segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Adeus Agosto

Na cidade em que exercemos a profissão é normal nos cruzarmos com aqueles com os quais trabalhamos. Apesar de tudo, pela minha prática de vida itinerante, nem me queixo muito e às vezes até me sabe bem, dá-me raízes que é coisa que me falta.

Mas às vezes há perplexidades. Uma recém diplomada disse-me que tinha feito nova candidatura a uma outra formação e se eu sabia quem era o presidente do júri e os critérios, disse-lhe que eram coisas públicas e onde as podia consultar. Claro que se eram públicas, pelo menos o nome do presidente se poderia saber e disse-lhe.

Ela fez logo cara estranha...que o conhecia sim, tinha sido seu professor. Mas conhecia melhor os filhos pequenos dele, assim como todas as divisões da casa nas quais ele procurava dar aulas sem que a Internet falhasse. Engoli em seco e tomei mais uma vez consciência da tormenta ano e meio de ensino a distância. Acho que nunca avaliaremos bem as consequências. 

E mais uma vez senti a minha própria ambiguidade: a vontade de regresso ao ensino presencial combinada com a ansiedade e o medo das salas pequenas a abarrotar de gente (a maior parte apenas parcialmente interessada em ali estar) e todos só com meio rosto visível. 

Custa-me dizer adeus a Agosto, sempre custou, mas agora mais.

~CC~

sábado, 28 de agosto de 2021

Da medida da cintura

 

Oficialmente de volta ao serviço público de saúde, vulgo SNS. Só coisas boas a dizer, estou a falar a sério.

A consulta durou uma hora e meia (ultimamente no privado era, no máximo, de 10 minutos), devendo-se a extensão à necessidade de construir uma história clinica complexa que estava completamente em branco (a informação do privado não passa para o público) e calma... ninguém estava à espera, uma vez que era a última do dia. Eu já só pensava se ela teria alguém para lhe fazer o jantar ou iria jantar fora e sentia-me mal pelo tempo que lhe estava a gastar por não ter empilhado e datado devidamente os relatórios clínicos anteriores.

A parte melhor ocorreu a meio do tempo. Ela pediu para eu me levantar e tirou a fita métrica do bolso da bata. Perante o meu olhar de admiração, esclareceu que me ia medir a cintura. Pensei mas não disse que não sabia que afinal isto era uma candidatura a modelo. Ela teve graça e disse que era para me fazer o vestido. E depois esclareceu: é que a gordura abdominal é um dos maiores preditores de saúde. E eu fiquei a saber que a julgar pela medida ainda viverei muitos e muitos anos. Agora digam lá se não é bom ter uma médica de família (o resto dos indicadores agora pouco importam, concentro-me neste). 

~CC~

sexta-feira, 27 de agosto de 2021

Para iluminar

 

Estava a tentar classificar os Verões depois da terceira vida, ou talvez quarta, já não sei bem.

Arrumando-os em bons e maus, como quem classifica numericamente a temperatura, a velocidade do vento, a possibilidade de chuva. O parâmetro meteorológico, sem dúvida a ter em conta na classificação de qualquer Verão afigura-se muito insuficiente para dizer da felicidade neles contida. Analiso outros, para concluir o que já sabia, este está abaixo da média.

Contudo, no horizonte, há possibilidade de Verão em Dezembro. Cada um faz o que pode para se iluminar.

~CC~


quarta-feira, 25 de agosto de 2021

Da gaveta branca

 

Primeira limpeza superficial da gaveta da doença.

Nem um terço das facturas foram para o lixo, desisti. Terei que lá voltar mais tarde.

Não quero apurar os valores e perceber quantas viagens deixei de fazer, quantos lugares lindos ficaram por conhecer, quantas cidades, quantos museus, quantos campos de girassóis.

Estou viva sim, nunca deixarei de o festejar. Mas deixem-me lamentar um pouco, quando já não choramos ainda nos resta um suspiro ou outro, um gemido.

~CC~

segunda-feira, 23 de agosto de 2021

É a família dela

 


Aos 93 anos mantém, nos seus olhos quase cegos, uma luz que é a réstia da sua vontade de viver, e é uma luz que ainda ilumina.

Não tenho dúvidas que a minha força é a herança da força dela. Mais que justo que seja o seu nome a encabeçar o grupo da família.

~CC~

quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Crónicas de Verão (XIX)

 

Silly Season era o seu nome. 

Tudo leve, nada sério, notícias sem importância, muito cor de rosa. Quase é possível ter saudades dessa inocência das festas de espuma dos anos oitenta (muito embora nos anos oitenta eu as detestasse).

Este ano, a acrescentar ao boletim diário de mortos e hospitalizados via vírus, há mais mortos, mais dor, mais tristeza.

Incêndios, sismos e agora o Afeganistão. 

Tudo é triste na história dos últimos vinte anos deste país. Mas a minha alma feminina está simplesmente gelada. Se é verdade que nenhuma religião trata bem as mulheres, é também verdade que nos países laicos elas têm em geral a protecção do Estado, coisa que ali desapareceu. E uma coisa é querer viver dentro dos limites dessa religião e aceitá-la, outra é simplesmente não ter outra opção, ser condicionado, não ser livre. Os que os legitimam com base na agora suposta moderação do seu discurso têm obviamente interesses nisso.

Todos estes anos fiz questão de começar uma das aulas de uma determinada cadeira com o discurso da Malala na ONU. Este ano acho que será a primeira aula de todas as minhas cadeiras.

~CC~

Por ora, o melhor que li sobre o assunto.

segunda-feira, 16 de agosto de 2021

Crónicas de Verão (VIII)


No Km 142 os girassóis secaram todos. 

Tento que o mesmo não me aconteça e rego-me com o resto da água de garrafa que sobrou do dia abrasador. Tento não pensar num planeta sem água potável, pois isso causa-me um grande aperto no coração. E este Verão ele já teve apertos que chegue, tenho de o preservar.

~CC~




sábado, 14 de agosto de 2021

Crónicas de Verão (VII)

 

Um destes dias cheguei à praia e não tinha a toalha. Feitas as contas ao tempo disponível, não valia a pena voltar para trás. Eu até podia sentar-me na areia sem qualquer problema mas não estava a ver como me deitar após o banho, mesmo caminhando, não ia secar completamente. Aluguei um toldo e uma cadeira, coisa que há anos não fazia. Tinha alguma curiosidade em perceber como era, como me sentia.

Experiência detestável a de ter que ficar confinada a um lugar entre outros lugares e demasiado longe do mar. 

Percebi melhor o que já sabia. Gosto da areia, das algas, das pedras. Gosto de mudar de sitio quando os vizinhos não me agradam ou simplesmente porque a maré subiu ou desceu. Não gosto de concessionários nem de pagar para estar na praia. Privatizaram mais e mais os lugares e agora as pessoas que levam o seu chapéu de sol têm que se apinhar nas faixas estreitas que sobram.

E à medida que me penso num novo ano (muitos somos assim, começa em Setembro, não em Janeiro), penso como passei tanto tempo longe do mar, como tem sido isso possível.

E marco para mim própria, nesse novo ano, uma caminhada matinal junto ao mar, todos os domingos, exceptuando os de chuva.

~CC~

quinta-feira, 12 de agosto de 2021

Crónicas de Verão (VI)

 

Como será um amormómetro?

Inventaram-se medidas para tudo, menos para isto. 

Aposto que com tantas aplicações no presente, a juntar a outras situadas no futuro que já actuam com base em fluídos químicos e amostras celulares, também inventarão qualquer coisa do género, provavelmente tão destinada a falhar como as que já têm sido tentadas com base em semelhanças, gostos e estilos de vida comuns.

Ainda actuo à moda antiga, o tacteamento interior assemelha-se à costura, à manufactura, exige tempo, paciência, alguma dor.

Ainda assim acho que os mal amados usam todos as mesmas palavras e reconhecem-se entre si.


~CC~




quarta-feira, 11 de agosto de 2021

Crónicas de Verão (VI)

 

No Verão da Era Covid não é mais possível ir a um espectáculo, cinema, almoçar ou jantar em esplanada sem marcação prévia.

Habituei-me a fazê-lo sem muito esforço.

Mas o que fazes no dia anterior pode ser não possível no dia seguinte. Não por mim, se nada houver que à séria me atrapalhe, sou constante nos meus desejos e preferências, não me conheço grandes mudanças de humor ou apetites. Sou do gostar, do querer.

Mas por duas vezes, por outras pessoas, tive que desmarcar. E do outro lado da linha um grande agradecimento, como se o habitual fosse as pessoas simplesmente não aparecerem. Da última vez perguntei se o meu procedimento não era o habitual. E confirmou-se, não, não é. À conta disso duplicam-se lugares vazios em coisas que muito mais poderiam usufruir, sobretudo se são gratuitas e nada foi cobrado pela reserva.

O respeito pelo outro não veio junto com as máscaras.

~CC~




segunda-feira, 9 de agosto de 2021

Crónicas de Verão (V)

 

Cada vez há menos pessoas a ler livros na praia e nas esplanadas em redor. Lembro-me de ser um utensílio quase igual a uma toalha de banho. Vê-se algumas pessoas com revistas, mas a maior parte lê apenas o écran do telemóvel. E não é pelo peso, os livros são cada vez mais leves e os de bolso transportam-se mesmo bem.

Hoje, na esplanada, apenas eu tinha um livro e lia. Mas não foi a primeira vez. A sensação é a de sermos uma espécie em vias de extinção, mais uma.

~CC~



sábado, 7 de agosto de 2021

Crónicas de Verão (IV)

 

Muitas vezes me perguntei pela razão do monopólio das bolas de berlim nas praias portuguesas como bolo de praia. É certo que se diversificaram em massas e recheios, numa panóplia para todos os gostos, mas não se acrescentaram queques, bolos de arroz, palmiers...

Até que ouvi no outro dia, em plena praia: framboesas, caixa de framboesas a 2 euros!

E à minha frente passou o vendedor com as caixinhas, juro que não sonhei.

~CC~




sexta-feira, 6 de agosto de 2021

Crónicas de Verão (III)

 

A senhora está bem?

Mas que diabo podia ver em mim aquele miúdo que nem vinte anos tinha, como podia saber que tinha feito o caminho da praia a deixar que as lágrimas me escorressem pelo rosto. 

É verdade que talvez fosse a única mulher sozinha num bar de praia às 7 da tarde. Mas será que isso era condição de infelicidade? Tantas tinham sido às vezes que o tinha feito sem um resquício de dor. Além disso já tinha limpo os olhos e não sobrava nada ou será que sim, que ainda se via algures a tristeza lá dentro.

Voltou mais vezes, pelo menos umas três, sempre com muito cuidado, muita ternura. Se a comida estava boa, se tudo estava bem comigo e quando saí, ainda veio desejar que tivesse um resto de dia bom. Claro que não tinha tido coragem de lhe dizer que a comida era mesmo má e que mal a tinha conseguido engolir, não sei se pela qualidade, se pelo que restava das lágrimas, se pela suspeita que ele sabia tudo o que se passava comigo.

Fiquei a pensar se agora dão formação de coaching aos empregados de mesa ou se há miúdos naturalmente bons e sensíveis. Certo é que me distraiu plenamente de mim própria.

~CC~



terça-feira, 3 de agosto de 2021

Crónicas de Verão (II)

 

Na cidade velha o calor faz-nos andar pela sombra. Esta parte da cidade é o lugar que mais fala comigo. Se vier cá e não andar pela cidade velha é como se não tivesse vindo.

Dantes não havia quase ninguém, a praia chamava todos.

Agora há gente, a maior parte não habita esta cidade.

Dantes distinguia-os pela altura, cor do cabelo e dos olhos. Agora distingo-os por não usarem máscara.

~CC~