. Tenho pena que não crie também mulheres assim, são sempre lindas e meio tolas ou vítimas. 

~CC~

terça-feira, 28 de setembro de 2021

Saldo incerto

 

Eu e esta casa estivemos sós durante muitos dias neste último ano e meio. Contei pelos dedos das mãos as vezes em que jantei ou almocei aqui com alguém. O mundo abria-se sobretudo por um écran, primeiro com gosto, depois com cada vez menos. Cheguei a um ponto que quase odiava ter que levantar a tampa do portátil. 

Nestes últimos dias abri a porta várias vezes, entrou aqui mais do que uma pessoa. Abracei-as, perdi o medo dos abraços

Depois as pessoas vão e a casa ainda lhes guarda memória e gosto de a sentir assim.

Ainda há alguns amigos que me falta abraçar, anseio fazê-lo, preciso de ter a certeza que não os perdi com a pandemia. Não sei se as pessoas já se permitem fazer saldos ao que perderam ou ganharam. O meu saldo é ainda incerto e não sei se algum dia o acertarei. 

~CC~


sexta-feira, 24 de setembro de 2021

Das travessias

 

O riacho eu atravessava com grande facilidade, até me sabia bem uma pedrinha ou outra no caminho, num instante alcançava feliz a outra margem. Com o rio a tormenta era um pouco maior, mas com os pés no chão, a correnteza não me atrapalhava o suficiente, até me estimulava. Com o mar tudo se tornou diferente, às vezes tentava mas a meio desistia, mesmo quando fui buscar um barco para alcançar a outra margem, o esforço dos remos cansava-me tanto que não conseguia apreciar o lado de lá. Quando se tratou de atravessar o oceano, bem sabia que podia apanhar um navio, mas era demasiado longe, demasiado esforço, para além de que do lá de lá já ninguém sorria e acenava a incentivar-me, apenas havia uma sombra, difusa na paisagem.

Agora deixo-me ficar aqui em terra, sem travessias, horizontes ou chamamentos. 

Faço café de cafeteira e aconchego-me. Talvez envelheça.

~CC~

quarta-feira, 22 de setembro de 2021

Eixo Norte-Sul

 


Ela marca o seu lugar no Norte, fala com deuses e deusas, veste-se de branco para passear junto ao mar, embala as sementes que deita na horta enquanto recebe conselhos dos mais velhos e tem na cozinha uma chávena de chá e um cheiro a bolachas feitas pelas suas próprias mãos.

Quando chove ela vem para a rua e sorri.

Também nasceu hoje.

~CC~


(Um abracinho bem forte da menina do Sul)

terça-feira, 21 de setembro de 2021

Emparedadas

 

Viviam aqui trinta e três Clarissas emparedadas.

As crianças fazem um trejeito de espanto. Já eu estremeço dentro da palavra. Totalmente impedidas do contacto com seres humanos que viviam fora do convento. 

A guia da visita sugere que o faziam voluntariamente. Mais à frente vamos percebendo que essa escolha seria, contudo, fortemente condicionada. Curiosamente pela abastança e pela pobreza. Os nobres impediam assim a divisão e dispersão da fortuna da família e ganhavam os bons ofícios de Jesus, os mais pobres livravam-se de mais uma boca. Partilhariam mesa de refeitório, mas cada uma com a sua própria loiça. No prato de porcelana de uma, porém, se colocaria, em dias de festa, a mesma carne que na loiça de bairro de outra. Tradicionalmente duas vezes por ano chegaria a cabra, o borrego ou o porco, oferecidos.

A grade do coro alto impede que as vejam quando o padre vem dizer a missa e elas permanecem ali, as 33 juntas num rectângulo pequeno, invariavelmente de pé. Por uma pequena abertura onde só lhes cabe a mão recebem a hóstia. Consagrar o sofrimento a Jesus não impedirá que o sintam, dá-lhe apenas um destino.

Trinta e três mulheres como a idade de Jesus. Contudo, não creio que ele desejasse as mulheres emparedadas. Os não alinhados referem que consagrou Maria Madalena apóstolo como eram os outros. Estremeço mais uma vez, mas desta vez pela comparação com aquelas mulheres lá longe que hoje, como há mais de quinhentos anos, um regime religioso quer emparedar.

~CC~


Bem no centro, a grade do coro alto,


segunda-feira, 20 de setembro de 2021

Outonar

 

Duvidei quando me disse que o pão durava seis dias, não criava bolor. Foi por acaso que parei à porta deles, em todo o Sul não têm uma única loja. Parece que recuperam receitas antigas e usam massa mãe. Contudo, a loja é um mimo moderno. Estas conjugações interessam-me, como é que podemos conjugar coisas, recuperar o bom que perdemos com coisas que a modernidade nos trouxe.

Certo é que já lá vão três dias e o pão parece igual ao primeiro dia. Tem um toque azedo que adoro, o pão tem naturalmente esse sabor, se não lhe acrescentarem açúcar como acontece em muitos, muitos casos. Experimentem olhar para a composição do pão comprado no supermercado. E nem todas as padarias são muito melhores. Fazer pão em casa também é uma boa opção, como aliás fazer quase tudo o que pudermos. Mas falta-nos tempo, às vezes paciência.

Certo é que o pão azedo com o doce de ameixa que a amiga fez e nos trouxe num frasquinho tem todo um outro sabor. Hei-de também experimentar fazer marmelada para combinar com a entrada no Outono. 

~CC~

sábado, 18 de setembro de 2021

As manhãs do Dragão (I)

 

Em quase tudo esta aula foi diferente da anterior.

Não desenhámos animais no relvado.

Mas fiquei fascinada pela forma como as mãos são autênticos poemas que temos que construir, por este bailado lento em que lançamos o corpo no ar azul e o trazemos para dentro de nós.

E o silêncio, o silêncio absoluto em que o grupo consegue estar. Praticamente só mulheres, como sempre.

Emocionei-me, não pensava que tal me acontecesse.

~CC~

quinta-feira, 16 de setembro de 2021

No meu cinema

 

Dantes, nessa era pré Covid, o meu cinema era só um. Ainda tenho o cartão de cliente, mas agora praticamente sem carimbos. Tenho-me resignado ao cinema em casa, quatro canais de cines têm ofertas que cheguem para o meu tempo disponível.

Nessa pesquisa cheguei a Jojo Rabbit, um filme de 2019 que não cheguei a ver no cinema. É muito bonito, daqueles filmes que não se esquecem como o Cinema Paraíso ou a Vida é Bela, com aquela candura que só a infância e a entrada na adolescência têm. Registei um maravilhoso diálogo (entre tantos que o filme tem) entre uma adolescente e uma mulher, que tendo perdido uma filha daquela idade, lhe diz o quanto gostaria de a ver tornar-se mulher.

"- O que é uma mulher?! Não sei nada sobre isso...é beber vinho?

- Sim, bebes...e champanhe se estiveres feliz. Conduzes um carro se quiseres, tens diamantes, aprendes a disparar uma arma, viajas para Marrocos, arranjas namorados...e fazes com que sofram. Olhas um tigre nos olhos...e confias sem ter medo nas pessoas, ser mulher é isso!

- Como sabes que podes confiar nas pessoas?

- Confiando nelas!

- E todas essas coisas, fizeste-as?

- Não...nunca olhei um tigre nos olhos."

E acrescento eu, assim se vê que ser mulher é uma obra tão maravilhosa quanto inacabada.

~CC~


quarta-feira, 15 de setembro de 2021

Cidade em silêncio

 

A cidade está quieta e vazia, em contraste com outras cidades que hoje pulsam normalmente.

É um silêncio de que gosto tanto.

Outros vazios fazem ruído.

O som das despedidas, por exemplo, é um aceno que fica a ecoar como um zumbindo que só desaparece depois de sobre ele o tempo cair. Às vezes as pessoas choram, quando não o fazem é ainda pior, ou não conseguem ou já não há lágrimas dentro delas, só sombras.

Hei-de ir beber o silêncio do dia de hoje na minha cidade.

~CC~

terça-feira, 14 de setembro de 2021

E gosto de Dragões

 

Acreditei há 10 anos atrás que o meu corpo estava a ganhar peso, a ficar flácido e inevitavelmente feio. Todos me diziam que o exercício era a chave de tudo, uns recomendavam logo máquinas forte e feio, outros caminhadas ou corrida, os mais esotéricos o exercício que juntava corpo e mente e os mais fanáticos e endinheirados um PT à altura.

Pilates era a grande moda, diziam maravilhas. Lá fui. Tinha uma dor tremenda nas costas no final de cada aula mas acreditei que passaria. Mas o pior era mesmo o facto de nos pesarem todas as semanas, como se fossemos gado para levar para a feira, marcavam num cartãozinho o peso, quando alguém perdia um quilo tinha direito a uma maçã afixada num quadro onde todos pudessem ver. Achava aquilo uma devassa e uma coisa ridícula. Pouco durou.

Depois fui em busca do meu interior em posturas mais controladas e amigáveis. Conheci uns três ou quatro professores de Yoga, da primeira só me recordo da sala na penumbra e de como o incenso me fazia lagrimejar e do meu silêncio a cada mantra. Do Yoga meditativo pós doença oncológica nem quero falar, que esforço tremendo para não dormir. Por fim acertei na professora mas não no sistema. É verdade que yoga num ginásio normal não tem velas nem mantras demorados mas o sistema de senhas deita tudo a perder. Se chegamos uma hora antes temos de certeza lugar na aula mas ouvimos uma hora de música de ginásio, trata-se de um impulso motivacional que me desmotiva completamente.Se chegamos 10 minutos antes já estão as vagas ocupadas e podemos fazer o caminho inverso, apesar de pagarmos um valor fixo por mês. O mundo do exercício físico, como em geral o desportivo, está tomado pelo capitalismo mais desenfreado que há.

Resignei-me às caminhadas por iniciativa própria mas sabemos que tudo o que não se socializa mais tarde ou mais cedo acaba por perder-se. Claro que há sempre aquelas pessoas muito disciplinadas que marcam objetivos em post-it na porta do frigorifico. Não é o meu caso, por isso, a minha viagem contínua, agora arranjei um esquema informal com esta arte marcial dos bichos, somos um grupo mas não somos um grupo, ele é um professor mas não é bem o professor. Com o meu coração anarquista é capaz de resultar. E gosto de Dragões.

~CC~







segunda-feira, 13 de setembro de 2021

Não há Setembro...

 

Não há Setembro sem uma primeira chuva, uma aragem fresca, uns sapatos fechados. Com o céu mesclado e o anúncio das tempestades chegou a melancolia, quase uma tristeza sobre a pele.

Coloquei Tom Jobim a tocar, na esperança de alojar uma dança, uma alegria no peito, um raio de sol, o coração do carnaval. Mas ele fala excessivamente de amor.

Não é assunto que me apeteça.

~CC~


sábado, 11 de setembro de 2021

Dragões e outros bichos mais

 

Como uma miúda pequena tinha receio da primeira aula. Não me aguentar, não ter jeito, não gostar do orientador/a.

Mas afinal o Chi Kung é uma brincadeira boa, espero que os puristas não me leiam, uso brincar no sentido pleno e cheio da palavra. 

Podemos ser garças, tigres e dragões. Nunca tinha estado num relvado com uma data de dragões, não olhava para os outros, concentrada na minha postura tosca a tentar ser um/a. Ainda não consegui cuspir fogo mas acho que até me daria jeito de quando em quando.

~CC~

sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Adeus Senhor Presidente

 

Ele foi o nosso presidente, foi o meu, sem dúvida.

Mas também foi aquele senhor que te deu a cadeira presidencial para te sentares, tu pequenina, com os dois puxinhos mal amanhados feitos por esta mãe tão inapta. E perguntou, já que te sentavas na cadeira, que medidas tomarias como presidente. Não percebeste bem, ficaste calada, com um sorriso tímido.

E no entanto devia haver qualquer coisa mágica naquele assento que fermentou e fermentou, hoje responderias sem receio.

Adeus Senhor Presidente e muito obrigada por tudo. E 25 de Abril sempre!

~CC~


quinta-feira, 9 de setembro de 2021

Letras que voam


 


Há quanto tempo não escrevia um diário. Aqueles cadernos onde nos deixamos inteiros, sem pudor. Não fora essas páginas onde posso escrever sobre a carne viva e em ferida e por certo estaria no divã do especialista ou a viver à conta de pilulas mágicas. Mas cada letra tornada palavra e cada palavra tornada frase é como um pássaro que voa levando um pouquinho da dor. E fico mais leve.

~CC~

terça-feira, 7 de setembro de 2021

Este céu que me escurece

 

As nuvens, se elas enegrecessem apenas o céu.

Mas não.

Cresceram hoje dentro de mim grandes, grandes, mal me deixando ver o azul que em mim sobra.

E não choveu, nem lá fora, nem aqui no meu peito.

E tão bem que me teria feito. A água arrastaria a zanga e depois disso poderia descansar. 

Obediência é uma coisa que não sei fazer quando não encontro nela uma razão plausível, e a desobedecer sou tão tenaz e dura como uma rocha. E ainda são apenas dois dias de trabalho. Tenho que me salvar, ando a tentar abrir portas e perceber qual delas abre para um campo cheio de estevas.

~CC~

 

segunda-feira, 6 de setembro de 2021

Tão loura assim?!

 

Domingo na cidade da Ria Formosa, empoleirada a ver os barcos a entrar no canal de acesso à marina, chegam à razão de um de cinco em cinco minutos. Cada um tem uma particularidade, tanto a embarcação como os seus passageiros. É um passatempo que combina bem com um gelado de limão, já que não havia pistachio.

Dois jovens (ou quase) dirigem-se a mim em Inglês mas perguntam se falo Português. Demoro um minuto a processar, normalmente a pergunta não é feita com aquele formato. Será que estou assim tão loura a ponto de me confundirem com uma estrangeira? Ou seria por estar a tirar fotografias com os olhos? 

Dei-lhes a informação que queriam, em português, já que perguntaram se eu o falava, e seguiram caminho. Para a próxima digo que não, que só falo italiano.

~CC~



sábado, 4 de setembro de 2021

Leve

 

A extravagância deste Verão, praticamente a única compra.

Os chinelos de marca, dourados e com cheiro a coco (eterno, dizem).

Não poderei passar o Inverno com eles? Oh, como gostava. Nunca antes os meus pés tinham sido bonitos.


~CC~


PS. Juro que não estou a caminhar para Influencer ou coisa parecida....é apenas a busca da leveza.

quinta-feira, 2 de setembro de 2021

Alcomonias

 


As meninas de 4 e 5 anos cantam uma música das Doce no palco, são artistas livres, ninguém as interromperá com críticas ou aplausos. E o sino da igreja a tocar de meia em meia hora deve ser o único que não me incomoda. O senhor que anda de mesa em mesa a avisar do ensaio mais logo detém-se em dúvida a olhar para mim. Percebo-o, não sou daqui mas também não lhe pareço turista. Acerta no meu estatuto. Sei que um dia ele não virá, a aldeia está cada vez mais estrangeira, nesse dia já não virei mais.

Há quem vá para as termas regenerar corpo e alma, eu venho para aqui. Acho que chorei aqui dores várias e recompus-me de notícias más, amores perdidos, horizontes nebulados. Há alguma coisa aqui, um cheiro, um sabor, um ingrediente contido no ar que respiro.

Começou há muitos anos, uma primeira visita em grupo de escola, uma peça representada no interior da igreja com base num livro de um escritor local, que bonito foi. Depois foi o monte da M, um céu inesquecível de estrelas e a água que íamos buscar à fonte. Pouco depois a casa da C, pequenina, mas com aquela mesa no alpendre, com os olhos presos na caruma dos pinheiros e a praia mais adiante, descida ingreme com o mais belo por do sol do país. Agora alugo de quando em quando uma casinha na aldeia, de especial tem zero, mas já a olho como um porto de abrigo. A solidão não dói, por isso talvez não o seja, é apenas a companhia de mim mesma, um tempo só meu. E o trabalho aqui é apenas um part-time, está no lugar exacto em que deveria estar sempre na vida e não no lugar central que ele ocupa. É que ali perto há o mar e isso muda tudo.



~CC~