domingo, 26 de março de 2023

Coisas de nada

 

Mergulhar a desilusão no fundo de mim e esquecer que existe para poder fazer emergir outras coisas, as melhores.

Colocar o trabalho não em segundo, mas mesmo em terceiro ou quarto lugar, depurando dele apenas o que importa.

Aproximar-me do corpo e da suas dores sem pânico, tentando escutar, perceber, dominar.

Celebrar as pequenas vitórias que significam vida, mesmo que assombrada, necessariamente diferente.

Já há morangos e daqui a nada haverá cerejas, posso sustentar-me do seu sumo.

É assim que a vida se vai fazendo, um puzzle de coisas de nada.

~CC~

terça-feira, 21 de março de 2023

Primavera, poesia.

 

Sentei-me à mesa e pedi.

Podia ser capuchinha, dente de leão, lavanda ou acácia branca.

Ou todas elas como salada.

Retiraria, claro, cada uma delas, a fim de distinguir a sua especificidade

Depois misturaria todas.


Tinham todas as flores

Teria que escolher

Só não tinham amores perfeitos

Justificaram

São muito perecíveis e morrem assim que se colhem.


Lamentei assim não poder identificar o sabor dos amores perfeitos.


~CC~




domingo, 19 de março de 2023

Partilha

 

Alimentei os pardais com migalhinhas do queque, partilhando satisfeita com eles uma parte do lanche.

 Assim sabemos que envelhecemos.

~CC~

sexta-feira, 17 de março de 2023

Dessa paz

 

De exercício de superação em exercício de superação sinto que avanço em direcção a um lugar que é próximo da paz que senti quando consegui boiar no azul do Índico. Dizer não sem gritar, dizer sim sem sofreguidão.

O desprendimento alcançado não como lugar de inacção perante o mundo, qual monge budista. O desprendimento como lugar daquilo que é realmente importante e de quem o é. Tanta espuma dos dias, tanta necessidade de admiração, tanta palavra dita a mais, tanto desperdício, tanta gente, tanto lixo.

Quero poucas coisas agora. E das poucas, quero muito algumas. Hoje consegui uma dessas coisas, libertar-me do que antes tanto me magoou. Já não importa, já não me importa.

~CC~


domingo, 12 de março de 2023

Nasceu um sonho

 

Ainda a tempo de dizer que hoje foi o dia da minha imperatriz, embora ela seja plebeia, ativista, revolucionária e tenha aquele sonho lindo de mudar o mundo, a cidade, o bairro, a sua própria profissão.

Com ela, por ela, sempre.

~CC~


sexta-feira, 10 de março de 2023

As estevas

 

As estevas já ladeiam todos os caminhos, veredas e estradas no Alentejo.

Aspiro esse cheiro e bebo da sua beleza a esperança, é a natureza e são os colos dos amigos.

Querida amiga, havemos de vencer mais uma vez.

~CC~

domingo, 5 de março de 2023

É o teu dia

 


Quando às vezes espreito os teus olhos, aparece lá no fundo um miúdo tão rebelde quanto encantado pelo mundo. Quando às vezes espreito os teus olhos, surge um adulto que ainda quer aprender coisas, alguém que não desistiu do apetite da vida. Não obstante o vazio que ronda de quando em quando, do fundo dos fundos emerges sempre. Brindo hoje, com muita ternura, a esse que se ergue e se reconstrói. Brindo também ao desamor não ter vencido.

Não deixes secar o rio da tua infância, bebe dele e dos futuros possíveis.

~CC~




quarta-feira, 1 de março de 2023

Lá no bairro

 

Quando eles saíram com o cabelo comprido atado num carrapito, vestidos de preto integral mas com um cachecol colorido e distribuíram uma plantinha verde por cada mesa da esplanada, achei que combinavam na perfeição com o "aqui é vegan" do restaurante de bairro. Depois distribuíram os cinzeiros pelas mesas e fiquei com algumas dúvidas. A seguir sentaram-se a fumar um cigarro e beber uma imperial e não percebi bem, pois entre o fumo e o álcool e um bifinho, achei o último menos mau. Mas que sei eu dos segredos do veganismo.  

~CC~

sábado, 25 de fevereiro de 2023

Rosário (V)

 

Quantos anos levou apenas a olhá-lo? Quanto tempo pode durar uma paixão quando não se consome em boca, em corpo, em cama partilhada e dias azuis? Quando fica no limbo do tempo, em esperanças colocadas em banho maria?

Via-o todos os dias naquele seu ar desengonçado, modos envergonhados e olhar deslumbrado pela cidade. Ligava muitas vezes à namorada que tinha ficado no interior, no lugar em que ambos tinham dado as mãos pela primeira vez à saída da escola. Quando vens, dizia ele, quando vens, dizia ela. Nenhum deles ia, ela bem podia ver. Por isso aguardava que aquele namoro pudesse chegar ao fim e um dia ele dedilhasse para ela uma canção, erguesse os olhos e visse os dela cravados nele. Nada acontecia porém, um dia atrás do outro eram vividos em círculos de amigos. 

Não se lembra do dia em que ele não apareceu mais no café em que se encontravam, certo é que lhe disseram que a aventura na cidade tinha chegado ao fim, certo também que nem se tinha despedido dela e isso confirmava as suas suspeitas, a sua ligação era um vento fátuo e sem força. 

Guarda-o no baú das paixões breves e não correspondidas, mas também no das que não doem e quase não têm rosto. Os olhos eram trigueiros e os cabelos cor de mel, é disso que se recorda, e também do seu nome. Rosário preferia as paixões platónicas como aquela, eram histórias que acumulava num lugar de uma existência vivida no centro da timidez. Apenas uma vez alguém tinha tido coragem de romper a sua bolha, avançara para a sua boca com ímpeto e ferocidade, tinha ficado assustada e feito tanto esforço que aprendera a gostar, depois a desgostar. E agora era assim, apaixonava-se pelos vizinhos casados, pelos músicos de rua, pelos escritores nas feiras de literatura, por certos actores em certos filmes, em síntese, pelos homens impossíveis.

~CC~





quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023

Lá na minha rua

 


Lá minha rua passam às vezes estas mulheres com um sorriso tão grande. Olho-as e vejo outra vez a estrela do mar que passou ao meu lado no oceano índico, quanta beleza.

~CC~


terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

Terça de Carnaval

 

Os olhos tão secos ardem e incham. Estão cheios de uma tristeza que não consegue tornar-se lágrimas. Precisava de chorar um rio inteiro.

Como não consigo, vou contigo ver o mar transparente e manso desta nossa península. 

E volto melhor.

Outro dia talvez consiga chorar. Ou ainda melhor, talvez consiga rir.

~CC~

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

Breves fugas

 

Voltam as poeiras do outro lado do mediterrâneo. Tento que me digam coisas sobre esses outros lugares que não conheço nem conhecerei. Tenho cada vez mais a consciência de onde não poderei ir, marco esses vazios do mundo. De outros não chegam poeiras mas ecos lancinantes de tragédias múltiplas, a Turquia de construções feitas mortalhas.

Ao mesmo tempo sonho ainda com aqueles sítios alcançáveis, variando entre o frémito do desejo do Mindelo e a paz da ilha da Flores. E com estes exercícios faço as minhas fugas, os intervalos de trabalho, como aqueles que se levantam para ir fumar um cigarro e espalham no ar os círculos de fumo (tanto que o meu pai fez isso).

~CC~



sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

O mesmo e ainda assim já outro

 

Desta vez apenas fotografei com os olhos aquele Alentejo.

Não fora a sopa de cação e a fatia de sericaia e tudo seria outro lugar qualquer, não o território que antes era celeiro. Agora há hectares e hectares de olival e amendoal, com rega gota a gota e proprietários sem nome nem rosto conhecido. Assim que a noite cai grupos de jovens de tez mais ou menos escura vagueiam pela cidade como pirilampos sem luz. Usam mochilas onde parecem levar tudo o que têm. Acho que são as novas ceifeiras, os novos explorados do mundo. Nas aldeias não há já tendas de circo como nos livros do Manuel da Fonseca. 

Saio de madrugada e chego ao anoitecer ao centro e já não vejo velhos, nem cães vagabundos, nem sequer gatos. O sítio em que estou é também um não lugar, uma casa antiga restaurada mas mobilada a móveis baratos suecos que no pequeno almoço tem 3 tipos de leite vegetal e 3 tipos de pão (des)congelado. 

Onde estás Alentejo que não te sinto. Sobrou a pronúncia tão bela nos miúdos enregelados nas manhãs de escola deste mês de Fevereiro. 

~CC~





terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

O que festejo

 

Seis anos, seis anos.

Uma manhã que se prolongou até à noite desse dia, dez horas a dormir no lugar frio, no lugar escuro.

E estou aqui, mais do que sobrevivente, viva.

Festejo isso que é tanto. 

~CC~


sábado, 11 de fevereiro de 2023

Outros carnavais...

 

Iniciar o dia com crianças tão pequenas, mal me lembro como era conversar com elas, mas tento.

Então meninos, de que se vão mascarar?

Vamos de fruta saudável!

De quê?!

Eu vou de morango e ela de maçã.

Não estou preparada para estas respostas, fiquei sem saber o que dizer. E fiquei algum tempo a pensar no assunto, com pena destes miúdos que já não se vestem de fantasmas, bruxas, piratas, dragões...

~CC~

domingo, 5 de fevereiro de 2023

A forma

 

Não procures apenas as palavras certas mas o modo de as dizer. É no tom, na modulação, no gesto que as acompanha, no modo como olhamos, a forma transmite tanto quanto o conteúdo. 

É assim que chega o calor ou o gelo, que chega a doçura ou a distância. Se eu pudesse escolhia apenas formas redondas de falar. Escolhia formas que fossem balões soltos no céu, formas que fossem peixes vagarosos a esgueirar-se entre os corais, formas que fossem sopros de vapor a cortar o frio.

~CC~

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

Voltas para mim?!

 

Cheguei ao inevitável estado de secura da alma, parece ter fugido de mim para me poder tornar a máquina das dez horas diárias de trabalho.

Oxalá volte, não gostava de ficar assim.

~CC~

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

A pior

 

Tarefas domésticas?!

Hesito na que será pior para mim: passar a ferro ou levar o lixo? Claro que esta é uma conversa para quem as tem que fazer todas e não tem separações entre os membros do casal, filhos, ou outros afins. Numa eventual divisão há pelo uma que não me importaria de fazer amiúde.

Então e vós?

~CC~


domingo, 29 de janeiro de 2023

Mês de todos os medos


 

Dizia o Salvador Sobral que era um rapaz melodramático, quando estava triste ouvia canções tristes para chorar e viver plenamente a dor, nada se se alegrar para esquecer. Concordo com ele, há que escavar bem o buraquinho pois é no fundo dele que o sol se encontra. 

Alguns podem até achar esta canção alegre, a mim só me leva às lágrimas. E há esse mês a chegar, Fevereiro, é o meu mês do medo, da dor, da solidão maior, das pequenas vitórias, das grandes interrogações. Este ano tenho uma coisa a ajudar: inspirarei muito Alentejo.

~CC~


sábado, 28 de janeiro de 2023

Dia ganho

 

Final da aula da manhã de hoje, sempre aquele receio da pergunta, mas faço-a: digam lá o que é que posso melhorar...

Só queremos perguntar uma coisa: vai ser nossa professora no 2º semestre?! Risos, festa...volte professora, volte. Adultos, alguns o dobro de mim, alguns muito próximos da minha idade.

Esqueçam tudo o que disse sobre cansaço, sim, ainda vale a pena.


~CC~

quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

Descanso

 

O pensamento mais negro ocorreu-me ontem, pensei em desligar para sempre o telemóvel e ter apenas um telefone fixo secreto para familiares e amigos. Todos os dias o telemóvel toca com um pedido de trabalho, um convite para mais qualquer coisa, se pudesse alegrava-me, mas o excesso é tal que ocorre o efeito contrário. Desisti pelo receio que o telefone fixo não tocasse, um pensamento talvez ainda mais negro.

Há um momento em que respiro, é quando seco o cabelo à janela e vejo uma nesga de rio lá ao fundo e os dois castelos, cada um na sua colina. Há paisagens piores, há vidas piores.

~CC~


terça-feira, 24 de janeiro de 2023

Laurinda (IV)

 

Naquele tempo não se podia amar tudo e todos. Uma rapariga amava um rapaz e um rapaz uma rapariga. Por isso ela lembra-se daqueles seis meses de inebriamento como uma memória não autorizada de si mesmo. Agora que o perigo passou e já envelheceu o suficiente, pode recordar-se da boca mais bela que alguma vez viu, do modo dela sorrir, do calor dos seus corpos quando dormiam encostadas. Uma única vez sentiu que era um calor excessivo, uma vertigem para lá do que era suposto.

Ela não sabe se outros passam por um momento assim, em que não sabem para que lado pende a sua orientação sexual, nunca falou desse assunto com ninguém. E quando pensa que podia ter amado uma mulher, pensa só e exclusivamente naquela amiga que era como um junco verde e cujos lábios tinham o tom das cerejas. Tudo morreu ali. Mais tarde Jacinta ainda a viu umas quantas vezes mas nada nela era igual, tinha amadurecido e a idade abafou a sua frescura juvenil, a sua beleza emergente, a sua inocência. Ambas se tinham casado com homens e tido filhos, sido mais ou menos felizes. Agora, ambas sozinhas, nunca se encontravam ou se viam, Laurinda evitava-a mesmo, do mesmo modo que evitava o seu corpo e a sua sexualidade. Contudo, quando se permitia tocar-se, mesmo ao de leve, era a memória da amiga jovem que emergia.

~CC~





sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

A mão na mão, a mão no ombro

 

Uma e outra e outra vez a certeza de que nos momentos difíceis aqueles que nos dão a mão emergem como o andaime, a força, a sustentação da vida, quer seja no campo pessoal ou profissional.

E dar a mão não é ser uma voz doce, concordante ou alinhada, É o modo como essa voz se ergue, como se modula, como até pode exigir mas mesmo tempo que dá e ampara.

Tenho vivido dias intensos destes, em que tenho que ser essa mão no ombro que vai agarrar as lágrimas que descem pelo rosto de alguém, mas tenho tido também essa necessidade. De algum modo isso tem acontecido, mesmo que não sempre, não no imediato, nem sempre de quem espero. No outro dia aquele baloiço na árvore no final de um sábado de trabalho, aqueles áudio de ex-alunos gravados para chegarem até mim, aquela companheira nova de trabalho que me disse: gostei.

~CC~

domingo, 15 de janeiro de 2023

Gabriela (III)

 

Aquele beijo aos doze anos tinha sido bruscamente interrompido pela voz da irmã mais velha dela. E ela também tinha dito que se se voltasse a repetir, iria contar aos pais. Gabriela não repetiu. Talvez tenha sido esse medo, talvez apenas por serem tão novos. A verdade é que aos treze já frequentavam escolas diferentes. 

Anos mais tarde era mesmo ele junto ao camião de mudanças, apenas duas casas a seguir à sua. Retomaram a amizade, agora como vizinhos adultos, cada um com a sua família. Assistiu ao modo como a família dele foi crescendo, chegaram rapidamente às três crianças. Ela não,  primeiro por opção, depois por inércia e por fim por já não ter com quem. Os miúdos na verdade tinham quase crescido nas duas casas, eram como sobrinhos para ela. Nunca, em todos esses anos, uma palavra sobre cada um deles ter sido o primeiro amor do outro. Gabriela acreditava mesmo que ele já nem se lembrava. E havia harmonia, entendimento e paz naquela família, como tal ela não faria nada que perturbasse aquela união que só não designava como feliz por ter medo de o fazer. Na verdade não tinha sequer inveja, ela tinha outro rumo, outro modo de estar, não se arrependia do seu divórcio e amava a sua liberdade, a profissão leva-a para tantos cantos do mundo que estar amarrada a uma casa era impensável. Mas não podia negar que ele ainda a perturbava um bocadinho, que tinha arrumado tudo num canto e não queria mexer. 

Quando ele enviuvou sentiu-lhe a tristeza de perder a companheira de uma vida. Nos dois anos seguintes mal o viu, os filhos vinham buscá-lo com frequência, já eram adultos e tinham construído as suas vidas noutras cidades. Ela, bem pelo contrário, gozava finalmente a sua casa, a lareira, o silêncio, o prazer de ler. A amizade que durante anos tinha existido parecia ter-se evaporado, até aqueles que designava como sobrinhos já mal lhe batiam à porta. Mas depois ele foi voltando, estando mais por ali, sorriam, cumprimentavam-se, sentavam-se à mesa do café quando calhava, trocavam livros.

Tinha aberto aquele livro com muita curiosidade por ele ter dito que tinha gostado muito. Quando o abriu caiu qualquer coisa, parecia um talão de multibanco. Mas era afinal um bocadinho de papel, nele estava escrito: Temos um beijo por retomar.

~CC~






segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

Nadine (II)

 

Tinha aquele nome que se estranhava mas era só uma miúda de aldeia. É bem verdade que tinha nascido em França mas tinha sido ali, entre pedras e vento, que crescera. Era a última filha, já tardia e numa fase em que os pais já tinham decido regressar, amealhado que estava o bastante para garantir a velhice no lugar em que se falava a sua língua.

E o nome combinava com aquele ar trigueiro, olhos esverdeados, cabelo alourado, tez branca. Tinha qualquer coisa de anjo, até por não ser especialmente faladora e distrair-se com facilidade. Sempre na lua, como dizia a mãe. Fez a escola na aldeia, depois o Ensino Básico na vila e para frequentar o Ensino Secundário foi para a sede do concelho. Tinha facilidade em aprender mas nenhum gosto especial por nada e desviava o assunto quando lhe falavam em futuro e em profissões. Costumava dizer que queria continuar a aprender, a aprender para sempre. Também não tinha interesse por rapazes, nem por namorar, recusara todas as aproximações e convites. 

Até que lhe apareceu outro anjo. Era tão parecido com ela que podiam ser irmãos. Conheceu-o na turma do Ensino Secundário. Eram os únicos a participar de forma interessada e constante nas aulas de Filosofia. Depressa se tornaram amigos e quase inseparáveis, protegendo-se um ao outro constantemente. Nas férias de Natal, cada um retornou a casa. Ela sofreu horrores com aquela separação forçada. Mas a felicidade chegou em forma de postal, um poema e no final a frase: já com saudades tuas.

Se ela era um anjo, agora vivia literalmente nas nuvens. Contudo, nada acontecia, ela não era capaz de dizer que o amava, não se tocavam. Até que chegou aquele dia de Maio, aquela noite quente e estrelada. À tarde ele tinha-a convidado para darem uma volta ao parque depois do jantar. Ela tinha a certeza que a hora tinha chegado, era difícil conter a tremura que sentia nas pernas.

Ele foi dizendo que tinha algo difícil para lhe dizer. E ela que ele lhe podia dizer tudo, tudo o que quisesse. Então, chegou de facto uma declaração de amor, mas não lhe era dirigida. Era sim destinada a um colega de turma, rapaz em tudo diferente deles, doido por futebol e sem pontinha de filosofia. Não era apenas ele gostar de rapazes que a chocava, era também ser aquele tipo de rapaz. 

Ela envelheceu de repente, tirou as asas, e sem elas teve muita dificuldade em voltar a voar.

~CC~



domingo, 8 de janeiro de 2023

Luísa (I)

 

Luísa tinha 42 anos e um divórcio recente. Olhando para si no espelho, achava que nunca tinha estado tão bem. Finalizara uma relação com uma luz tão baça que não lhe foi difícil se iluminar. Mas com duas crianças, uma ainda pequena e outra quase jovem, um ordenado médio, uma casa alugada, não se dava a luxos. Era ela própria que ia às compras, cozinhava e limpava a casa. Tinha pouco tempo mas a amiga tinha insistido muito naquele jantar, que ia alguém que ela ia gostar de conhecer. Normalmente esse preâmbulo era tão assustador que desistia de ir, ao menos as casamenteiras à moda antiga faziam tudo com uma clareza maior. 

Aceitou por o jantar ser num restaurante de que muito tinha ouvido falar. Andou atarefada nesse sábado procurando deixar a casa limpa e o jantar feito para as crianças, uma amiga tinha ficado de passar por lá a apoiar. 

A comida de facto era divinal, as conversas triviais, o normal para quem se conhece pouco. Sentiu-se porém bastante observada, o que a incomodou e deixou pouco à vontade, como era costume, não via a hora daquilo acabar. Como num ritual obrigatório, o tal senhor pediu a Luísa o número de telefone que ela aquiesceu a dar, por educação.

Felizmente ele não ligou. Mas a amiga sim. O veredicto veio claro: gostou muito de ti e achou-te bonita...mas houve um problema...as tuas mãos cheiravam a um desinfectante que devia ter lixivia! Luísa não pode deixar de rir e de lhe perguntar se o senhor era alérgico ao produto. Ela disse que não mas que não se imaginava a estar com uma mulher que não usasse perfume. Respondeu-lhe que da próxima vez as mãos dela poderiam, por exemplo, cheirar a limão ou a laranja de algum cozinhado, com sorte não cheirariam a cebola ou a alho. 

~CC~






sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

Os distraídos

 

Há noites de sonos agitados e breves, com o nariz entupido e um acordar constante.

No meio disso os sonhos são também curtos e lembrados pois não se adormece profundamente. Foi assim que num deles deixei a chave no carro enquanto ia buscar as compras ali perto. E vi claramente o rapaz entrar, ligar o carro e ainda acenar-me.

Os distraídos, esse grande grupo, luto há muito para sair dele.

~CC~

terça-feira, 3 de janeiro de 2023

A primeira do ano

 

Moreninha, encantadora a enfermeira, bem ao contrário da outra que não me queria dar a injecção por não encontrar a prescrição. Esta só se ria: mas alguém vem fazer uma coisa destas só porque sim, isto dói, as pessoas dizem que parecem ter vidrinhos lá dentro por um bom tempo. Sim, é mesmo assim.

Demonstrou interesse, quis saber mais. Contei-lhe o básico.

E ainda saí de lá com um elogio: mas olhe, tem muito bom aspecto, ninguém diria.

O gabinete tem pouca luz, pensou o meu pessimismo, só por isso não viu tanta velhice aqui espelhada em redor dos lábios, o que mais me desgosta. Estou óptima, pensou o meu optimismo, felizmente foi esse a ganhar no adeus, bom ano, até à próxima.

~CC~