Sete anos depois ainda sinto a angústia colada à pele. O frio da sala do bloco cirúrgico é diferente de todos os outros, o tremor que ele traz também. O coração salta-nos no peito e a tensão sobe até que a droga faz efeito e sumimos dentro de nós. Entrei era dia, acordei era noite cerrada. A alegria de estar viva, ainda que muito adormecida, depois de dez horas num outro mundo desconhecido, é algo inesquecível. Ainda que depois disso tudo tivesse corrido inesperadamente mal. Mas aí já foi a batalha dia a dia, coisa a coisa, dor a dor, quase sempre consciente, muitos dias imóvel e depois reaprender tudo; a andar, a comer, a tomar banho e, sobretudo, a rir.
Não soube de mim durante muito tempo, era outra eu, o corpo sofreu mudanças substanciais, algumas pessoas passavam por mim na rua e não me cumprimentavam, não me reconheciam. Se assim foi comigo, imagino como será com pessoas que passam por mudanças corporais ainda mais abruptas, que perdem ou danificam alguma parte (mais) visível do seu corpo. É viver num território estranho mas esse território somos nós próprios.
Mas cheguei aqui, sete anos depois. E quando olho no espelho, pareço mais eu, uma mistura entre aquela que entrou para a sala de operações e a que de lá saiu. Também foi preciso amor. Aquele que temos que sentir por nós, ainda que muitas vezes ele tenha estado num nível muito abaixo do desejável. Todo o sofrimento, mesmo o que se infiltra nas coisas pequenas dos dias, me pareceu depois mais intolerável, mais injusto, mais desnecessário. A história está contada por inúmeras pessoas, está longe de ser só minha, é a de todos os que sobrevivem. Queremos luz, leveza, carinho, confiança, ligações indestrutíveis para levar connosco até ao fim da vida. E mesmo quando não temos tudo isso, agarramos com muita força o que temos e continuamos a vir à tona de água, respirando, respirando sempre. Afinal ganhámos uma nova vida, não a podemos desperdiçar na sombra da noite.
~CC~