sábado, 21 de dezembro de 2019

E por fim, dou-vos...poesia!



Ela virou-se para mim, olhando-me frontalmente e disse-me: eu não gosto de poesia, não gosto mesmo. Fiquei um momento sem resposta, quase gelada. Vinte anos, ela não tinha mais que 20 anos. Soube logo que era então ela que escrevia na avaliação da disciplina: secante, este ano o tema é secante. Respirei fundo e disse-lhe quase com ternura: pode ser que um dia sintas o clique, se nunca o vieres a sentir, terás perdido uma das coisas mais belas da vida. E fiquei em paz.

Não foi há muito tempo que ouvi esta prosa-poesia, não é dos poetas que melhor conheço, mas acho-a brilhante e uma metáfora do que pode ser a vida. Se gostar, leve-a.


TEORIA DAS CORES


Era uma vez um pintor que tinha um aquário com um peixe vermelho. Vivia o peixe tranquilamente acompanhado pela sua cor vermelha até que principiou a tornar-se negro a partir de dentro, um nó preto atrás da cor encarnada. O nó desenvolvia-se alastrando e tomando conta de todo o peixe. Por fora do aquário o pintor assistia surpreendido ao aparecimento do novo peixe.

O problema do artista era que, obrigado a interromper o quadro onde estava a chegar o vermelho do peixe, não sabia que fazer da cor preta que ele agora lhe ensinava. Os elementos do problema constituíam-se na observação dos factos e punham-se por esta ordem: peixe, vermelho, pintor — sendo o vermelho o nexo entre o peixe e o quadro através do pintor. O preto formava a insídia do real e abria um abismo na primitiva fidelidade do pintor.

Ao meditar sobre as razões da mudança exactamente quando assentava na sua fidelidade, o pintor supôs que o peixe, efectuando um número de mágica, mostrava que existia apenas uma lei abrangendo tanto o mundo das coisas como o da imaginação. Era a lei da metamorfose.

Compreendida esta espécie de fidelidade, o artista pintou um peixe amarelo.

Conto da colectânea “Os passos em volta”, de Herberto Helder


Boas festas!
~CC~

sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

Dou-vos - um ingrediente para os cozinhados.



Agora sei que o Natal da minha infância era uma estranha mistura. Era híbrido, ou se calhar, mulato. Nessa altura não podia imaginar como seriam os outros natais, não pensava no mundo muito para além do meu quintal, embora soubesse que havia parentes lá longe, nunca percebi porque se chamava a Portugal continental "o puto", talvez pelo seu tamanho. Não havia laços, não havia afectos, praticamente toda a família do meu pai se tinha mudado para África e apenas a da minha mãe tinha ficado, ela pouco ou nada falava deles. 

O Natal era uma imensa festa, feita no quintal, com as árvores enfeitadas por luzes de todas as cores, frango assado com piri-piri e muita cerveja. No meio de tudo isto, aparecia um pai natal vestido a preceito, a sufocar com o fato vermelho completo e as barbas feitas de algodão. Pobrezinho, Dezembro, é mês de muito calor. 

Não posso dizer-vos que bebi com o leite materno o sabor do picante, pois a minha mãe não o tinha. Mas lembro-me de gostar desde sempre, mesmo quando me fazia chorar um bocadinho. Sou fascinada pelos vários sabores de picante que os frutos dão e há tantos, mas tantos. Imagino muitos de vós não gostem, por isso deixo-vos estes, têm um picante moderado e doce. E são belos, não são? E as cores combinam tão bem com a época. Bem sei que não conjugam com o bacalhau, mas arrisquem um bocadinho com a carne, vão ver que lhe dá outro toque e se se emocionarem e deitarem uma lágrima, sempre lhe podem atribuir a responsabilidade.


~CC~

quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

Dou-vos - o grande abraço do teatro comunitário.


Num dia como o de hoje só apetece aconchego, um abraço, saber que os nossos estão bem. E todos os outros também. 

Aproveito para vos deixar então uma das minhas paixões - o teatro. E porquê o teatro, qual a relação? 

Com muito respeito pelos actores profissionais, amo ainda mais o teatro feito pelas pessoas que não são artistas mas conseguiram, por muito, ou por pouco tempo, arranjar um espaço na sua vida para se juntarem com outros e criarem algo em conjunto. É o teatro comunitário - na maior parte das vezes um grande abraço entre gente que não se conhece. Levem o abraço. Ou a ideia de um dia fazerem algo que não faz parte da vossa profissão, é um outro tempo, outro espaço, outro modo de se conhecerem a vocês próprios, de se desafiarem. Eu estou por aí, nessa fotografia, muito escondidinha, é certo.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

Dou-vos Alentejo - em sintonia com a quadra



Já vos disse que sei que o meu lugar é no Alentejo? Um sítio onde não nasci, não vivo nem nunca vivi. Às vezes vou um bocadinho lá para me misturar com as estrelas do céu, os horizontes sem fim, o silêncio do branco das paredes, o falar arrastado das pessoas, o doce embalar do cante. Entre as coisas que mais gosto estão os presépios de Estremoz, os únicos que seria capaz de colocar em casa. Amo aquele imaginário em que os homens, os animais e as plantas aparecem em harmonia como se fosse o princípio do mundo. 




terça-feira, 17 de dezembro de 2019

Dou-vos fotografia(s) - um povo da neve



Quantos povos do mundo conhecemos? Quantos vivem no seu silêncio sem que o mundo deles saiba alguma coisa? Sebastião Salgado foi à procura deles, construindo uma obra singular. Quando quiserem mostrar aos vossos meninos quem conduz as renas na neve, mostrem-lhes esta imagem. Será outro Natal.

~CC~

Povo Netnet conduzindo renas no Ártico Siberiano
Foto de Sebastião Salgado

segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

Dou-vos Deuses


Ofereço prendas durante toda esta semana. Virtuais, é certo. Mas são minhas, ou seja, vossas. Certo é que são das coisas que eu mais amo.

Quem gostar, só tem que, se quiser, dizer que a levou.




Estes são (dois) dos meus deuses.

~CC~


sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

Primeira versão



Muita(s) ausência(s) ou uma presença a meio gás, em todos os lugares em que costumo estar inteira.

Um mês sem ir ao cinema.

Alguma irritabilidade.

Uma tendinite a instalar-se.

A cozinha com pouco ou nenhum cheiro a ervas e especiarias.

Três tabletes de chocolate negro com sal.

Uma primeira versão do documento feita. E ainda dizem que custa muito fazer teses de doutoramento. Custar, custa, mas custam muito mais os documentos que de criativo pouco têm.

~CC~


quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

Dezembro



O cansaço produz tanto vazio. E uma certa insensibilidade ou rudeza ou tristeza. Lembro-me de no ano passado ter passado entre as barraquinhas de madeira da feira de Natal e achar aquilo bonito, enquanto agora me pareceram acanhadas, despidas de encanto, mera imitação de qualquer outra coisa num outro país que não o nosso. A árvore de Natal é igualmente feia, durante o dia uma pirâmide de metal enorme, a atrapalhar o passeio e a ultrapassar a copa das verdadeiras árvores, essas sim, bonitas. E uma pergunta terrível a congelar alma: para quê todo este lixo? E logo outra: será que isto vai passar-me? Será que um dia me encanto outra vez? 

Só me apetece o silêncio do campo, essa noite grande de estrelas, essa manhã de acordar lento, esse chá que pode beber-se ao pé da lareira.

Ou o mar de Inverno, essa praia despida onde se pode conversar com as gaivotas.

~CC~

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

A pergunta da tarde



Deus deve encontrar-me ou eu é que devo ir à procura dele?



Dois homens entre os 60 e os 70 discutiram animadamente esta questão durante duas horas. É o que dá estar impossibilitada de estar em casa e frequentar cafés de intelectuais. No dia anterior, num outro contexto, uma família discutiu durante o mesmo tempo a posse de bens, o modo como uns e outros usavam o dinheiro, com críticas constantes à mulher de alguém, provavelmente a intrusa no suposto sangue que os une. Valha-me Deus, onde quer que esteja e seja quem for.

~CC~

sábado, 7 de dezembro de 2019

Inscrição


Acordei a pensar em ti e apeteceu-me abraçar-te.
Para que saibas, para que conste.

~CC~

quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

Adiamento



E o jeito que me dava passar o Natal para o próximo mês?
Não se pode?

~CC~

quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

Perplexo, pois então?



Estava demasiado perto de mim, impossível não o ouvir.

- Estive 17 anos casado com ela e posso garantir-lhe que não a conheci.

O defeito parece-me inequivocamente dele, certo? Ele estava perplexo, eu mais perplexa fiquei por lhe ser necessário tanto tempo com um resultado tão parco. Apeteceu-me questioná-lo pelo tempo que tinha levado para se conhecer a si mesmo ou, se como dizem os angolanos, ainda estava em processo.

~CC~

terça-feira, 3 de dezembro de 2019

É isso mesmo



Palavras que sendo de outro poderiam ser as minhas. As do dia 3, mas sobretudo as do dia 1.

Como já não preciso de as escrever, sublinho-as, tomo o seu tom e o seu sabor.

É tão bom quando sentimos que não estamos sozinhos no mundo.

~CC~

segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

Pronúncia(s)



Ainda sou menina daquele tempo em que na escola nos retiravam todo o vestígio de qualquer pronúncia, pois alguém escolarizado tinha que falar uma língua asséptica, um português de classe média entre o eixo Lisboa-Coimbra. Tão ou mais do que a pronúncia, o conjunto de regionalismos era igualmente mal visto. Passando numa vertigem de Luanda para Olhão, eu aliás, mal reconhecia a mesma língua, sentindo por muito tempo que não sabia falar coisa alguma. A língua da escola até foi a minha salvação. Passaram por isso muitos anos até que começasse a apreciar os sotaques, as diferenças regionais, as particularidades que a nossa língua assume.

Por isso este concerto foi um festim - um genial encontro entre os rapazes do Norte e as moçoilas do sul. Claro que há partes que não percebemos mesmo, mas é nisso que reside o desafio. Actualmente, quando os estudantes se envergonham das suas pronúncias, eu digo-lhes para se orgulharem, pois não são todos que têm a identidade na ponta da língua. Alguns, como eu, são híbridos e não sabem bem a que lugar pertencem. Contudo, assim que piso a minha terra natal, há qualquer coisa naquele modo de falar angolano que me sabe quente e próxima. Não sei se é isso que de quando em quando me faz voltar, mesmo sabendo que não devia.

~CC~

sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Mulheres e Homens (2)



- Mas nunca esqueceste isso?
- Nunca, uma mulher nunca esquece a primeira traição, se calhar nunca esquece nenhuma.
- Conta-me lá isso melhor...
- Éramos jovens, namorados há cerca de 3 anos, mas repara, eu achava que era um amor para toda a vida, de tal modo tinha sido intenso e acho que para ambos.
- Tinham uns 18 ou 19 anos, certo?
- Sim. Tínhamos um grupo muito forte, de artistas, estavámos sempre juntos a tocar, cantar, fazer teatro, a dizer poesia. Como nos encontrávamos sempre no mesmo local, acabava por aparecer muita gente que não pertencia bem ao grupo, uns vinham apenas uma vez, outros mais.
- E então apareceu ela.
- Sim, foi uma aparição que abalou o grupo. Era mais nova do que nós um ou dois anos, creio que andaria pelos 16. E era linda, já fazia fotografia e pousava como modelo. Mas andava à procura de qualquer coisa diferente do que tinha no meio em que vivia, gente com dinheiro e casa na Linha de Cascais.
- Todos os rapazes do grupo sentiram o mesmo?
- Não sei dizer se sentiram o mesmo, mas ficaram encantados. Só que ela escolheu o meu namorado desde a primeira hora. Creio que que por ele ser o que estava no extremo oposto dela em termos de indumentária, política e estilo de vida.
- E isso desenrolou-se à tua frente?
- Em parte sim, como percebi o que ia acontecer, quis libertá-lo.
- E ele aceitou?
- Não, disse que eu estava a inventar e não se passava nada.
- E depois
- Depois andaram juntos uns quantos meses.
- Doeu muito?
- Imenso, muito mesmo.
- Mas depois voltaram?
- Sim, mas nunca mais foi a mesma coisa. Nunca perdoei realmente.

~CC~


quinta-feira, 28 de novembro de 2019

Declaração de intenções



Não, não tenciono ir à Black Friday.

Se sou furiosamente anti consumista? Não, não sou, confesso que tenho as minhas limitações, próprias de uma mulher que viu nascer, eclodir e explodir a sociedade de consumo. Até aos 12 anos só vesti roupa feita pela minha mãe, até ao primeiro ordenado mal tinha para comprar roupa e depois disso, à medida que fui tendo mais poder de compra, adquiri muitas coisas sem precisar verdadeiramente delas. Deixo-me encantar por algumas coisas bonitas, às vezes totalmente inúteis. O próprio conceito de útil/inútil é discutível. Os objectos podem ser/ter histórias incríveis. Um anel, seja de ouro ou latão, pode ser de uma imensa preciosidade. Mas isso de dar valor aos objectos e às coisas é justamente o contrário do consumismo, a premissa deste é comprar, usar, deitar fora. E que se demore pouco a deitar fora pois já há outro produto muito, mas muito melhor para o substituir.

Não vou porque me recuso a este cerco, a esta submissão, a este império, a este aliciamento constante. Não vou porque não me interessa a sociedade que vai. Não sou melhor, nem mais perfeita, nem estou num caminho qualquer ou sequer numa missão. Recuso e pronto. 

Apago com gosto as sms que chegaram das cadeias que estão aí, iguais em todo o mundo, para amanhã quero silêncio.

~CC~




terça-feira, 26 de novembro de 2019

Deixe-se incomodar


O nome em Português é um genérico "Passámos por cá" que não nos situa o suficiente no filme.

Já do realizador (Ken Loach) sabemos o que esperar, um percurso coerente de denúncia dos malefícios de um capitalismo cada vez mais feroz, e também criativo, como o filme nos mostrará.

São seres humanos que vão caminhando para o precipício pois é ai que se tornam cada vez mais vulneráveis,  à mercê de serem usados e manipulados. O mais curioso é que isso é feito à custa de um sistema em que já não há trabalhadores mas colaboradores, já não há empregados mas só pequenos empresários subcontratados (a quem se fornece a ilusão de serem donos do seu destino), já não há horários mas apenas cumprimento de objectivos e claro, já não há direitos, nem protecção possível, muito menos sindicatos ou qualquer outra organização à qual bater à porta.

Os laços, mesmo os de amor, perdem-se na exaustão. Nenhuma esperança nos é criada, nenhuma saída. Ainda assim apetece dar colo a todos aqueles seres humanos. Mas isto sou eu que tenho dificuldade em gritar, partir vidros, queimar pneus na rua, pois, depois do filme, é o que também apetecerá a muitos fazer.

Seja como for, não adormeça, vá ao cinema, deixe-se incomodar.

~CC~


domingo, 24 de novembro de 2019

O elogio dos teus três anos


Tu és muito bonita!

Ia corando, o elogio foi feito em público, e não obstante o rapaz só ter três anos, comoveu-me. Eu sei, aos três anos o conceito de beleza está intrinsecamente ligado ao afecto, só mais tarde virá o crivo cada vez mais estreito por onde a sociedade ditará as suas leis, de acordo com o momento histórico social que molda o olhar, mesmo quando tentamos pensar sem correntes.

A vida irá provavelmente desviar-te cada vez mais de mim, crescerás e vais esquecer-te deste e de outros momentos, já eu guardarei, pois é isso que fazemos com os tesouros.

~CC~

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Mulheres e Homens


Ela notou o olhar dele para as pernas dela, um pouco incisivo e prolongado.

- Que se passa?
- Não fizeste a depilação?
- Olha, não tive tempo e no Inverno faço menos, não ando com as pernas à mostra.
- Mas vens passar um fim de semana comigo.
- E então, porque é que não aparaste a barba? Ou melhor até a podias tirar toda, pica-me a pele.
- Aos homens é permitida a barba, às mulheres não é permitido não se depilarem.
- Essa está boa, não achas que isso só a mim me diz respeito?
- Não, é um comportamento teu que me perturba.
- E a barba?
- A barba não deve perturbar-te.

~CC~

quinta-feira, 21 de novembro de 2019

Talvez tenha ficado uma pequena ferida



Tenho tendência a pensar que ultrapassei isto sem quase ter ficado com nenhuma marca, nenhuma ferida. Às vezes acho que já me esqueci de quase tudo, ou pelo menos isso não se atravessa no meu quotidiano. Não me vejo, não me encaro como uma pessoa doente ou incapacitada, não obstante ter aquele papelinho.

Mas depois há isto, hoje é a terceira vez. Morrem familiares de amigos e eu não consigo lá ir. Quero a morte a uma distância muito grande de mim, temo aproximar-me. Logo eu que que brinquei em cemitérios e que nunca tive qualquer medo de entrar num. Até os acho lugares de boas histórias.

Hoje o arrepio foi ainda maior, nem conhecia a pessoa, era apenas familiar de um funcionário do lugar onde trabalho. Mas ela já me tinha contado várias vezes e sempre para me dar esperança: a minha mãe teve o mesmo e está viva e bem. Agora já não me poderá soprar tal alento. 

Talvez tenha ficado uma pequena ferida.

~CC~

quarta-feira, 20 de novembro de 2019

Lugar de palavra



Olho para ela, é só uma delas.

Desinteressada, alheada, sempre calada.  Quantas delas passaram por aquelas cadeiras.

Agora há um lugar de palavra nas aulas. Toma o lugar quem quer e fala, conta-nos alguma coisa, o que quiser.

A morte do pai, a mãe ligada à máquina, a profunda solidão. Bati no fundo disse ela. E houve alguém que lhe entregou um papel, uma professora. Foi um passaporte para algo mudar. Hoje caminha num equilíbrio instável, baloiça o corpo para um lado e para o outro, conquista cada dia.

Estes dias têm sido tristonhos para mim. Mas hoje ao ouvi-la senti que afinal tudo ainda faz sentido. Que eu ainda faço sentido.

~CC~

terça-feira, 19 de novembro de 2019

Mas cabe perguntar...



Ele fez uma das canções da minha vida. Poesia maior, músico gigante. Algumas das suas questões nesta música foram, são e serão sempre minhas, se calhar vossas.

Em tudo que já fomos está o que seremos
No fundo desta noite tocam-se os extremos
E se soubermos ver nos sonhos o processo
Os passos para trás não são um retrocesso 

A noite é um sinal de tudo quanto fomos
Dos medos, dos mistérios, das fadas e dos gnomos 
Da ignorância pura e da ciência irmã 
Em que, sendo passado, já somos amanhã 

A noite é o espaço vago, o tempo sem história 
Em que as perguntas nascem dentro da memória 
Em tudo que já fomos está o que seremos 
Mas cabe perguntar: foi isto que quisémos? 

Em tudo que já fomos está o que deixamos
No fundo das marés, nos portos que tocamos
O rumo desvendado, o preço da bagagem
É tudo quanto resta para seguir viagem

A noite é parideira da contradição
Que existe em cada sim que nos parece não
Olhando para nós, os grandes dissidentes
No meio da luta entre lemes e correntes

Será esta viagem feita pelo vento
Será feita por nós, amor e pensamento
O sonho é sempre sonho se nos enganamos
Mas cabe perguntar:como é que aqui chegámos? 

Em tudo que já fomos estão os nossos mortos
E os vivos que ficaram entram nos seus corpos
Na noite do amor, na noite do sinal
Naufrágio de fantasmas na pia baptismal

A noite é o impreciso e escuro purgatório
Que alinha as nossas almas no seu dormitório
A culpa dos heróis é serem sempre poucos
Acaso somos mais, ou tão somente loucos

Temos que descasar a culpa e o prazer
No que fizemos ou deixamos de fazer
Para reconstruir os corações cativos
Mas cabe perguntar: acaso estamos vivos ?

Em tudo que já fomos há um sonho antigo
Conversa universal de cada um consigo
São sombras e brinquedos, tudo misturado
E o vago sentimento de nascer culpado

Será um sonho absurdo este olhar p'ra dentro
E o nosso destino, só, servir de exemplo
Andamos a fugir à frente desta vida

Mas cabe perguntar:existe uma saída ?

José Mário Branco

domingo, 17 de novembro de 2019

Coisas perdidas



Se encontrares um brinco cheio de missangas branco, comprei-o numa loja de artesanato em Monchique e é pouco provável que volte lá tão cedo, além disso, sendo um produto artesanal, não há outro igual. Gosto de usar coisas brancas no Inverno. Esse brinco faz parte da minha fortuna pessoal, era importante que o devolvesses.

Se encontrares a minha luva preta, com capa dupla de lã, são as mais quentes que alguma vez tive e suporto muito mal o frio nas mãos. Não sei onde a comprei mas não foi em nenhuma loja comum, dessas que há em todos os centros comerciais, era importante que a devolvesses, sem ela a minha fortuna pessoal está incompleta.

Mas se encontrares a minha indignação, não a devolvas, guarda-a para ti. Eu tenho-a em dose tão excessiva que por vezes me é letal, tira-me o sono e a alegria. Sem ela a minha fortuna pessoal também estará incompleta, mas como está sempre a nascer, haverá sempre uma boa dose para deixar como herança.

~CC~

sexta-feira, 15 de novembro de 2019

O meu manual de auto-ajuda


A mim não me chateia nada o facto de me tentarem impingir produtos na rua, à excepção talvez das duas senhoras das bíblias que encontro à cadência de uma vez por semana. Desmemoriadas da última vez que lhes disse não tenho interesse, aproximam-se sempre.

Os parques de estacionamento à beira Sado são uma espécie de bazares, como não, ao preço que custa a travessia, é gente com poder de compra. E inevitavelmente à medida que envelheço as palavras Ó menina têm mais musicalidade. Por isso a menina recusou com um sorriso aberto os óculos de sol de marca tão conceituada vendidos a um preço irrisório e produto de boa qualidade, só não esperou ouvir a resposta: então assim, ó menina, como é que o cigano vai comprar o Ferrari?! Ele riu-se e eu ri-me com ele, divertidos.

Digo-vos com quase toda a certeza de uns anos que passei a estudar a psique, o meu manual de auto-ajuda só tem uma frase de jeito: ria de si próprio. Não dará grande edição, nem ficarei minimamente rica. Mas olhem que me tem dado jeito. 

~CC~


quinta-feira, 14 de novembro de 2019

Terra fria


Podia ser eu, podias ser tu.

Só em certa parte podia ser eu, se calhar não podias ser tu.

Às vezes tive muita vontade de chorar como ele o faz numa cena do filme, ri-me muitas outras vezes. É um filme doce, comovente, hilariante, a viajar entre o documentário e a ficção.

Aquele Portugal que achamos que não existe mais está ali inteiro, vibrante, ao mesmo tempo triste e intensamente alegre. E frio, sente-se o vento a soprar entre as pedras. O mais bonito, porém, é que o realizador, também protagonista do filme, nos mostra esses montes áridos onde o vento gela a pele sem ter qualquer intenção declaradamente política. Que bonitas são aquelas pessoas a falar, a esconder, a encolher os ombros, a não julgar, a interrogar deus e o diabo na terra. Daquelas mãos saíram, por certo, os nacos de broa que salvaram as crianças de morrer à fome. 

É isto Bosto Frio, ou para mim foi isto.

Fiquei com muita vontade de procurar o meu avô, enterrado algures num cemitério em Luanda. Sei tão pouco sobre ele.

E no fim, generosamente, o jovem realizador veio falar connosco.

~CC~


quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Indignações



São artistas amadores e queriam dizer poemas em público em homenagem à autora, espectáculo gratuito é claro. Meia dúzia de jovens a querer ou pelo menos convencidos a dizer poesia é uma bênção. Mas não puderam, ou melhor, para o fazer teriam que pagar uma quantia avultada à família da autora. Percebo que a família cuide de homenagear os seus mortos, não deixando que tudo possa ter o nome deles e velando por alguma qualidade, mas que se agarre assim à autoria, cobrando-a, é uma coisa que me custa a aceitar. Mais ainda quando é uma família que percebemos que não precisa desse dinheiro. 

Jovens a dizer poesia para mim estariam sempre autorizados, como não se percebe que a luta passa por não a deixar morrer, sobretudo a de qualidade. Imagino-a viva, contente no meio deles, ela que queria a poesia na rua, é isso que mais dói. 

~CC~

segunda-feira, 11 de novembro de 2019

Aguardando pelas minhas asas


Novembro está traçado para mim no formato da formiguinha, indo e vindo no caminho sem quase descanso, por inevitabilidade de poder escapar ao meu destino. Constato, contudo, que me é cada vez mais difícil o percurso pelo carreiro, o esforço, o transporte da carga, o cumprimento do objectivo. O que me resta de brio é aplicado a tentar fazer com que a tarefa tenha um mínimo de brilho e encanto. Sei, porém, que é o possível nascimento das asas, que de momento estão recolhidas, que fará de mim a outra formiga que na verdade já sou.

~CC~

domingo, 10 de novembro de 2019

Viciante


Não é uma quinta como as outras, é a quinta das canções. Tem apenas um problema, vicia mais que cuidar da horta ou apanhar fruta. Depois de ver a primeira, vi a segunda, terceira...todas as quintas há uma nova, gravada assim, com a simplicidade de quem ama a música e ama o público. Tudo grátis e à distância de um clique. Dizem que são as suas inspirações, a mim também me inspiram e muito.

Gravam às quintas mas são ideais para um bom domingo. Ora digam lá qual gostam mais. Eu estou indecisa, mas além da 19, um clássico tão encantador, adoro a 10, tanto pela letra e música do Manuel Cruz, como pela maneira como ele a canta:

A minha mulher não é minha
É da cabeça dela
Mesmo achando que sim
Não precisa de mim
Isso é o que me agrada nela
(...)

~CC~

sábado, 9 de novembro de 2019

Momento Life Style



Dizia o poeta que todas as cartas de amor são ridículas. Não serão todas, mas um dia já escrevemos ou escreveremos uma. 

Longe de se pensar apaixonar por um gato, a Susana rendou-se aos encantos de uma gatinha e trouxe-a até nós. É linda de facto. É tão bom fazer o que nos apetece, num blogue e na vida.



Todos temos os nossos momentos tontos, as nossas cedências, os nossos pontos fracos. 

Num dia cinzento e solitário atravessou-se um vestido azul de florinhas no meu caminho. E pronto, achei que com ele tudo ficaria um bocadinho melhor. O folho batia nas botas pretas compridas e quase rasas. Não tinha bem nome para aquele azul e o Outono não traz azul mas amarelo e castanho, não traz flores mas folhas caídas. Parece, contudo, que os vestidos de flores são uma tendência. Parece é que há muitas e muitas tendências, ora ainda bem. Está feito o meu momento life style. 

~CC~

quinta-feira, 7 de novembro de 2019

O Narciso e a Transparente


O Narciso desta vez ficou à minha frente e, acreditem, a sala é bastante grande. E da outra vez a aula era à tarde e hoje foi de manhã, ou seja, o homem tem pouca rotina, lá nisso...

Um mistério este homem. Continua a usar alças mas a inscrição era ainda mais estranha: alterações climáticas?! A culpa é do...narcisismo! Ou seja, ele é um Narciso anti narcisista, o propósito da sua vida é a luta contra o narcisismo envergando estas indumentárias sempre. Contudo, talvez a propaganda não seja a mais adequada às aulas de Yoga. Será que também coloca estas inscrições nas camisolas e nos casacos que leva à rua?

Tem uma amiga que é quase transparente, aliás só há magros nas aulas, não sei se frequentam estas aulas por já serem magros ou se a saudação final que fazemos,  assim como as várias com que brindamos o sol, têm poder de emagrecimento. Eu ainda não dei por nada e creio mesmo que já estou perto do limite de peso para a frequência.

A Transparente, pela sua quase não existência, é a única que consegue fazer todas as posições que a professora faz, ela dobra-se, equilibra-se, contorce-se, enfim, é capaz de colocar as pernas atrás do pescoço e de elevar o corpo deixando apenas uma mão no chão. Já nós, uns mais atabalhoados que outros, lutamos para não cair redondos nos tapetes.

O Narciso e a Transparente não combinam em nada, ele é alto, moreno e deve fazer também musculação, ainda que sem muito exagero. Ela é pequenina, loura e estreitinha e tem uns olhos azuis, azuis desses transparentes. Mas que sei eu de combinações?! A rapariga que acabou de fazer a saudação final do Yoga em voz convicta e comovida saiu da aula de Yoga e entrou na de Cycling onde a música alta tem uma batida capaz de acelerar um coração até ao limite. Como é que ela combina uma coisa com a outra?

Tenho muito a aprender neste ginásio. É pena que o frequente tão pouco.

~CC~



terça-feira, 5 de novembro de 2019

Arbutus Unedo



Quando eu voltar virei buscar as vidas que não tive ou não fui capaz de ter. 
(inspirado na Sophia e na Ana)

Podia ter sido apanhadora de medronhos por exemplo, palmilhando os lugares da serra onde eles crescem mais vermelhos e mais doces, equilibrando o meu corpo para não cair nas veredas, ajudando os ramos a dobrarem-se com a ajuda do caibro. Respiraria o ar mais puro, sentiria as pequenas gotas da chuva sem mágoa, teria as marcas da lama na roupa de levar ao campo que não se lava se não no final da semana. Seria muito mais terra.

Teria sempre um problema, o de não comer os medronhos à medida que os apanho como fiz no sábado passado, na serra de Monchique. Outro problema ainda: o de gostar muito mais do fruto do que da dita aguardente, excessivamente forte para meu gosto. E talvez fosse uma vida cheia de solidão, pois contam-se pelos dedos das mãos as pessoas que ainda apanham medronho. Não é fácil, fizemos uma apanha comunitária com mais de 30 pessoas e mal chegámos a dois baldes cheios.

Há quem lhe chame os morangos do Outono. São quentes, entre o doce e o ácido, entre o pêssego e o maracujá.

~CC~

sábado, 2 de novembro de 2019

Ò menina, nada mais fácil do que encontrar o seu cartão de cidadão! (III e último)


Parte III (último).

O agente voltou do telefonema com um sorriso aberto, visivelmente feliz, muito embora o que tivesse dito à menina era que já podiam ir à esquadra, coisa que ela não aceitou de bom grado, recusando-se a sair dali com ele. Perante a recusa, o agente sublinhou que a visita era totalmente no interesse dela. Pelo meio lançou-se numa confissão sobre a sua obsessão por manifestações e protestos públicos, lugares verdadeiramente interessantes para testar as competências de um bom detective. Conseguir, por exemplo, identificar os agentes da polícia à paisana, os manifestantes pacíficos dos interessados em causar confusão, os afectos aos partidos políticos dos não afectos, os iniciados dos profissionais e por aí adiante. E de repente, interrompe a sua dissertação sobre as manifestações:

- A menina por acaso levou uma mala Chanel à manifestação?
- Mas que disparate é esse?!
- Pois, bem sei que não levou... e uma mochila? 
- Nem pensar, as mochilas nos tempos que correm são sempre suspeitas. A polícia anda sempre atrás das pessoas com mochila.
- Pois, a menina levou tudo nos bolsos das calças, preferência calças de ganga, certo?
- Sim, o TM, uma nota de cinco euros e o cartão do cidadão.
- Pois, eu sabia. E entretanto a menina sentou-se aqui e ali...
- Sei lá onde me sentei, nos degraus das escadas dos prédios, provavelmente...
- Já viu a sua sorte?
- Qual?
- Há poucos prédios com porteira em Lisboa e logo a menina se sentou à porta de um. Viu, coisa mais fácil, liguei à Lingrinhas que ligou à esquadra mais perto da manifestação e lá estava....você é uma menina com sorte!
- Realmente, lembrei-me lá da manifestação e da esquadra, olhe, pronto, realmente tenho que lhe agradecer.
- Sim, sim...e ao lado da esquadra há um barzinho simpático, como não perdeu a nota de cinco euros, ainda bebemos uma imperial, certo?

~CC~


quinta-feira, 31 de outubro de 2019

Ò menina, nada mais fácil do que encontrar o seu cartão do cidadão! (parte II)


PARTE II (continua...pronto, prometo que só até à III).

O agente trouxe duas chávenas de chá a fumegar e fez um gesto de negação perante a ideia dela pagar o chá. Depois tirou do bolso da gabardina a garrafinha de aguardente e deitou um trago dentro do chá, perguntando-lhe se ela também queria dar graça ao chá. A menina não pode deixar de exprimir a sua rejeição. Já tinha perdido a aula e agora estava a perder a paciência: - Avance, avance, o que me quer? Mas o agente não parecia ter pressa. Disse-lhe que achava que já a conhecia, que o rosto dela lhe era estranhamente familiar. Noutras circunstância a menina teria achado aquilo conversa de engate, mas nestas não fazia sentido.

Vejamos, a menina não foi à manifestação dos precários na semana passada?
- Fui sim senhora e para a próxima haverá greve...não me diga que o senhor agente está ao serviço do governo e espia manifestantes!
- Olhe bem para mim, acha-me com cara de trabalhar para o governo? Faço uns biscates neste ginásio e pouco mais.
- No ginásio, que diabo, que há para investigar num ginásio?
- Você já viu os músculos desta gente, não me diga que acha que isto é dos batidos proteicos ou dos sumos Detox? Oh minha linda, mas em que mundo é que você vive?
- Eu quero lá saber, só vinha à aula de yoga para ver se me faz dormir melhor.
- Voltemos ao caso, a menina não tem o cartão do cidadão e quer entrar numa aula onde está a ministra da Saúde?
- Da Saúde? Eu dessa lingrinhas não quero saber, eu queria falar era com a do Trabalho!
- Agora que fala na Lingrinhas, tenho que lhe telefonar, beba o seu chá que eu já volto.

~CC~


quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Ó menina, nada mais fácil do que encontrar o seu cartão do cidadão!


PARTE I (continua...)

Andava há muito tempo a dormir mal e a recusar as pílulas que o médico lhe queria dar, nem pensar em viciar-se nelas. Por isso e a custo lá se decidiu pela segunda receita: umas aulas de yoga. Não que acreditasse muito no efeito, mas mal não lhe devia fazer.

Fez tudo on line e lá chegou à primeira aula, estranhou, no entanto, uma espécie de Segurança à entrada quando lhe tinham dito que era só marcar o seu número de sócia e a barreira abria. O senhor, completamente anacrónico no seu fato e gravata, estende-lhe a mão e diz-lhe: - o seu cartão de cidadão, por favor. Era o que a menina mais temia mas arrisca a resposta: - cartão do cidadão para entrar num ginásio?!  Tinham-me dito que bastava o número de sócia...

Imperturbável ele responde: sim, a aula das 21h conta com a presença da senhora ministra, ninguém entra sem cartão do cidadão. Ela nem pensou duas vezes, tal o coração lhe saltou no peito, pensando na hipótese de uma conversinha com a senhora ministra, tinha muito a dizer-lhe: - ah, ela está aí, ainda bem, preciso mesmo de falar com ela! A voz do Segurança subiu uns decibéis: - tem mesmo que me mostrar o seu cartão de cidadão!

Lá teve que lhe dizer que o dito andava há dias desaparecido. O sobrolho do Segurança alterou-se e sacou um telemóvel do bolso pelo qual chamou alguém. A menina já não queria ir a aula nenhuma e disse que se ia embora, ao que ele respondeu: - não, não pode, teve um comportamento muito suspeito, temos que interrogá-la!

É então que ela vê chegar o segundo homem, a antítese do Segurança, barba e ar desleixado, uma gabardine que parecia não ver água há muito tempo, numa das mãos um cachimbo apagado. Com um sorriso estende-lhe a mão: - Agência do Ó, é um prazer. A menina indigna-se: - mas eu estou presa? E o agente que não, que nem pensar, estava ali apenas para conversar com ela, era uma pena era o bar do ginásio não ter imperiais, nem vinho, nem sequer um licor, só batidos proteicos e outras coisas sem piada alguma. Mas poderiam tomar um chá. A menina estava furiosa, mas na verdade tinha sede, um chá talvez não calhasse mal.

~CC~

Tudo começou aqui mas já anda por aí, a correr mundos e fundos.





segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Narciso



Em vez das duas vezes de semana de yoga tenho feito duas aulas por mês. Esta minha irregularidade faz com que nunca conheça bem os parceiros de jornada, em regra bem mais sérios e regulares. E alguns deles parecem conhecer-se há anos, combinam coisas entre eles e mostram fotos do fim de semana. Sou uma estranha.

Nunca tinha visto o homem que ficou tão perto de mim que quase quebrava a bolha dos 20 cm, o que me tornou a aula especialmente difícil. Primeiro, o senhor ligava o turbo sempre que a posição era complexa, ou seja, ouvia-se-lhe a respiração em grande esforço, o que não é comum nestas aulas que primam pelo silêncio. Depois trazia uma tshirt cheia de bonecos e frases, o que também não é vulgar na indumentária desta frequência quase zen. O pior é que estava tão perto que conseguia ler as frases. O título era "narcisismo" e por baixo coisas dos género "eu só me amo a mim", " eu sou o melhor", etc. Ainda por cima era de cavas. Estava espantada, passei o tempo a tentar concentrar-me.

Só no final da aula consegui ler as letras miudinhas que estavam por baixo das frases maiores a enaltecer o narcisismo, dizia "tudo tem tratamento". Ainda assim questionei-me sobre a utilidade de usar tal coisa. Só lhe perdoo se foi uma prenda do dia do pai, sabemos que mesmo que sejam pirosas, as amamos sempre. 

~CC~

domingo, 27 de outubro de 2019

Fuga



Ele diz-me que não sabe qual foi o dia mas foi de certeza no Outono. Foi nesse tempo em que a luz diminui e o frio chega, quando as primeiras chuvas assustam as flores e os pássaros.

Diz que também não sabe a idade da menina, embora eu lhe responda que isso é impossível. Não se pode ter esquecido, então ele aponta um intervalo, aí entre os 6 e os 8.

Digo-lhe que tem que saber as razões para a partida dela e ele fecha os olhos, posso então ser eu a ver que ainda há um vestígio de dor. Nega-me essa dor, afirma que até foi bom ter criado sozinho a filha, hoje mulher adulta e próxima.

As mães que deixam as filhas ao cuidado dos pais são para mim o maior mistério da humanidade. Não as consigo condenar, não as consigo simplesmente entender. E por não as conseguir entender faço-lhes a cartografia do abandono e da fuga.

~CC~

sábado, 26 de outubro de 2019

O milagre



Ela chegou à minha escola com o avental de todos os dias, coxeando ligeiramente, mas aos 85 com o mesmo brilho no olhar que deve ter desde menina. No saco, uma dúzia das suas plantas e muitas mais nas mãos dos três companheiros. Foi às 9h15m que nos encontrámos mas disse-me que de manhã já tinha andado a plantar, o que seria de manhã...

Os companheiros das plantas, um agrupamento informal e meio anárquico que resiste a ter mais do que um endereço de contacto, tem mais homens que mulheres mas é a ela que eles recorrem sempre que há dúvidas. E assim aconteceu naquela sessão, ela sabe tudo de cor, é uma enciclopédia. Cada planta tem uma função, um bem e às vezes um mal, é preciso amá-las e ter-lhes respeito. Tudo o que ela aprendeu foi com os antigos, pois como me disse mais do que uma vez, é analfabeta.

Mas foi o seu saber que curou as feridas de muita gente. É preciso que me mantenha por perto e a vá visitar um dia destes. Há pessoas que não fazem milagres, são elas próprios o milagre.

~CC~


domingo, 20 de outubro de 2019

O mundo todo



O congresso organizou-se no país interior neste fim de semana de frio e chuva intensos, muito nevoeiro também. Fiz pelo menos 300km pouco habituais, felizmente com mais colegas. Queria ter-me deixado contaminar mais pela pedra escura da cidade, pelos olhos das pessoas, pela beleza das árvores grandes que só mais a Norte se encontram, mas o desconforto do corpo não deixou.

Calhou-nos aquela moderadora que aposta na diferença. Nada de CV triviais, enviou-nos perguntas mais difíceis do que as que constam no questionário da última página do semanário Expresso. Fui deixando por responder até receber a mensagem de aviso, precisamente na noite anterior à minha comunicação.

Percebi que para metade das perguntas podia socorrer-me dos poetas que se infiltraram na minha pele. Para responder à pergunta sobre uma citação de um livro que dissesse algo sobre mim, era só viajar até aos bocadinhos da Sophia que sabia de cor. E ocorreu-me aquele de toda uma vida: quando eu morrer voltarei para buscar os instantes que vivi longe do mar. E de repente um arrepio. Não era capaz de dizer isto num lugar tão longe do mar, o que sentiriam as pessoas dali, como encarariam isto? Risquei. Escrevi: terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo. Também era verdade. E assim, se ofendesse alguém, era logo o mundo todo.

~CC~

terça-feira, 15 de outubro de 2019

Sim, já é Outono


Qual foi o dia exacto em que calcei meias? Em que tive frio de noite? Em que não consegui tirar os sapatos e andar descalça pela casa? Quando comecei a fechar a janela da sala?

Também tento dizer a mim própria que é bom. Tento agarrar-me à cor das árvores para amar a mudança de estação.

Mas a minha pele rejeita a lã, os pés rejeitam o aperto dos sapatos, perco os guarda-chuvas. E agora dói-me absurdamente o ouvido, latejando.

Custa-me, custa-me a habituar-me a esta transição. E não é propriamente pela chuva, pela chegada da chuva, em algures lugares de África chove muito.

É uma sombra, a chegada de uma sombra. É a minha luta para que não me engula, não me absorva, não me entristeça.

~CC~

domingo, 13 de outubro de 2019

Folia



Gosto desses lugares onde os escritores se mostram ao mundo. Mas respeito imenso também quem não se mostra. E há quem cante as letras dos escritores, dando-lhes ainda mais sentido. Por isso vou ao Fólio sempre que posso. Raramente dou o tempo por perdido. Magnífico, por exemplo, ver o presidente cabo verdiano que é poeta também a ler um texto denominado "A banquinha" (assim chamada em Cabo Verde, mas é "mesa de cabeceira" em português de Portugal e "criado mudo" em português do Brasil). Um presidente que esteve muitas vezes presente, não foi lá só ler os poemas dele, esteve várias vezes na plateia só a ouvir. Uma raridade nos dias de hoje em que as pessoas só vão às coisas para se ouvir a si próprias.

Ouvir ler alto quando quem o faz bem é muito bonito, as palavras soltam-se sonoras, saborosas, um encanto. 


Mas às vezes há limites, há exageros. E há autores que lêem mal a sua própria poesia. E há autores muito novinhos que já falam de si como se fossem um prémio Nobel. E mostram a sua agenda intensa como se a vida já lhes tivesse mostrado muito mais do que mostrou. Como diriam os nossos irmãos de além mar, o que é bom de repente fica ruim. Também há disso e é pena. E folia, folia eles têm pouca, parecem já ter nascido sérios e empertigados.

Gosto de escritores que para além de nos contarem a tristeza profunda que os habita, sabem rir.

~CC~





terça-feira, 8 de outubro de 2019

Podia ser outra



Quanto eu queria aprender a não dizer tão assertivamente o que penso. Quanto eu queria aprender a não ser tão transparente relativamente ao que sinto. Teria outro conforto, outra tranquilidade, a soberba da indiferença.

~CC~

segunda-feira, 7 de outubro de 2019

Notas breves da noite longa


Na Rua da Índia podemos falar de política se nos apetecer. Não amarrar este blogue a um formato foi uma decisão em prol da  minha liberdade. Se aprecio blogues temáticos e os que são bem focados numa linha editorial? Sim, claro. Mas não tenho vida para criar vários, se assim fosse, teria este e outro(s).

Breves notas da noite:

Discursos dos líderes da esquerda em geral equilibrados e bem construídos, excepção à nota da Catarina Martins sobre a Inclusão, uma indirecta ao Livre de que não gostei. Não sei se a coragem de uma nova gerigonça se irá sobrepor aos egos individuais.

Um PSD que com este líder resiste ao populismo, que ele não saia nem se renda à direita liberal e populista. É moderado e simpático, mas de quando em quando hesita e falha em questões relevantes.

Pena que seja uma mulher a sair da liderança de um partido político pois necessitamos de mulheres na liderança política, contudo, isso não pode falar mais alto, é mulher mas também pessoa e como pessoa disse-me muito pouco. O perigo é que o partido se vire para a extrema direita.

Gostaria de ver surgir um verdadeiro partido ambientalista, este não está preparado. Por isso não consigo festejar o seu crescimento. Na minha terra cresceu imenso, foi praticamente o único a lutar contra as dragagens no Sado, enquanto outros não apareceram, estiveram contra ou envergonhadamente a favor.

Triste ver chegar partidos de extrema direita populista ao parlamento, mostra que não somos imunes ao que se passa na Europa em termos de racismo e xenofobia. Afinal basta fazer uns cartazes insultuosos ou/e falar mal dos ciganos.

A abstenção não será toda igual, no outro dia ouvi uma crónica na rádio de um abstencionista confesso que quase me fez vacilar, extremamente bem feita e coerente. Quando a estudaremos?


~CC~


quinta-feira, 3 de outubro de 2019

Desgosto


Eu sou de um tempo em que os fascistas não se atreviam a distribuir propaganda na avenida central da minha cidade. 

Acho que tudo começou a mudar quando a CDU escolheu a cor azul como sua.


~CC~

terça-feira, 1 de outubro de 2019

Da vida dos objectos



O sofá está velho e manchado.

A máquina de lavar roupa está presa com aquele clip que lá colocaste. O último técnico ditou-lhe sentença grave, preço exorbitante de arranjo. E ela lá continua a funcionar, tem dias, é verdade.

A máquina de lavar loiça só funciona com o programa económico, a baixa temperatura.

Há loiça com os rebordos falhados.

O tapete precisa de ir para a lavandaria, esteve aqui um ano sem ir a banhos.

O carro já foi a uma das lavagens anuais, tenho esperado pela chuva.

Sei que o programa que vi sobre o prolongamento da vida dos objectos me influenciou, mas já vinha de antes, não sei quando começou esta minha reserva. E se eu gosto de coisas novas e lindas. Nunca fui muito consumista nem deslumbrada mas gosto da beleza e estética das coisas. Mas ando à procura de novos equilíbrios. Afinal também eu sou um objecto partido e consertado.

~CC~




segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Outono (II)



Dois testes de resiliência.

A despedida dos banhos de mar.

A primeira aula com os estudantes novos, no 1º ano do ensino superior.

Não posso avaliar qual custou mais. São custos talvez diferentes.

Mas um e outro deixaram-me o corpo cansado e a cabeça flutuante.

Uma nota positiva do primeiro: a praia voltou a estar tão tranquila.
Uma nota positiva do segundo: pareceram, no mínimo, curiosos.
Uma nota negativa do primeiro: as despedidas dão-me vontade de chorar.
Uma nota negativa do segundo: nenhuma das perguntas que fizeram era verdadeiramente interessante.

Quando o Outono avançar poderei saber mais e ainda outras coisas.

~CC~


quinta-feira, 26 de setembro de 2019

Outono (I)



O que não gosto no Outono é esta velocidade que parece chegar e invadir-me sem perdão. Não vejo os dias e quando dou por eles já é noite. As tarefas acumulam-se sempre sem parar e há sempre algo em falta. As pessoas comentam como estou mas eu olho-as espantada pois quando o fazem apercebo-me que nem me olhei ao espelho. Esta passagem brusca do fruir do tempo à corrida contra o tempo é esgotante. Hei-de estabilizar, voltar a poder falar comigo.

~CC~

segunda-feira, 23 de setembro de 2019

Crónicas de Verão (X)




Adeus Verão, adeus 54.
Acho sempre estranho nascer com o Outono. Depois recordo-me que não nasci neste continente.

~CC~

segunda-feira, 16 de setembro de 2019

Crónicas de Verão (IX)



Este foi um Verão atípico, passado quase tanto a norte como a sul. Dizem que estava calor antes de vir. Mas assim que chego a temperatura desce e as nuvens chegam, digo-lhes que não pode ser de mim pois eu traria sol, mas não acreditam, dizem que sou mesmo eu, que sem saber carrego a chuva. Ai se assim fosse, eu iria para tantos sítios que precisam de mim. 

A maior tristeza do Verão são as lagoas e os rios quase secos, os campos da cor da terra, o gado a passear com sede. Estas e outras coisas procuramos esquecer nos nossos banhos de mar. Não discordo, não podemos sofrer sempre, mas estou certa que se não sofrermos um bocadinho por causa disto, os desertos ganharão terreno.


~CC~

sábado, 14 de setembro de 2019

Crónicas de Verão (VIII) com dedicatória



Para a Maria das Estevas.
(por si, abro a excepção de publicar fotografias de comida, coisa que não gosto nada, mas só lhe digo, é delicioso, ligeiramente picante).

sexta-feira, 13 de setembro de 2019

Crónicas do Verão (VIII)


Há sempre um dia no Verão em que chove. Este Verão também. Estava em Santiago de Compostela e choveu tanto que tive que ir comprar um guarda chuva, o que fiz no mercado que é especialmente bonito. Gosto dessa água quando chega com calor, lembra-me a infância. Se ela chegar com frio, já não a sinto da mesma forma.

E há também sempre um dia em que tudo corre mal. Em que o teu cansaço embate na minha energia. Em que o teu desconforto por estares longe de casa embate na minha alegria de nada conhecer e estar totalmente perdida. Em que tu paras, não queres ir mais a lado algum. Em que eu quero ir especialmente a um sítio fazer uma coisa que se apossou de mim com uma vontade férrea. Nesse dia costumas ver turistas em todo o lado e pior que tudo costumas sentir-te um turista, para ti não há nada pior. Já eu não costumo importar-me muito, aceito a circunstância de estar numa praça linda cheia de gente que, como eu, a acha linda.

Nesse dia eu queria comer polvo à galega, queria comer do polvo feito na rua, em tendas. Tu querias tudo menos comer o que quer que fosse, quando ficas assim, até o apetite perdes. Andavas a custo atrás de mim e eu tentava não entristecer da tua tristeza. Tanto me apetecia abraçar-te e consolar-te como fugir de ti, como fazem os miúdos que se perdem de propósito das mães.

Há sempre um dia mais triste no Verão, mesmo assim eu esgueiro-me com mais facilidade dessa tristeza, debato-me, faço-lhe frente. Se for Inverno, derroto-me mais facilmente. Sim, é isso que amo mais no Verão, esse borboletear que se apossa de mim, sou facilmente pássaro e flor.


~CC~


quarta-feira, 11 de setembro de 2019

Crónicas de Verão (VII)



Estou a lutar para manter o Verão dentro de mim. Não está fácil. Nos momentos mais intensos de trabalho passo a língua pelos lábios e tento que me saiba a sal.

~CC~

domingo, 8 de setembro de 2019

Crónicas de Verão (VI)



Tantos anos passaram. 

As meninas são já adultas e outros meninos tomaram o lugar delas. O mais velho e único rapaz já teve filhos, as nossas meninas ainda não. Há tanto tempo que não estávamos juntos aqui. Deixámos passar alguns Verões, há sempre um vai e vem de gente e é raro coincidirmos de férias agora. 

Tudo é igual sendo já tão diferente. O senhor das Bolas de Berlim (sim, que esta praia sempre teve um único vendedor) tem agora no filho um ajudante e não as consumimos à razão de uma por dia, todos os dias. Há tantas algas verdes claras que os nossos corpos e cabelos ficam cheios delas. A água voltou a estar quente como antes, mas as ondas não eram habituais. Registamos e comentamos tudo, o que se mantém, o que mudou, o que nos agrada e o que nos desagrada. Olho-nos e não sei como resistimos a tantas coisas, algumas que nos iam derrubando para sempre. Sinto o coração cheio desta luz de setembro.

Nunca tivemos uma casa de família, um lugar para nos encontramos, o nosso território. Afinal se calhar é esta praia, é aqui o nosso lugar.  Nunca ninguém o irá herdar, a não ser que queira. E passará de geração em geração sem escrituras nem impostos.

~CC~






segunda-feira, 2 de setembro de 2019

Crónicas da estação quente (V)



Começava Agosto, era o dia primeiro.

E tinha começado quente, abrasando todos aqueles montes sem mar. A cidade sufocava, era aberta ao sol pois os Invernos eram apesar de tudo mais longos e muito frios. 

O relógio batia as quatro da tarde na praça central, a única sombra era a das duas esplanadas, quase cheias. Estavam lá mães, muitas mães, ainda relativamente jovens. Estavam umas poucas avós com netos. Estavam senhoras recém entradas na reforma, bem arranjadas, num encontro entre elas. Numa das mesas também homens, relativamente jovens, não sei se pais pois as crianças não estavam junto deles. E a praça tinham destas fontes modernas que nascem do chão, jorrando água de quando em quando, num jogo de repuxos.

As crianças tinham-se juntado todas junto dos repuxos de água, um grupo delas entre os quatro e os doze anos. Eram já um bando, umas oito, em escadinha. Primeiro elas apenas andavam, cruzando os espaços entre os repuxos, apanhando apenas uns salpicos. Até que a primeira se descalçou. Até que uma outra tirou a camisola. Até que a brincadeira já não era evitar a água mas tentar apanhá-la. 

Os pequenos gritinhos de alegria dos meninos chegaram à esplanada. As mães e as avós deitaram as mãos à cabeça. Ai que se aleijam, ai que se magoam, ai que se constipam. Até que uma se riu: deixem lá os miúdos, fazem eles bem, está um calor insuportável. E as outras riram-se também. Vamos fingir que não vemos disse a primeira que se riu. E continuaram a conversar umas com as outras.

Depois uma das senhoras sem netos disse: aqueles miúdos ainda se magoam! Os homens olharam pela primeira vez. Uma das mães disse: se calhar já chega. Foram buscá-los, não sem luta, claro. Uns vinham em pingo, outros apenas salpicados, elas fingiam que se zangavam, engolindo o riso.

No meio da confusão, ainda ouvi uma menina ruiva a dizer para o rapaz muito moreno: amanhã vens?

~CC~








domingo, 1 de setembro de 2019

Crónicas da Estação quente (IV)



A areia é fina e a água transparente, não tem algas, costuma ser fria, mas nem sempre. As dunas são lindas, cobertas pela vegetação que só na areia cresce.

O barco demora 15 minutos e a caminhada até à praia 10 minutos. Fica assim praticamente ao lado de casa.

Pergunto-me assim porque fui tão longe e do que fui à procura se o paraíso mora ao lado.

~CC~



quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Crónicas da estação quente (III)


Apenas ela tinha ficado na aldeia, as outras irmãs tinham partido uma a uma. Ela não conseguia deixar lá a mãe sozinha, depois da morte do pai.

Começou primeiro por ir à Igreja por excesso de tempo livre, a mãe nem lho pedia, acompanhava-a. Ainda lhe sobrava tempo depois da horta, de dar comida às galinhas e aos coelhos, dos bordados, da confecção dos doces. E acreditava em Deus como qualquer coisa que a acompanhava, uma parte da sua pele, um golo da fonte da aldeia, um bocado de broa cozida no forno de lenha, o riso dos meninos que vinham em Agosto encher de vida a Aldeia.

A princípio nem reparou bem nele, era um pouco mais velho que ela, cinco, dez anos, não sabia. Os padres para ela nem tinham rosto. Mas um dia entrou e estava um homem sentado no banco e chorava baixinho, quando ela se aproximou percebeu que era o padre, sem batina, como um homem normal. Colocou-lhe o braço por cima e assim ficaram algum tempo, bastante tempo. Naquele dia nem soube qual a razão daquele choro, só muito mais tarde. Certo é que e se começaram a entender e a amenizar a solidão um do outro. Talvez se soubesse, talvez nunca se viesse a saber. Não fora a sua barriga ter crescido sem motivo outro que não fosse carregar lá dentro uma criança. E ela querer essa criança como nunca tinha desejado nada antes. E ao contrário de outros ele ter dito: quero dar-lhe o meu nome. Nos primeiros meses depois da criança nascer, todos sabiam e calavam. Eram assim algumas aldeias, compassivas, clementes, dispostas a perdoar para ter um padre amável, simpático, que os ouvia e acolhia. O celibato não era nenhum juramento feito às pessoas, era a uma instituição.

Mas houve um telefonema a avisá-lo de que teria que escolher e como ele não o tivesse feito, chegou a carta. Era clara a ordem de expulsão e a proibição de dizer missa, fosse onde fosse. Mas como se expulsa alguém da sua terra e se tira a fé a alguém que a tem?

Não se sabe quantas pessoas ajudaram. Parece ter sido feita de noite. E era tão pequenina a capela que não cabiam mais que uma dúzia de pessoas. Mas ainda lá está. E foi nela que o padre disse missa durante o resto da sua vida. Ainda tiveram mais uma criança. Consta que as pessoas deixavam sempre qualquer coisa para os ajudar, às vezes durante a noite, para não afrontar o padre oficial que entretanto tinha chegado.

Eu estive lá e não rezei por não saber fazê-lo. Mas fiz um brinde com a seiva das flores, um desses brindes que por se fazerem em Agosto, só podem ser ao amor.




~CC~

PS (1) Inspirado, é claro, numa história verdadeira.
PS (2) Para boas crónicas de Verão, inspiradoras para mim, ler " A vez da Maria" e o Sr. Impontual.

terça-feira, 27 de agosto de 2019

Crónicas da estação quente (II)


Tudo começou por causa da Alexandra e do seu desafio. Pensei logo em colaborar, esta espécie de jogo em que mostramos só um bocadinho tem piada, mais pelo lado da brincadeira da coisa, o que escolhemos de nós? O melhor, o pior, o que nos mostra, o que nos esconde? Os poemas também não são as coisas mas bocados delas, eles não mostram o mundo, mostram só a imagem que dele criamos.

"show us a part of yourself", disse ela. E até a Ana mostrou o seu olho azul ou verde ou castanho, suspeito que cor de mar.











Na estação quente prefiro os vestidos, leves e brancos. 
Depois da quimioterapia e por causa do cateter implantado não podia usar alças, dele resta essa pequena cicatriz junto à clavícula, é a recordação do objecto que comigo viveu dois anos. A fotografia dos joelhos não mostra a outra cicatriz, essa é de infância e resultou de uma correria desenfreada para fugir de um primo que me perseguia, caí mesmo em cima de um prego, acho-a a cicatriz mais mal feita que algum dia vi em alguém e por causa dela usei saias compridas muito tempo. Agora já nenhuma cicatriz me importa.

~CC~


PS. Alexandra, tenho lido sobre as doenças dos parentes e amigos próximos. Saiba que quem nos ama e está connosco na luta é essencial, sem pieguices e sem pudores, tudo o que lhes puder dar, dê.


segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Crónicas da estação quente (I)





O tempo que eu demorei para chamar casa a um lugar. E sem casa não há para onde voltar.

~CC~



sábado, 24 de agosto de 2019

Taxa de esforço



Quando a Catedral Notre Dame ardeu, vários multimilionários ocorreram, oferecendo uma parte da sua fortuna para minorar o estrago. E agora onde estão? A Amazónia está a arder, será que já sabem?!

~CC~


Acrescento 2 dias depois: Obrigada Leonardo DiCaprio, Presidente Macron e artistas brasileiros que saíram às ruas do Rio de Janeiro, organizadores da manifestação em Lisboa e...todas as vozes que se erguem. Certamente o dinheiro não é tudo, mas ajuda, é assim em qualquer calamidade.

quinta-feira, 22 de agosto de 2019

Para além do mar



É muito raro valer a pena trocar o mar de Verão por qualquer outra coisa, ressalva feita para montes que são mares para os olhos e nos abrem horizontes (Trás os Montes, no início de Agosto).

Mas há coisas que valem. Até porque o palco pode não ser bem um palco mas um largo, um convento, um salão, as ruas de uma cidade. E as ruas de uma cidade são a sua festa mais sagrada.

~CC~


sexta-feira, 16 de agosto de 2019

Namoro astral


Tenho trabalho redobrado durante as férias. Dois trabalhos importantes.

Há que ver o sol a pôr-se e a lua a nascer. Nestes últimos dias as cores têm sido deslumbrantes, ele despede-se vermelho fogo e ela nasce com a cor que ele deixou, talvez apenas ligeiramente mais clara. Quando isto se passa entre o sol a mergulhar no mar e a lua a nascer na ria, as águas ajudam a que todos os brilhos ganhem luz.

Tão bela que é a terra neste namoro com os astros em pleno Verão. Tremo ligeiramente só de pensar que um dia o homem pode interromper esta harmonia.

~CC~


quinta-feira, 8 de agosto de 2019

Paninho branco bordado


Os seus gestos tinham uma mímica única e a voz um ciciar lento, falando muito perto de nós e olhando-nos por breves momentos nos olhos. Falava muito dos seus meninos, das missões, do modo como fazia o seu trabalho, curiosamente nunca usando a palavra Deus. Como estava de férias e em casa de família não usava o hábito, por isso não sei se a conhecerei quando trajada a rigor. Assim que acabávamos de comer, levantava-se para nos tirar os pratos, não queria deixar-nos levantar para ir buscar alguma coisa ou para arrumar o que quer que fosse. Era talvez das únicas coisas que me incomodava verdadeiramente, como se servir os outros nas suas necessidades lhe estivesse entranhado até às células. Calava-se quando se contavam as histórias indecorosas dos padres da terra, ligeiramente incomodada, mas por breves momentos acho que lhe vi quase um sorriso. Apreciava-lhe a tranquilidade, a doçura, a paz. Às vezes parecia ficar triste, por exemplo quando falava de como a obrigaram a deixar o lar e o trabalho que a tinha ocupado durante onze anos, mas para logo resignar-se a uma nova morada, outra cidade, outro trabalho, afinal era mesmo assim, o normal era mudarem de sete em sete anos.

Interrogava-me amiúde como é que se aprendem gestos, um modo de falar, de estar, de pensar, que educação é aquela que penetra tão fundo. Nunca tinha vivido três dias na mesma casa do que uma freira. 

Guardo o paninho branco bordado que me deu, aquele abracinho terno e um respeito grande por quem é quem quis ser, ainda que me interrogue também se não tinha que ser quando se é uma de oito numa aldeia dos anos quarenta do século passado, em Trás os Montes.


~CC~

quarta-feira, 7 de agosto de 2019

Prova de fogo


O amor é uma coisa que demora tempo e tem que ser aprendida. O amor dá trabalho, as relações longas são uma prova de fundo, só digna de alguns corredores que aguentam nas subidas, embalam nas descidas e conseguem apanhar o ritmo durante as rectas. As desistências são muitas, também já desisti algumas vezes. E além disso a paixão, as relações breves, têm o seu poder de atracção. Mas desgastam-nos mais, consomem-nos. É claro que há quem prefira. Mas esta prosa é para os outros, para quem quer permanecer.

O amor muda porque nós também mudamos e precisamos de acompanhar as nossas e as mudanças do outro. Nesse caminho, é muito fácil que nos percamos. É muito fácil que tudo se torne um lago de águas paradas, uma busca de conforto e segurança, apenas o laço que se tem para impedir a solidão. Nesse caso só se precisa de coragem, desistir da corrida é o melhor, não porque não se é capaz, mas porque a prova não vale a pena, ou já não vale a pena.

O tempo de férias é muitas vezes a prova de fogo. Há tempo, o dia todo com o outro por perto, às vezes longe de casa onde não há os cantos habituais de refúgio, não há como evitar-lhe os olhos, as manias,  o que deslumbra e o que irrita. Como tantas mulheres e tantos homens, saí sem intenção de voltar depois de umas férias. E pensei muito sobre isso. 

Como justamente potenciar o encontro e não o desencontro, aproveitar o tempo maior, descobrir ainda coisas do outro ou nos descobrirmos a ambos em certos e outros lugares?

E de cada vez que regresso feliz, não isenta de sobressaltos e pequenos momentos infelizes, mas ainda assim mais rica e com histórias vividas a dois, acho que aprendo, vou aprendendo, vamos aprendendo.


~CC~





domingo, 28 de julho de 2019

Veja com o coração que tem



Cada um vê uma cidade com o coração que tem.

É linda a vieira que simboliza a cidade de Santiago e para mim ela é água e mar e o arrepio de beleza que me provoca é fruto da minha rendição à natureza, do meu respeito por ela. São também belas as construções medievais, a pedra escura que respira entre os parques verdes cheios de Camélias. O modo como as múltiplas igrejas escuras se intrometem no céu azul.

Vejo que para eles a emoção é outra e procuro entendê-la nos muitos rostos que esperam e esperam para dar um abraço ao apóstolo dentro da catedral. Mas sinto dificuldade em perceber o que encontram e porque se comovem assim. A cidade deles é outra, mas igualmente bela, intensa e comovente. E todos cabem cá, cada um com a sua emoção, se nos respeitarmos.

Uma cidade vê-se com o coração que se tem. Eu vi-a comovendo-me com os símbolos e frases que por todo o lado se afirmam contra a violência machista, com a vontade de me deitar nos muitos tapetes de relva dos parques, com a admiração pelos múltiplos museus de arte contemporânea em que se afirmam exposições que são gritos de revolta pelas misérias da humanidade. Vi-a admirando o modo como falam e escrevem a sua identidade por todo o lado, sem sufocar com ela.

Sabemos que o turismo faz viver e que o turismo mata. E não há um turismo mau e um bom, por mais que gostássemos de ser os do lado bom. Mas o turismo pode ser mais inteligente do que é agora. Andámos por ruas apinhadas e andámos por bairros lindos quase desertos, parques vazios e museus sem ninguém. 

Podemos levar de cada lugar não o que todos querem ver, o que é preciso ver, o que nos dizem para ver, ou não apenas isso. Podemos levar o que o nosso coração escolhe.

~CC~





quinta-feira, 25 de julho de 2019

Chuva de Verão


Os dias têm um acordar cinzento e levemente molhado e poderia facilmente ficar triste, não fora ter decidido que quero ser feliz.

Pode parecer estranho tomar esta decisão. Mas conheço pessoas que parecem ter tomada uma decisão contrária e tudo ou quase tudo as parece tornar infelizes. Em alguns casos talvez não sejam bem elas, é uma derrota a puxá-las sempre para baixo, um interior que fica facilmente mais cinzento que estas manhãs do norte. Dizemos-lhes que são bonitas mas elas acham que troçamos delas. Dizemos que têm valor mas elas desdenham desse nosso olhar. E tudo o que lhes dizemos tem que ser bem medido, pois sabemos que a mais leve das críticas abre um poço fundo. Então, já nem sabemos bem que dizer-lhes.

Os dias de verão costumam nascer luminosos e azuis no sul que conheço bem. Mas aqui não nascem  ou não nascem tantas vezes e aceito-o com a naturalidade de quem escolheu estar noutro lugar e tem que o aceitar como ele é. Mas conheço pessoas que querem estar sempre noutro lugar, estão sempre a pensar em mudar para um lugar que por ser perfeito só existe na imaginação delas, pois quando lá chegarem quererão outro. Cansam-se e cansam os outros nesse caminho.

A decisão de ser feliz foi acontecendo em mim e materializou-se com os anos, à medida que ia valorizando o facto de só ter esta vida. Se tenho mais desconheço-o e por isso não posso trazê-lo à minha consciência como ingrediente de felicidade. A chuva desta manhã é só uma chuva de Verão, apagará fogos, molhará a terra, deixará meninos tranquilamente em casa com os seus brinquedos e mudará os planos de algumas famílias, reinventarei os meus.