sábado, 30 de dezembro de 2023

Desejar 2024

 


Superar o vazio causado por todas as partidas, sobretudo a dela, levada pela morte. Quero que mais ninguém que me é essencial desapareça deste mundo. Mas não só os meus. Sim, quero usar essa palavra funda e negra que a todo o momento assombra os dias de quem mora dentro de guerras que não pediu nem desejou, juntas essas palavras guerra e morte tornam-se ainda mais pesadas e insuportáveis. Milito intimamente para que no novo ano elas desapareçam do horizonte e não assumam a banalidade do mal no diário que as notícias emitem, necessitava de uma militância mais pública em lugar que ainda não encontro. 

Superar o corpo e o que nele avança não rumo à velhice que é o que naturalmente o cobrirá, mas à doença que é o fantasma que o assombra. Possa a máquina não ter que disparar sobre ele anualmente três visões do seu interior para escrutínio médico, lançando dúvidas e hipóteses que ficam a marinar sombras nos dias e se condensam em noites mal dormidas.

Superar o medo de todos os abraços que possam ser voos quentes sobre a pele e desenhar presentes e futuros com a cor pantone do ano. Estão ainda em dívida abraços do ano anterior e não posso passar mais tempo sem os concretizar. Poder, quem sabe, até abraçar quem sendo família não conheço nem nunca conheci e está lá longe, do outro lado do Atlântico.

Superar o desenraizamento que ameaça fazer ruir todos os meus laços com as lugares e as pessoas, ser sempre eu mesma o suporte que permite o encontro, a bonança, o perdão e o riso. Fazer deste estuário o meu porto e dele sair rumo ao mundo.

Superar-me, desafiar-me, desconfortar-me, ir. Deitar-me num campo de tremocilha e respirar todas as estrelas a céu aberto.

~CC~





sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

Uma bela paisagem

 


Um homem lê na esplanada. Não lê jornais ou revistas, tem um livro nas mãos e passa devagar cada página. É raro, é belo de ver. Nem tenho coragem de tirar o telemóvel da mala e ver notícias ou mensagens, tão feio seria estragar com esse meu acto absolutamente vulgar aquele momento. Não consegui ver o que lia, o meu cepticismo sopra ao ouvido se calhar era um livro de autoajuda, o meu optimismo grita com um sorriso: era um ensaio ou um romance de qualidade. 

~CC~

quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Somos de um lugar

 


Eu nem gosto particularmente de fado. Mas gosto de pessoas que não têm medo de dizer onde moram, afinal todos somos de algum lugar, mesmo aqueles que sentem pertencer a mais do que um. Mas aqui não é apenas um lugar, é também uma classe social, também se nasce numa,


~CC~



domingo, 24 de dezembro de 2023

Advento XXI e XXII


 Uma pequena batota como nos calendários com chocolates em que quando a gula apertava se comiam dois chocolates em vez de um e depois se disfarçava tapando o buraquinho com a tampa. Quem é que aguenta tanta contenção e só come um chocolate cada dia, não dobrando ou triplicando e não saltando nenhum?

Assim juntei sábado e domingo num continum. Foi por um bom motivo. Andei à procura de uma árvore de natal e finamente encontrei-a. Acho que também vi a minha mãe na caturra de poupa amarela, um pássaro que ela mimou anos e que um dia lhe fugiu janela fora. E fiz o pudim de laranja com duas das minhas sobrinhas. Limpei uma lágrima da minha irmã. E rir, é tão bom rir com a minha filha e com o namorado por coisas de nada, é tão bom sermos tontos. 


Depois ofereceram-me um livro. E o que tinha? Todos estas crónicas. E assim se fez Natal 2023. 





sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

Advento (XX)

 

Em geral não tenho saudades de ser jovem. A não ser pela capacidade que tinha de me apaixonar perdidamente. Vamos perdendo essa voragem, esse poder de encantar e ser encantado, de dizer palavras sonoras, graves e grandes como "meu amor". Ficam a morrer-nos na boca pouco a pouco essas palavras de incêndio, trocadas por outras pequenas que não deixam marca.

Lembro-me daquele Natal em que recebi inesperadamente um postal daquele rapaz de olhos verdes que há muito eu seguia com intensidade desde a sala de aula até ao pátio e à saída da escola. Trocávamos timidamente poucas palavras naquele ambiente em tudo hostil a pessoas como nós. Ficava a ouvi-lo na aula de Filosofia, embevecida com tanta inteligência. Não achava que fosse algum dia reparar mesmo em mim, quanto mais deslumbrar-se. Quando o postal chegou, com tanta luz, tanta ternura, senti que os meus passos se tinham tornado dança e que se eu abrisse os braços conseguiria mesmo voar. É disso que tenho saudade.


~CC~


quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

Advento (XIX)

 

Ordenando as preferências em doce.

As filhoses da mãe, o pudim de laranja da mãe, a torta de cenoura da mãe.

Falta a mãe. Falta Natal. À volta deste vazio. A tentar dar a volta a este vazio.

~CC~


quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

Advento (XVIII)

 

Não sei como absorvi tanta cultura judaico-cristã sem ter tido uma educação familiar consonante. A verdade é que o misticismo do meu pai foi talvez o factor preponderante antes de eu ter conseguido desconstruí-lo. Passei grande parte da minha vida a tentar ser o que comumente se chama "boa pessoa". Isso incluía grandes doses de generosidade, compreensão e compaixão. Andei perto do "dar a outra face". Custava-me compreender que alguém pudesse não gostar de mim sem nada ter eu feito que o justificasse. Demorei até conseguir perceber bem o verbo reciprocidade e mais ainda a exigir do outro o que eu sabia que dava. Enjoei de mim própria como pessoa boazinha. Só me arrependo disso não ter acontecido mais cedo. 

Esta semana tive a prova da minha cura.

No banco, uma fila enorme, muito tempo de espera. Ajudei uma série de pessoas mais idosas, é incrível como não há ninguém a apoiá-los, assim como duas cadeiras, apenas duas. Sentei uma senhora que coxeava numa cadeira do pessoal do guichet, já que havia cinco e apenas dois estavam a funcionar.  Tenho gosto nisso. Contudo, um dos senhores, também já idoso, culpava os emigrantes da longa espera, entupiam tudo, até os bancos. Não percebi a relação, até porque havia apenas duas mulheres brasileiras que tinham chegado depois dele. A sua retórica, curta e primária, era a que adivinham e rapidamente passou do banco para a saúde e para a educação, segundo ele, não deviam ter direito a nada. Fiz um esforço para não lhe responder. Pouco tempo depois veio perguntar-me qual era a minha senha, por acaso um número antes da dele. Perguntou-me se não me importava que fosse atendido antes de mim pois tinha muita pressa. Importo-me sim, disse eu, e não dei mais nenhuma explicação. Mostrou-me o cartão multibanco que estava danificado e seria simples, eu disse-lhe que o meu assunto era exactamente o mesmo (e era), por isso também seria simples. Chamem-me má pessoa se quiserem.

~CC~



terça-feira, 19 de dezembro de 2023

Advento(XVII)

 E ao décimo sete dia o vírus que andava a germinar instalou-se. Ainda não sei o seu nome mas deve rimar com o frio de Dezembro e com o cansaço. Não será o cansaço de criar a humanidade, mas é às vezes o cansaço da humanidade.

Eu que nem gosto de vinho apetecia-me uma taca dele quente, com especiarias, na ilusão de que perto da terra está a cura, uma vez que mais químico, menos químico, nada parece resultar. Espero que seja só dar tempo ao tempo, assim se curam as viroses de Inverno. E algum gengibre.

~CC~

segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

Advento (XVI)

 

Sublinhar que é a época das maças casanova, sem dúvida as minhas preferidas. Em geral não aparecem nos supermercados, procurem-nas nos mercados e mercearias.

São de polpa rija mas que se desfaz facilmente e têm um sabor agridoce, vermelho claro é o seu tom dominante mas por vezes têm uns laivos verdes. Desconheço-lhes a geografia de origem, muito menos se alguém se reclama como capital do dito fruto, coisa muito em voga. No Sul há.

Ao contrário de outras variedades só cruas são boas, não se devem assar ou cozer. Podia dedicar-lhes um poema, já que o Pablo Neruda fez uma ode à cebola. Vou pedir ao Alberto Caeiro, ele também gostava deste tipo de fruição.

~CC~

domingo, 17 de dezembro de 2023

Advento (XV)

 

Vive ainda hoje em mim a forma como me era tolhida a alegria deste tempo, o esforço que tinha que colocar em cada coisa para que ela fosse aprovada ou pelo menos não fosse rejeitada, acho que o medo me acompanhava à medida que cada dia se aproximava mais. Em pequenas coisas consegui avanços, bocados de luz, árvores de Natal interactivas que inventei, corredores de paz por onde entravam as crianças, depois já adolescentes e por fim adultas. Às vezes até parecia haver algum entusiamo na colaboração ou era eu simplesmente a ver pequenas vitórias, a valorizar o calor do beijo. Mas nunca consegui descontrair e ainda ando a aprender, talvez nunca recupere em pleno, pois nem sempre conseguimos voltar a ser quem éramos, talvez uma parte se tenha perdido para sempre no caminho. 

~CC~

sábado, 16 de dezembro de 2023

Advento XIV

 


Brincando, sempre de forma muito desalinhada, aos postais natalícios. Há quanto tempo não usava carimbos. A mestre deu ideias muito melhores para postais bonitinhos.

~CC~

quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

Advento (XXII)

 

Havia frango assado com muito piripiri, mesas no quintal por causa do calor, árvores do jardim cobertas de luzes de muitas cores. A família paterna era confusa, barulhenta, alegre, causavam-me algum receio por serem tão expansivos. Eu não só era a única criança alourada e branquinha como a única reservada.

O Pai Natal chegaria assim que nos escondêssemos, não nos era permitido vê-lo. Não me lembro exactamente dos presentes, talvez fossem livros, chocolates e por certo as bonecas com as quais pouco ou nada brincávamos. Depois de os abrirmos rapidamente voltaríamos a brincar à apanhada e às escondidas, coisa em que só usávamos os nossos corpos mal cobertos de roupa e os pés descalços.

A neve era uma coisa que eu não percebia o que era, não obstante se usar algodão para se fingir a sua existência.

Com o fim dos natais quentes também despareceu pouco a pouco aquela família alargada, sobrou dela a tendência que temos para elevar a voz, dizer disparates e gostar de piripiri. 

~CC~




quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

Advento (XXI)

 

Velas, gosto muito de velas. Comovem-me.

Talvez sejam o único ícone de Natal que verdadeiramente me toca. Se tiverem cheiro a laranja ou a canela ainda melhor.

Gosto de as acender, não gosto de as apagar. Se pudesse deixava que ardessem até se apagarem por si próprias, como se fossem uma vida que tem que ser contada e vivida até ao fim, sem se extinguir antes de por si própria o querer. Como um amor.

~CC~

terça-feira, 12 de dezembro de 2023

Advento (XX)

 

O mais cómico da quadra é esta mistura de símbolos. Temos um velhote gordo e barbudo de origens nórdicas que a coca-cola, originária do país mais anticomunista do mundo,  reinventou vestido de vermelho. É intrinsecamente generoso e voa com as suas renas pelo mundo inteiro, ainda que os adultos lhe tenham inventado faceta de juiz para julgar os mais e menos merecedores, as crianças têm esperança que a sua bondade prevaleça sobre tais sentenças. Nesta altura Jesus é ainda um menino nu e pobre, aquecido pelo bafo dos animais, não obstante ser filho do ser mais poderoso e dono de todo o universo. As crianças não podem admirá-lo com o mesmo fervor do bonacheirão Pai Natal, não obstante as figurinhas dos animais encaixadas no presépio merecerem a sua simpatia. 

Mas ali na loja do centro comercial tudo se resume à promoção de nesta altura se se comprar 3 peças e se pagar apenas duas e o corredor apresenta-se apinhado de lojas voláteis que antes não estavam lá, abeirei-me de uma delas e perguntei. Responderam que apenas tinham vindo "fazer o Natal", no final do mês seguiam viagem. A maior parte dos brinquedos são de péssima qualidade, integralmente feitos de plástico, irão rivalizar e vencer os peixes enquanto criaturas que habitam o fundo do mar.

São assim as minhas viagens do advento, entre o encanto e o pessimismo. o deslumbramento e o enjoo, ainda e sempre o desejo de observar o mundo, às vezes também de me enfiar nele e pensar menos.

~CC~


segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

Advento (IX)

 


É a época em que os pobres se sentem ainda mais pobres, os que estão sozinhos se sentem mais sozinhos, os tristes ficam mais tristes, os ansiosos entram em crise e os depressivos mais desistem. Isto acontece no meio das luzes mais incandescentes, das montras reluzentes, dos programas com ceias opulentas, dos filmes românticos que nos dizem que o amor acontece ou vai acontecer.

A consciência dessa tristeza no meio de um tempo que deve ser de alegria não me torna triste, só me torna menos ignorante.

~CC~

domingo, 10 de dezembro de 2023

Advento (VIII)

 

Na actualidade sou muito adversa a enfeites natalícios. A eleger alguma, seria esta a minha árvore de Natal. Quem sabe o que é?



~CC~

sábado, 9 de dezembro de 2023

Advento (VII)

 

É verdade, gastava-se excessivamente em presentes.

Ainda assim eu gostava de pensar em cada uma das pessoas a quem os dava. Por vezes também desesperei, sem tempo para os comprar e comprei qualquer coisa ou pedi que alguém comprasse. Não fui sempre fiel ao cuidado que cada um devia merecer-me.

Com a Troika chegou o "amigo secreto" à família. Rendi-me mas nunca gostei de tal coisa. Instalou-se como uma rotina e já não parece haver saída, ainda que faça propostas que permitam outras lógicas.

Hoje recebi a primeira prenda de Natal e a mais vulgar do mundo, uma caixa de bombons. Mas adorei porque foi inesperado e pelo contexto em que surgiu, acho que nem era bem para mim mas a pessoa resolveu dar-me e acho que o fez com carinho, num gesto repentino,

E lembrei-me que era um presente que costumava desejar muito, uma enorme caixa de bombons daquelas que as pastelarias exibiam nas prateleiras, com vários andares e muitas escolhas diferentes. As mais bonitas exibiam pinturas de cidades e as mais pirosas rosas ou outras flores, a marca mal se via, não era assim tão importante. Lembro-me em particular das da Versailles em Lisboa, de ficar a olhar para aquelas caixas que à época ainda se vendiam em "contos" e eram bem caras. As pastelarias pouco a pouco deixaram de as ter nas prateleiras, só as mais antigas o fazem. São os supermercados que as exibem em corredores inteiros mas já sem aquele fausto ou aquela roupagem. O mais curioso é que nem gosto particularmente de alguns recheios dos bombons, gosto é de pensar que não sei o que está dentro de cada um, da surpresa que cada sabor pode representar. Hoje as caixas mais vulgares são uniformes, todos com os mesmos bombons e por isso sem grande piada. 

E assim se perdeu no tempo aquele desejo, por certo tão consonante com a jovem pobre que fui. 

~CC~








sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

Advento (VI)

 

O dia hoje tem o nome dela. E era também dela a melhor receita de filhoses. Fê-las anos a fio até me dizer que já não conseguia. Aceitei o legado, as meninas cresceram a ajudar a estender a massa, divertiram-se a fazer diversos feitios, nomeadamente as letras iniciais de todos os nomes. Não é coisa que possa fazer agora neste apartamento pequenino, um dia talvez volte a fazê-las. Nenhumas de compra sabem ao mesmo.

~CC~


Receita: meio quilo de farinha, um copinho de aguardente, um copo de água com sal, sumo de uma laranja, uma colher bem cheia de margarina, uma colher bem cheia de banha. Mas na verdade a massa fala e tudo se põe a mais ou a menos de acordo com o que diz, é esse ponto que demora a apanhar. Estender com rolo da massa até ficar bem fina (essencial para que fiquem estaladiças) e depois cortar em diversos feitios, abrindo um ou dois cortes pelo meio. Fritar em óleo bem quente e depois misturar em açúcar e canela.

quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

Advento (V)

 

Maria não era a mãe de Jesus. José não era o pai. Esta foi portanto uma das mais famosas adopções da história da humanidade. A prova de que o amor não precisa de correr no mesmo sangue. 

Um dos magos (parece que eram sacerdotes e não reis) era já velho, outro era jovem e outro de meia idade. A pele de cada um era de cor diferente, consta que um um deles seria negro. Um trouxe um presente muito valioso, mas os outros nem tanto, eram simbólicos ou remédios (incenso e mirra). É um elogio da heterogeneidade e não da homogeneidade, do encontro entre pessoas diferentes que fazem um caminho em comum. E da sabedoria, afinal sabiam orientar-se pelas estrelas.

É provavelmente uma história inventada, ainda assim encontro-lhe a beleza que as instituições religiosas (todas elas) raramente souberam homenagear devidamente. Valores essenciais, contudo, em risco.

~CC~


quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

Advento (IV)

 


Aqui começou Dezembro.

Um ritual anual que a pandemia interrompeu mas que pouco a pouco fomos retomando. Estamos 17 anos mais velhos, as violas da casa foram abandonadas pelos adolescentes com as cordas partidas, quase impossível tocá-las. Apenas o bandolim permaneceu igual a si mesmo entoando a nossa canção de sempre: natal africano no coração do Alentejo. A minha escala não mudou, gosto de todos e muito especialmente de alguns. Foram a minha rede em anos difíceis e pouco a pouco a malha tornou-se mais e mais larga, ainda assim existe, mantém-se... e se persiste é por dela ainda precisarmos.

Igrejinha é lugar que se guardou na minha geografia de vida, estou grata.

~CC~




terça-feira, 5 de dezembro de 2023

Advento (III)

 

Era um pinheirinho de Natal artificial com três palmos de altura que ela carregava de bolas, bonequinhos, algumas fitas e luzinhas. Fazia-o com desvelo, não obstante todos os anos avisar que já não o conseguiria fazer, eram as bolas que caiam das mãos e os olhos que já viam muito mal.

Foi assim nos últimos anos, depois dos pinheiros verdes e naturais que a ajudei a carregar anos a fio, muitas vezes trazendo-os nos autocarros cheios de gente. Era um cheiro inconfundível do qual ainda tenho saudades. Mas pouco a pouco fomos percebendo que não era o correcto.

Como é que pode ser Natal e ela não estar cá? Como é que pode ser Natal sem as suas filhoses, a sua torta de cenoura, o seu pudim de laranja? Como é que pode ser Natal sem ter que lhe comprar os postais e os envelopes onde deixava a nota de 20 euros para cada neto. Por fim dizia-me: compra também alguma coisa para ti. 

Como é que pode ser Natal sem ela?

~CC~

segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

Advento (II)

 

Tinha uma grande mochila às costas, podia ser um sem abrigo, um viajante, um caminhante. 

Eu vinha a descer as escadas do castelo e ele ia a subi-las. Fazia-o com muito mais ligeireza que eu, pois teria talvez metade da minha idade. O nosso olhar parou no mesmo obstáculo, uma folhas secas de palmeira completamente abandonadas ali há muito tempo, mas ainda muito bonitas. Tanto eu como ele poderíamos ter saltado por cima delas ou simplesmente contorná-las e seguir caminho. Mas antes que eu o fizesse, ele parou deslumbrado a vê-las. Depois carregou duas a duas encosta abaixo, depois voltou para buscar as outras duas. Eu encostei-me ao muro como se não fosse seguir adiante, só para assistir. 

Não percebi para onde as levou, talvez para um canto, um quintal, uma casa.  Só sei que parecia Jesus. Só porque eu imagino que Jesus, além de ter barbas, era alguém que se deslumbrava com coisas que nada valiam. 

~CC~

domingo, 3 de dezembro de 2023

Advento (I)

 

Maravilhoso tempo aquele. Nenhum enjoo, nenhuma indisposição, nenhum desejo louco de comer alguma coisa. Apenas uma paz doce, uma tranquilidade, um embalo do teu corpo dentro do meu. Não tive medo, de quando em quando uma pequena angústia em torno de te saber um bebé saudável, como deve acontecer com todas as mães. Todas as coisas muito mais relativas, até parar a meio o mestrado que então fazia. Uma barriga a crescer lentamente, nunca demasiado pesada, nunca demasiado incómoda.

Não te dei esperança como nome mas podia ter dado. Provavelmente nome que destetarias quase tanto como aquele que te dei. Continuo eu a adorá-lo.

~CC~




Nota: Do primeiro Domingo do mês de Dezembro até ao Domingo do seu nascimento, esse é o calendário do advento na religião católica. Não sou católica e sei que Jesus, se é que existiu não nasceu em Dezembro. Ao que venho então? Talvez à ideia do sagrado, é conceito que me fascina, uma ideia em erosão. E à coisa pequenina que é desembrulhar o tempo, dia a dia, com palavras.

terça-feira, 28 de novembro de 2023

Corpo

 

Deixei-o esquecido como matéria ao abandono, talvez por ter sido ele a trazer-me as dores maiores. Olho-o agora com as suas cicatrizes, com as suas rugas, com os nódulos de gordura onde não devia ter e a magreza excessiva onde devia haver músculo. Olho-o com o pavor com que o alimentei do medo do toque, da dor desse toque. Coberto é bastante aceitável, descoberto é bastante incómodo. Em geral os corpos de meia idade quando nus só se aguentam no calor de outros corpos. 

Olho-o como o lugar onde o prazer deixou de existir marcado por fantasmas vários. E ainda assim há nele uma memória ténue do embalo de um abraço, do sabor de um beijo, da força de um desejo salgado. Não sei se ainda o consigo preparar para qualquer sementeira ou se prefiro que seja só esse lugar onde o vento se deita manso e se aquece a si próprio entre os lençóis de Inverno.

~CC~

domingo, 26 de novembro de 2023

Para memória futura

 

Algures, por ali, também escrevi qualquer coisinha para contribuir para a memória colectiva.

Sem papel, contudo, os livros caminham coxos, sem cheiro e sem glória, até os lançamentos são tristes.

Porém, parece que assim viajam muito mais.

~CC~


sexta-feira, 24 de novembro de 2023

Não é mais além

 

Num tempo tão sem esperança (a banalidade do mal a unir a América Latina ao centro da Europa) é no cinema que a vou encontrando. E é tão bom sair e ir ao cinema, mesmo no Inverno quando tudo me puxa para o chá e para o sofá.

É o coro final, cantando na mais bela língua do mundo um sol que o futuro há-de trazer (Nanni Moretti)

É dentro daqueles dois rostos, um velho tosco que gere um pub falido e uma jovem que atravessa fronteiras com uma máquina fotográfica em que fixa a resistência de existir (Ken Loach).

E essa luz que passa da tela para mim torna-me também mais capaz de iluminar-me e iluminar outros. A luta é sempre cheia de pequenos nadas. Apoiar uma amiga que perdeu a mãe, escutar com tempo um estudante, comprar algo num pequeno comércio, receber um cabaz da quinta semanalmente, mandar uma mensagem a alguém que precisa de alento. É no dia a dia que somos e nos revelamos humanos, não é mais além. E ser humano é luta contra a sombra, aquela, a da banalidade do mal.

~CC~

segunda-feira, 20 de novembro de 2023

Coisas bunitas

 


Tudo isso merecias ouvir, todas essas coisas sussurradas ao ouvido.

Esta é de todas as tuas músicas, a minha preferida. Vou ouvi-la muitas vezes e assim contribuir para que perdures na nossa memória colectiva.

~CC~




domingo, 19 de novembro de 2023

Passeio de Domingo

 

Esta é uma forma de lembrar a Luísa e a sua crónica, a chegar (quase) sempre com a regularidade das boas rotinas. 

Em criança, a minha mãe obrigava o meu pai a levar-nos ao domingo a comer um sorvete à Baleizão que ficava na baixa de Luanda, era muito longe do sítio onde morávamos, na parte de cima da cidade. A minha mãe vestia-nos com roupa de domingo, quase sempre feita por ela própria e arrumava-se como uma princesa. Ele nem sempre cumpria e quando o fazia era com aquele ar de frete de um homem muito ocupado, sem tempo para aquelas minudências de passear os filhos. 

Nunca liguei muito a Domingos até às crónicas da Luísa e à velhice da minha mãe. As crónicas da Luísa sugeriam que o Domingo devia ser verde e os pedidos da minha mãe era para sair, para ir dar uma voltinha, manteve até ao fim esse desejo de fazer daquele um dia diferente da semana. Eu sempre fui mais de Sábados. Mas agora a vida trocou-me as voltas e agora há muitos Sábados em que trabalho. Comecei assim a gostar de Domingos, a respirar neles e com eles. Da serra ao mar, fica-me o Outono.
















terça-feira, 14 de novembro de 2023

Os dias acabam, os sonhos não

 

Às vezes até eu gosto dos rapazes que cantam e estão na moda...




Deixo-me ir sem filtro, ignorante se estou a ser permeável à publicidade. Enche coliseus, mas não, não pagaria uma fortuna para ir ver. Aliás, vou preteri-lo a preço bem razoável por uma reunião de amigos. Desta canção gosto particularmente pois efectivamente acho que não só os meus dias como a minha própria vida vão acabar primeiro que os meus sonhos.

~CC~


segunda-feira, 13 de novembro de 2023

Enganos meus

 

Não devemos chorar o passado porque não podemos mudá-lo. Mas às vezes choro-o. Mas é um choro mais pautado por um sentimento de injustiça do que de tristeza. E de incredulidade relativamente aos meus próprios enganos. Como pude procurar tanto tempo no lugar errado aquilo que sempre precisei:  terra, raízes, segurança, colo, ternura. Nenhum problema com os erros, só que nos tomam muito tempo, tempo que não temos depois para poder acertar.

~CC~


 

domingo, 12 de novembro de 2023

É ainda ela

 

Agarrada à pequena luz que sobra ela sorri ainda, tem agora um sorriso doce e meio triste, mas ainda assim é ela, uma identidade que não se perdeu na doença grave e que luta e sobrevive. Retirou as velas do bolo e sem contemplações nem saudosismo disse que as podia mandar para o lixo. Para o ano não sabemos, na verdade não sabemos de ninguém, mas ali há a sombra sempre a pairar. 

E se eu agora me levantasse e andasse? Disse-o com ironia, não com a esperança do milagre. Mas por um segundo eu achei que ia acontecer.

~CC~

quinta-feira, 9 de novembro de 2023

Estranhos dias

 

Não me tinha inscrito mas recebi na mesma o mail com a anulação do congresso. Não compreendi. É verdade que se tratava de uma entidade governamental mas com completa autonomia. Que estranho anularem-se eventos científicos por causa da queda de um governo. Abona a favor de uma democracia frágil, imatura.

Difícil compreender.

~CC~

domingo, 5 de novembro de 2023

Teletransporte

 


Fecho os olhos.

Não é voz que caiba naquele belíssimo cineteatro. Faz-me viajar até às ilhas de onde veio. Poderia ficar a ouvi-lo naqueles fins de tarde doces em que tudo na vida parece bater certo. Leva-me lá. E não é uma felicidade que nasça no grogue. É da forma deles respirarem. É da forma deles serem. Chamou ao palco o filho, apresentou o sobrinho na bateria e felicitou a senhora que na plateia comemorava os seus 80 anos. Sabem ser família, um conceito muito além de pais e filhos, talvez mesmo toda uma ilha.

~CC~

sexta-feira, 3 de novembro de 2023

Dinheirinho

 

A empresa do gás enviou-me uma carta para me devolver 2 cêntimos! E pedia autorização para usar o NIB para proceder à devolução...

Há pessoas às quais sai o euromilhões, comigo é assim.

~CC~

segunda-feira, 30 de outubro de 2023

As pequeninas descobertas

 


Descubro o sabor amendoim-caramelo, claro que do fazedor de gelados, noutros lugares deve ser enjoativo.

Descubro outra vez como é bom acordar num dia de sol depois de tanta chuva, tudo lavado e luminoso.

Descubro que apesar da intensidade do trabalho consigo dormir, noutras ocasiões não.

Treino mais e mais o perdão e percebo que consigo.

Descubro que consigo fazer cedências, deixar que lhe comprem rosas brancas e amarelas quando as queria vermelhas, dizem que tal cor não é adequada à ocasião.

Mas por dentro eu sou sempre rubra como as árvores de Benguela.

~CC~

 

quinta-feira, 26 de outubro de 2023

A primeira gargalhada

 

Habitualmente eu era uma pessoa que acordava sempre bem disposta, embora nem sempre adormecesse com o mesmo estado de espírito. Há uns meses essa alegria desapareceu subitamente, afundada por pesos vários. Houve o curto intervalo das férias na Grécia, luz poderosa que fez recuperar esse ânimo. Depois regressou a tristeza, cada vez maior, cada vez mais funda. Tinha momentos bons, até com a minha mãe em plena doença, momentos em que me ria com ela e por ela.

Tenho consciência que estou numa lenta recuperação de mim e à procura de uma outra cartografia sem auto estrada para o sul. Ontem acordei pela primeira vez bem disposta, mas adormeci cansadíssima.

Mas hoje ri-me com gosto. Recebi o meu primeiro certificado de "novas tendências de cozinha". Devidamente comprovado por aquela agência do Estado que tudo certifica. Finalmente estou pronta para a vida.

~CC~


segunda-feira, 23 de outubro de 2023

Vadiando

 

O que eu gosto desta rua! 

Esta critica tão suave quanto corrosiva que está aqui bem patente.

Como não posso comentar, trago-a inteira para aqui.

~CC~

domingo, 22 de outubro de 2023

Manhã de Domingo

 


Estranho a longa fila à entrada do café num domingo de manhã. Haverá assim tantos cafés fechados? 

Afinal é a fila do jogo, ou melhor, das raspadinhas. Pessoas de todos os géneros e idades, predomínio de mulheres que já passaram da meia idade. Compram uma e raspam e depois voltam. Uma das senhoras totalizou dez euros em raspadinhas de 2 euros, ou seja, voltou e voltou. Curioso é que este não é um jogo de grupo, são apostadores solitários, eles e os cartões que raspam e raspam.

Que sonhos alimentam? Que ilusões lhes venderam? O que lhes falta? 

Qualquer coisa neles é muito mais triste que a minha tristeza que, se comparada, até parece alegria.

~CC~


sexta-feira, 20 de outubro de 2023

É a noite que temo

 

Com chuva, com vento, saio pela noite de Outono. Ainda agora era dia, ainda agora era Verão. E agora a noite parece chegar abruptamente e com ela o vasto silencio da ausência. E de repente já não é a ausência dela, são todas as ausências. E já não é a morte dela, são todas as mortes, mesmo aquelas que estão do outro lado do mundo.

Já não há o que me segure neste sofá onde o silêncio foi sempre tão bem vindo, onde a solidão nunca teve tal nome porque estava comigo e dentro de mim e com todo o mundo fora de mim.

É preciso sair, é preciso ver gente, é preciso ouvir vozes, é preciso não deixar que a tristeza venha afogar-me dentro do escuro. Na luz do dia tudo me arrasta e me leva e me puxa para o sol, é a noite que temo, é no seus braços que moram os fantasmas. 

Um dia voltarei a aninhar-me aqui ou noutro lado, enrolada numa manta, capaz de ler um livro e de sonhar futuros.

~CC~

terça-feira, 17 de outubro de 2023

Água

 

Veio a chuva lavar-me o rosto. Entre o doce e o salgado é tudo água.

~CC~


sexta-feira, 13 de outubro de 2023

Venho falar das tuas mãos

 

Venho falar das tuas mãos mãe, essas que fizeram as roupas que muitas de nós hoje trazem vestidas (viste, não as deitámos fora como tanto receavas), essas mãos que deram injecções, fizeram pizzas, muitos pudins de laranja para o natal...e por fim aprenderam também a fazer festas.

Desta última vez, quando cheguei ao hospital disseste: a minha menina! São aquelas palavras que nunca mais ninguém me dirá, uma saudade imensa que fica...mas logo depois: vai buscar o andarilho e vamos para a cozinha! Eras assim, uma força, uma vontade de viver...

Por isso eu sei bem a herança que me deixaste, nem casas, nem dinheiro, nem outros bens, a herança que me deixaste é a coragem, é essa que eu espero saber honrar.  Obrigada mãe.

~CC~

sábado, 7 de outubro de 2023

Mulher-Vida-Liberdade

 




Narges Mohammadi
Condenada a 31 anos de prisão e 154 chicotadas.

Não sei se se trata de Paz, mas de Direitos Humanos certamente.

~CC~


terça-feira, 3 de outubro de 2023

Mergulho fora de pé

 

De vez em quando aventuro-me. Na água pouco, pelo que é de outros mergulhos que vos falo.

Decidi frequentar um lugar em que o tema central são fermentados, kombuchas, bebidas vegetais feitas em casa e coisas afins. Não enlouqueci, apenas quis saber como podia cozinhar os muitos vegetais que comecei a receber semanalmente  numa bonita caixa de cartão de uma courela próxima. Não imaginava que estava a entrar num culto, com todas as regras que os mesmos implicam. As duas primeiras aulas foram puro proselitismo, ia desistindo por ser incapaz de mexer a comida muito, muito lentamente, deixando nela amor, não acreditar que os produtos lácteos conduzem as mulheres à inveja umas das outras ou considerar que comer ananás é pecado por vir do outro extremo do mundo (curiosamente os cajus são permitidos, vá lá perceber-se). Felizmente depois das duas primeiras aulas vieram as receitas e algumas parecem-me bem interessantes. Mas chegou também o grupo de whatsapp cheio de bons dias repletos de corações, as fotografias de qualquer produção doméstica, as muitas fotos das sessões. Mas não era suposto sermos diferentes ou alternativos?!

Bom, descobri que aqui a alternativa não significa fazer ondas, despejar baldes de tinta por aí ou enrouquecer em manifestações avenida abaixo, aqui é só ficar quieto, pensar em paz e amor e sobretudo não tocar em carne.

Decididamente mergulhei fora de pé mas não me vou afogar, assim espero.

~CC~



sábado, 30 de setembro de 2023

Volto

 

Durante anos e anos fui leitora do Jornal Expresso, parecia que o café de sábado sem o jornal não fazia qualquer sentido. Depois mudaram a edição para sexta e quando o ia comprar ao sábado às vezes já não havia. Pouco a pouco deixei de comprar e não sinto falta alguma.

Não quero que o mesmo me aconteça com este blogue, abri-o agora e foi com espanto que percebi que tinha passado uma semana. Procuro as razões. Falta de tempo sempre a tive. Falta de vida na caixa de comentários também não pode ser razão, outras vezes aconteceu e nunca foi isso a desmotivar-me da escrita. Tristeza? Também já tive outros momentos tão ou mais tristes. Acho que é mais como o que aconteceu com o jornal Expresso, é deixar que o desábito se instale. Não posso deixar porque a escrita foi muitas vezes o meu porto de abrigo e de salvação, se deixo esse instrumento de comunicar comigo e com o mundo, não poderei voltar a ele com facilidade e mais adiante chorarei de algum modo a sua falta.

Do mesmo modo que as ruas onde não passamos, as casas em que não moramos, os blogues que se arrastam também definham. Volto aqui, voltarei aqui e é sempre como quem regressa a mim própria e ao que mora lá dentro.

~CC~



sábado, 23 de setembro de 2023

Só uma nota

 

Desta vez foi diferente. Não lhe ouvi a voz nem os parabéns que nos últimos anos fazia questão de entoar ao telefone. Logo ela que nunca falhou datas de aniversário. Se estivesse ausente, já em lugar incerto, se calhar não me custaria tanto, mas sabê-la ali presa à cama sem poder cumprir estes rituais que a agarraram tanto à vida. Se nas nossas mãos estivesse a decisão da nossa morte, não sei se ela a tomaria, ainda assim sei que não queria viver até este limite de impossibilidade e dependência. 

Fica aqui entre nós só essa nota triste para o resto poder ser alegria, a minha de estar aqui.

~CC~

quarta-feira, 20 de setembro de 2023

Cores de um país

 

Grécia (Ilhas de Tinos e Andros)

Deve haver poucos países em que as cores de um país estejam tão bem espelhadas na sua bandeira.

Mas devia haver um gato preto deitado naquelas listas, um daqueles com os olhos bem verdes. Ou um gato cinzento com olhos azuis. Ou uma deusa reclinada.

~CC~





sábado, 16 de setembro de 2023

Sobre o cheiro das goiabas

 

Nunca nos podemos livrar da nossa pele, das suas marcas, dos seus registos. O passado corre atrás de nós a querer apanhar-nos o futuro, mas domino a fórmula certa para que não me tolha e me roube alegria. É verdade que às vezes me apetece nunca mais voltar aqui. 

Os primeiros dias de chuva nesta terra de sol levam-me a luz do fazedor de gelados e trazem o sabor amargo-doce dos primeiros cappuccinos. Tenho a certeza que já nada me faz sofrer neste território que um dia se encheu de abraços colados. Já não é mau não entristecer. Mas tenho também a certeza de que já nada nesta cidade me trará alegria. Duas luzes antes brilhavam, daquelas que são pilares para o nosso amor próprio.

De uma e de outra luz nada quase nada veio até ao presente. Mas isto é só uma forma de olhar, pois decerto infiltrou-se em mim algo de sabedoria inerente a essas vivências, algo que se entranhou e já não sou capaz de descobrir, carne que se fez outra carne. Sobre o cheiro das goiabas, nem lhe posso chamar saudade, apenas nostalgia. 

~CC~





quinta-feira, 14 de setembro de 2023

Da dor

 

Abro bem os olhos mas depois fecho-os por um momento. Que dolorosas tragédias as de Marrocos e da Líbia, perturbam-me mais essas que derivam da inocência dos homens do que aquelas que foram por eles provocadas. 

Ali à mercê do que a natureza decidiu, voltamos a ser os mesmos meninos desprotegidos de há muitos séculos atrás, quando nada havia se sabia sobre inteligência artificial. Questiono-me sobre a direcção deste progresso que não permite algo do que é essencial como a protecção da vida humana. Talvez porque há muito o poder económico colonizou a ciência impedindo-a de ser um bem para todos. 

Sei que tenho que manter os olhos abertos e ver, mas doi-me. 

~CC~

segunda-feira, 11 de setembro de 2023

Mestiçagem

 

Ao contrário de muitas e muitas vezes em que só depois de ocorrer, percebi que tinha sido um momento feliz, tinha a percepção intensa da felicidade nas noites quentes da lua cheia de Agosto a brilhar naquele céu de horizonte largo, na ilha de Tinos. Naquela latitude ouvia os murmúrios de todos os deuses que amaram os homens e com eles se misturaram fundando esta bela mestiçagem que não podemos olvidar. Por ali também o Oriente e o Ocidente se encontraram, não obstante a história nos trazer sobretudo registos de guerra, suspeito que houve paixão.



sábado, 9 de setembro de 2023

Bairrinho (I)

 

De volta ao bairro e ao café da senhora magrinha e do senhor dengoso, um casal ao leme da confecção de deliciosos bolos e salgados e tão persistente quanto improvável.

- Quero um café sem princípio...

Não resisti a perguntar o que era e pacientemente a senhora que o pedia explicou-me. Mas a senhora magrinha, habitualmente pouco simpática e faladora (bem ao contrário do marido) desta vez até desabafou:

- A senhora nem imagina quantos tipos de café há, mais que receitas de bacalhau!

~CC~


quinta-feira, 7 de setembro de 2023

Arrumar e desarrumar mundos

 

O que procuramos quando viajamos? O que nos move a determinados lugares?

Na Grécia tudo é mito e é por ele que vamos lá. Por todos os que escreveram esse mito muitas e muitas vezes, todos os poetas que se vergaram a essa suposta transcendência pagã e ainda os outros crentes, aqueles que nos disseram que ali tinha sido o berço de tudo, da civilização, da democracia, da cultura, da beleza. E até do Ocidente, seja ele o que for. Homero escreveu os dois livros fundadores, a Odisseia e a Ilíada, ainda hoje considerados obras primas que devem constar de qualquer estante de um intelectual que se preze.

 E há ainda o mito do azul e branco das ilhas, dessa autenticidade tecida entre filmes, música e por certo muitas capas de revista, este é um mito diferente, mais cor de rosa, conotado com a riqueza e o glamour Por isso os turistas apenas visitam a Acrópole e os dois bairros que com ela confinam e das ilhas apenas Mikonos, Santorini e, quanto muito, Corfu. Mas as ilhas são mesmo muitas e diversas, até as duas que visitamos e eram vizinhas, pouco tinham a ver uma com a outra.

Não sendo imune às narrativas que vingam sobre a cultura e os povos e tendo a alma cheia dos poemas de Sophia, não posso afirmar não ter sido essa turista, igual a tantas outras que nos 35 graus de Agosto suou na subida à Acrópole fascinada pela beleza do lugar e se comoveu dentro do museu com a antiguidade de certas peças datadas de 700 anos antes de cristo. Fui como todos são. 

Mas tudo o resto é que foi mais importante. Tudo o que descobrimos entre barcos e espera por barcos para ilhas que não eram as da moda, tudo o que calcorreamos nos bairros menos conhecidos, no mercado, nas pessoas com as quais nos cruzámos, na história do país que fomos lendo em voz alta, desde os 7 séculos antes de Cristo aos 23 depois. Nos pequenos turismos cheios de gregos onde mal se falava Inglês. 

A Grécia Clássica ocupou um período muito curto deste tempo histórico e, contudo, é essa a memória a que se volta, a que se promove, a que vende. Os homens gostam tanto de histórias e aquela é um imaginário riquíssimo, entre homens, deuses e semi-deuses constrói-se um sistema que fala de tudo o que apaixona, enriquece e amedronta a humanidade. 

Mas o sentimento mais preponderante que trago de lá não é o de estar a Ocidente mas sim a Oriente. Nos paladares, na luz, no modo de falar e no modo de ser das pessoas. E muito, muito longe da Europa, mais ainda do que em Portugal. A Grécia é um país que faz fronteira com a Macedónia, a Bulgária, a Albânia e com a Turquia. Mas no nosso imaginário é como se estivesse colado a Itália e fosse o nosso berço de cidadania. Varremos muitos séculos do nosso imaginário, a Grécia é um país que só voltou a ter configuração com essa identidade no século XIX. 

Aprendi muito. Desarrumei e arrumei mundos. 

Com isso não quero dizer que não tivesse ficado igualmente deslumbrada com o primeiro mergulho no mar Egeu, transparente, salgado, sem ondas, quente. 

~CC~




sexta-feira, 1 de setembro de 2023

Setembro

 Depois de tantas sombras que Agosto trouxe, nunca um mês meu começou assim tão longe de tudo, tão perto de mim. 

Um lugar em que me falam em grego como se fosse uma delas. Sorrio e percebo tudo, a língua das Deusas é universal.



Andros Chora.
Obrigada A.

domingo, 27 de agosto de 2023

Grécia(I)

 Em Atenas há pedras que falam e gatos silenciosos que por todo o lado se infiltram e aparecem em lugares inusitados olhando-nos, estou quase certa que vivem dentro deles todos estes deuses e deusas amargurados expulsos da Acrópole. 




quarta-feira, 23 de agosto de 2023

Ainda a lista

 

A lista era feita das coisas que me fariam feliz.

Concretizar cada uma delas é mais do que elas em si, trata-se da capacidade de alcançar o que sonhamos, em vez de marinar eternamente no que desejamos.

Só me esqueci de um pormenor, quando chegamos ao sonho, podemos não conseguir estar nas condições de o usufruir em pleno. É o que me tem acontecido. Não planei esta viagem à Grécia como desejaria ter feito, não tive as condições para o fazer, nem consegui voltar ao livro da Sophia. Ainda assim talvez a Ágora me faça bem, a civilização helénica foi um banho de criatividade humana, inventores da melhor e do pior que ainda hoje transportamos. Também eles afogados neste calor, não vivem o seu melhor momento.

Se a mais velha que hoje cumpriu os seus 95 anos de olhos fechados, acamada, certamente triste, mas ainda assim resiliente, ainda está na luta, também nós temos que lutar por nós, aspirar de tudo o que pudermos ver no mundo, espero assim que o azul grego seja um mergulho que me ajude a encontrar o Verão.

~CC~




terça-feira, 15 de agosto de 2023

Biblioterapia

Este livro tem sido a ajuda possível neste Verão atípico, com a minha atenção dispersa e inconstante só consigo pegar nele por ser tão bem escrito, tão apelativo, mesmo sendo um ensaio.


 Em Faro e em Setúbal, duas incríveis mulheres lutam pela vida. Uma tem 94 anos, quase 95, a outra apenas 57. 

O coração com elas.

~CC~



quarta-feira, 9 de agosto de 2023

Poética (III)



Moram aqui neste hotel *almas imortais que deambulam pelos quartos e se sentam invisíveis a tomar o pequeno almoço comigo na varanda debruada sobre o rio. Só eu sei que não estou só. Dizem-me ao ouvido pedaços de versos e por isso demoro muito tempo a finalizar o café, saboreando as palavras e soletrando que "o nosso dever é falar.** "e que é "urgente o amor"***, nada tem tal emergência, tal eclodir. 

Em todo o lado as paredes têm poemas escritos, dentro e fora deste espaço. Mas não há ninguém que pare a ler, acho que nem sabem que esta praça é dos poetas, mais adiante é a poética dos mergulhos fluviais de famílias inteiras que se desenha no meu olhar, é bonito também.

Mas estou certa que alguém um dia se sentou aqui e sentiu a respiração cortada pela beleza do lugar, algo só semelhante à vibração interior de um verso. Poderia ficar muito tempo e nunca estaria verdadeiramente só. "Ama como a estrada começa****", também, como o poeta,  não sei o que quer dizer, mas sei que traduz a intensidade com qual sempre senti a vida.

 


Notas:


*E assim cumpri mais um desejo dos dez da lista.
**  e ****Versos de Mário Cesariny cujo centenário de nascimento se comemora hoje.
*** Verso de Eugénio de Andrade.

terça-feira, 8 de agosto de 2023

Balança

Paraíso e inferno em doses proporcionalmente equivalentes. Só espero que não ocorra um desequilíbrio de forças e, se ocorrer, que eu me aguente. Quando perdi o meu pai que amava em dose moderada tive que nadar para vir à tona, quanto mais esta força da natureza de nome minha mãe.

~CC~

segunda-feira, 7 de agosto de 2023

Longa de Verão(I)

 A Feira é aquela memória paradoxal do Verão, um híbrido gostar e não gostar. Em criança deambulavam fascinada pela Feira de Faro. Em adolescente odiava tudo o que lhe estava associado.

Se vou arrependo-me, se não vou falta qualquer coisa para o verão se cumprir. E queria comprar facas e comer uma fartura. E tu querias comprar meias e comer churros. Ajudei-te com a escolha das meias e tu a mim com a escolha das facas. A fila das farturas da Luisinha era enorme, concordámos em desistir e fomos a outro lado pintar os lábios de açúcar.

A amizade é um laço bom, combinamos coisas para fazer, conversamos sobre como nos sentimos para além das trivialidades, vamos juntos, estamos juntos. Depois cada um regressa ao seu lugar. E sabemos que isto é e será sempre amizade. Também sabemos o que é o amor e concordamos que é algo que estremece. Temos saudades do amor. Mas só queremos do que estremece. Se calhar não vamos ter.

Mas não chegamos a entristecer por isso. Se vier, seja para um ou para outro, vamos festejar. Mas oxalá guardemos sempre lugar para as meias, as facas e as farturas.

~CC~

sexta-feira, 4 de agosto de 2023

Poética (II)

 

Também acho poético comprar umas sandálias novas a uma senhora de 95 anos (que há 4 dias atrás parecia, tal como ela diz,  prestes a deixar-nos e partir para a sua grande viagem). Procurei muito até conseguir, mesmo nas farmácias. Poucas serão as vezes que sairá de casa e as poderá usar, mas no dia em que as comprámos, até em casa as quis usar.



~CC~

quinta-feira, 3 de agosto de 2023

Poética (I)

 

Dos dezasseis aos vinte e dois queria muito ser poeta, escrever poesia. Escrevi muitos e muitos caderninhos de poesia sofrível. A partir dos 22 absorvi poesia como água, admirei os poetas, frequentei sessões de poesia. Nos últimos anos tenho lido também, em tertúlia, muita poesia com os meus estudantes e tem sido bom, muito bom.

Mas hoje eu sei que só quero é uma vida poética. E o que será isso?! 

Não sei responder cabalmente embora tenha algumas ideias sobre isso.

Hoje passou por mim um carro na auto-estrada e ia coberto de pó. No vidro de trás a inscrição feita com os dedos a rasgar o pó: A roer laranjas desde 1987!

Achei poético, quem lá ia dentro sabe o que é uma vida poética.

~CC~


terça-feira, 1 de agosto de 2023

Actualização das primeiras cinco da lista

 - Caminhar nos Passadiços de Alvor (SIM, aconteceu) 

- Visitar um amigo e uma amiga que há muito não vejo (PROCESSO EM CURSO)

- Perceber se o Alberto Manguel é tão interessante quanto a sua vida sugere (SIM, aconteceu)

- Ir ao Festival Músicas do Mundo (SIM, aconteceu)

- Comemorar com a irmã mais nova os anos (já nem me lembro a última vez que estive com ela nessa data) (QUASE A CAMINHO)

- Dormir no Hotel "Os Poetas" (QUASE A CAMINHO)


Acrescento que hoje repeti a 10, comer um gelado de pistachio, melhor ainda...do fazedor de gelados (só para quem acompanha o blogue).


~CC~

quinta-feira, 27 de julho de 2023

Curtas de Verão (IV)

 

Domingo de vento em Tróia, menos gente do que no ano passado.

Ainda assim a saturação dos mesmos gestos. Selfies, fotos e filmes, o telemóvel sempre presente para captar imagens, falar bem alto, trocar mensagens nos muitos grupos. Pobres crianças estas, filmadas até à exaustão em gestos tão vulgares como chapinhar ou fazer um bolinho de areia. Uma raridade um livro na mão de alguém. Até eu não trouxe nenhum, trouxe o jornal grande em vez do pequeno e com o vento não o consigo abrir. Pelo menos ainda sei o valor do silêncio e fico calada a manhã toda e é bom.

~CC~

terça-feira, 25 de julho de 2023

Bairro

 

Sabes que moras num bairro quando na mercearia/frutaria, a salsa e os coentros não são pesados e cobrados, mas colocados num molhinho dentro do teu saco quando os pedes.

E o valor não está apenas no dinheiro poupado, mas no significado do gesto.

~CC~


domingo, 23 de julho de 2023

Curtas de Verão (III)

 

Anda cá à avó! Anda à avó...

Esplanada da casa de gelados mais antiga da cidade. Virei-me para ver a criança que responderia à chamada imperativa e doce. Mas não era uma criança, era um cão.

~CC~

sábado, 22 de julho de 2023

Aluados

 

A orquídea tem apenas duas flores, despedindo-se da sua época áurea de floração. Parece que foi a sua última Primavera, não me parece que vá hibernar mais um Outono-Inverno para depois ressurgir. Conheço quem se lhe assemelhe, faz-me palpitar o coração de preocupação parecendo que é o seu último suspiro, mas depois ressurge devagarinho ainda e ainda, cada vez com menos vigor, mas ainda assim respirando. Preciso destes genes, que sejam eles a circular por mim e a fazer-me agarrar à vida. Como é que é ela ainda o nosso centro?!

Nestes dias de noites mal dormidas parece que me vou dissolver, às vezes acho que não estou viva, realmente acordo mas não sou visível para ninguém.

Mas depois aparece alguém que me vê. Hoje foi aquele velhote sentado na minha mesa a falar-me de uma embarcação que não pode morrer por ser típica do seu bairro de sal, haveria que reconstruir um barco que pudesse não apenas ser um exemplo desses do passado mas sim um transporte do futuro, uma espécie de tuk-tuk que cruzaria o estuário, uma frota deles, um esplendor. Depois levantou-se de repente e pediu desculpa por me ter ocupado o tempo e desapareceu tão rapidamente quanto apareceu do nada, a cabeça cheia de sonhos num passinho pequenino. Mas ando com um caderninho e apontei-lhe o nome, sei por onde anda.

Ele existe mesmo e eu também e o que nos une são certamente os sonhos improváveis. Gosto de pensar que um dia nós, os aluados, nos iremos todos encontrar.

~CC~


quinta-feira, 20 de julho de 2023

Há banhos

 

Não há apenas banhos de mar em Agosto, há também banhos de Teatro. 

Banhos de fim de tarde, de noite, de madrugada. Banhos em jardins, dentro das escolas, em mercados, em salas. Banhos de sentir, de pensar, de conversar. Agendem alguns. É aqui, na cidade do Sado.

~CC~

terça-feira, 18 de julho de 2023

Não, este não vai ser sobre

 

Em abril, a angústia chegou. Mas consegui praticamente eliminá-la até ao início de julho, bem perto da data da repetição do exame. Depois aconteceu a avalanche, significa que a um centro de mal estar se associam outros e tudo parece acentuar o plano inclinado e a descida. 

E isto pode acontecer mesmo a quem acha que para além da nostalgia associada à poética do mundo, poucas coisas lhe impedem sentir a vida como uma grande alegria, pelo menos nos últimos anos, quando as sombras maiores se foram.

Parei de escrever porque não queria que este fosse mais um blogue sobre diagnóstico de cancro, tratamentos, cabeça rapada, vómitos e tristeza. Poderia às vezes ter graça como antes, na primeira vez em que aconteceu (2017, lembram-se?). Mas também vos posso dizer que à segunda seria mais duro. No meu primeiro acidente grave de viação, só me apetecia rir por estar viva depois daquilo, no segundo chorei como uma tonta e a tensão subiu em flecha até 21-11. As segundas vezes e as terceiras não são como as primeiras, abrem as cicatrizes que demoraram a fechar e criam novas. Provavelmente lutaria de novo, mas não com a mesma alegria, a mesma inocência.

Sabia que não quereria fazer desta rua um blogue sobre cancro, mas que não saberia como não o fazer, por isso seria melhor que o silêncio reinasse por aqui.

Contudo, posso voltar. 

Vai um samba?






sábado, 8 de julho de 2023

Preciso de abraços com cheiro de ervas e flores.

 

Abri a torneira e pouco depois tive que a fechar, o banho ficou por tomar. Conheço bem o sinal, é espiral da ansiedade a manifestar-se. Faço parte desse grupo à qual ela de vez em quando invade a vida, é como se fosse um rio que nos arrasta na corrente e queremos nadar ao contrário sem conseguir.

Hei-de fazer essa caminho mais uma vez, dominá-la, já que matá-la é um verbo demasiado ambicioso.

Para o fazer preciso de silêncio. Preciso também de borboletas a poisar-me ao de leve nos cabelos. Preciso de abraços com cheiro de ervas e flores.

Hei-de voltar a esta rua, prometo.

~CC~






terça-feira, 4 de julho de 2023

Esta maldita hesitação

 

Café junto à praia, portanto caro. Mas a praia está cheia de crianças e reformados, ou seja, pessoas pequeninas e grandes que não abundam em dinheiro.

O senhor está à minha frente e pede uma imperial, a jovem da caixa indica o preço: 3,5 euros. O senhor responde: só tenho 2 euros. Ele recua e diz que não tem, sai num ápice, meio envergonhado. Fico triste. A hesitação bloqueou-me, queria pagar o resto, mas como iria entender ele o gesto? Iria aceitar? Devia pagar álcool e não comida? Devia ter sido mais rápida e feito alguém um pouco mais feliz.

~CC~

Nota política de rodapé: Ganância, febre desmesurada de lucro de algumas empresas e estabelecimentos comerciais, a isto não se pode chamar inflação. 

domingo, 2 de julho de 2023

Chegou Julho

 

Quando é que este coração está cheio?! 

Ele fica cheio quando se prende e quando voa, uma coisa é tão boa quanto a outra. Sentir o chão seguro de quem nos ama mas também nos deixa respirar ao nosso modo, no nosso tempo, sem crítica ou palavra que nos corte  o deslumbramento, por mais infantil que ele seja,

Fica cheio quando se encanta com coisas novas que se ligam a coisas que já são velhas, acumulando saberes em camadas que se enriquecem de espanto. Fica cheio quando prova do que já conhece e do que desconhece. Fica cheio quando encontra velhos amigos que os caminhos não deixaram perder e ainda assim leva junto dos velhos aqueles outros que são mais novos e recentes e verifica que tudo se enlaça e se reconstrói, que gostam uns dos outros. Fica cheio ao contar histórias aos outros, ao ouvir as histórias dos outros. Fica cheio por ainda ali estarmos mas já a combinar novos encontros em sítios outros, a fazer outras coisas.

O meu coração fica cheio sempre que roda a chave na fechadura de uma casa que se vai descobrir pela primeira vez e lhe permite acordar num lugar diferente, longe da rotina e da monotonia, saborear a paisagem de uma manhã. 

Estou tão viva, não posso morrer agora. É isto que direi à maquina de Julho que não olhará ao meu coração e irá perscrutar outra parte do meu corpo, como ela não sabe ler corações, terei de lhe dizer.

~CC~





terça-feira, 27 de junho de 2023

Direito à Insatisfação

 

Enquanto a bruxa má que veste Prada nos dá sempre o mesmo remédio, cuja eficácia que testa há meses não tem resultado, pois a inflação não desce, conheço mais e mais histórias tristes. 

E ela sabe que praticamente dobrar o valor um empréstimo bancário é lançar muita gente no desespero. As pessoas não podem correr a vender as casas, não podem pedir mais ordenado, não podem abandonar os filhos, os animais de estimação, em alguns casos os mais velhos a quem auxiliam. Agarram biscates ao final do dia, ao fim de semana, coisas que nunca antes tinham feito. Artistas aceitam fazer limpeza de prédios, administrativas cuidam de velhotes ao fim de semana, técnicos superiores na função pública vão servir à mesa em casamentos.

Longe de estar no mesmo sufoco, também eu trabalho para além do desejável, quando verifico o dinheiro que entra dessas tarefas, tendo a achar que não foi a gratificação suficiente para todos os crepúsculos que perdi, todos os livros que ficaram por ler, todos os momentos que não passei junto de quem precisava de mim (sobretudo a minha amiga doente). Tenho uma vida inteira de trabalho adicional para pagar aqueles extras que ainda assim foram sempre o outro alimento: os bilhetes dos espectáculos, a renovação do guarda roupa, a ida ao restaurante, uma viagem a um lugar sonhado, a ajuda à mais velha ou a quem em determinado momento precisa ou precisou. Praticamente nada acumulado para além dessa colecção de momentos felizes que o dinheiro não pagou mas ajudou a construir. Enquanto o banco ao qual pago a prestação vai enriquecendo com o que pago a mais em juros, não consigo arranjar a cozinha, investir na troca do carro velho que já bebeu metade do seu valor em arranjos ou adquirir a ruína que imagino semente daquela casa branca na planície com a qual sonhei uma vida. E ainda dizem que isto é dinamizar a economia. E claro que isto são pequenos males comparados com os de outros que os sofrem bem maiores, mas ainda assim, também tenho o meu direito à insatisfação.

~CC~




sábado, 24 de junho de 2023

Curtas de Verão (II)

 

Se a noite estivesse fresca, poderia dizer que seria por isso que fui anoitecer para a varanda. Ao meu lado ela desfiando histórias de noites quentes destas, com passeios de mulheres pela avenida principal e os rapazes atrás a segui-las. Dentro dela é ainda essa jovem bela e admirável, nunca deixou de o ser, mesmo com o corpo primeiro aumentado e mais pesado pelos quatro filhos e agora mirrado pela velhice. Dentro dela ela não é esta, ela é ainda esplendor e vida e por isso sofre com o espelho, com a impossibilidade do passeio pela baixa da cidade, com as barras da cama erguidas para não sair durante a noite. Apagou de certa forma todas as outras mulheres que ela também foi e deixou apenas esta, a mais bela das belas irmãs.

É ao mais fundo dos fundos de mim que vou buscar o que nos pode unir, de tão diferentes que somos. 

Ambas partilhamos afinal a nostalgia que invade as noites quentes e a difícil arte de gerir as impossibilidades.

~CC~

quinta-feira, 22 de junho de 2023

Solstício de Verão

 

Faço a cada tempo novas aprendizagens, patamares que tenho que conquistar do andarilhar pelo mundo. Há que explorar o mesmo lugar de outras maneiras, quando se está sozinho a paisagem parece outra, aparecem outros receios mas também outras cores.

Ainda tenho receio é certo. Ainda ecoam a cada canto coisas e sombras antigas, muitas memórias. Procuro limpar os caminhos, tirar as ervas, abrir outros percursos mesmo quando eles se têm obrigatoriamente que se fazer nos mesmos espaços. 

Não podemos prender ninguém na teia do nosso afecto, é deixar ir quem precisa de ir, libertar é também libertarmo-nos. Até com os filhos é assim, quem os ama muito, sabe como é difícil libertá-los do nosso amor para se construírem como seres autónomos e plenos. A eles, contudo, estaremos sempre ligados, mesmo os que se zangaram, viraram costas ou se ignoram, sabem que eles estão lá em permanência. Aos nossos parceiros e amigos não, a eles só nos prendem os laços do encanto, da partilha, da comunhão. São os mais ténues, perecíveis e incertos. Se perduram, é de uma beleza imensa. Se morrem, é triste. Mas não os podemos forçar, não podemos insistir, não podemos existir neles sem reciprocidade. Cada amigo ou amiga que fica para trás é um pequeno luto, cada amor que acaba é um grande luto, e de tudo isso a vida se alimenta, constrói e prossegue. Haja vida, é essa a minha grande luta agora.

Hoje combinei com uma amiga festejamos para o ano o solstício de Verão como ele merece ser festejado, em harmonia com a natureza, vendo o sol descer e erguer-se. Pode não acontecer, mas são estes pequenos nadas que nos ligam uns aos outros, o inverso do luto é o nascimento, a maravilha é podermos ver nascer, alimentar, criar.

~CC~







segunda-feira, 19 de junho de 2023

Curtas de Verão (I)

 

Um casal na casa dos quarenta madrugando domingo na praia, pareceu-me que já segunda relação, pois ela chegou primeiro e ele uma meia hora depois. Ela chamava-o de Fofinho e ele de Lontra. A conversa prosseguiu assim na maior parte do tempo, ela em tom doce, ele em tom de menosprezo. A determinada altura ele disse-lhe: precisavas de perder dez quilos. A mim ocorreu-me que talvez ela pudesse responder: e tu precisavas de um cérebro novo. Infelizmente ela calou-se.

~CC~

sexta-feira, 16 de junho de 2023

Contra corrente

 

Ontem fui ver a sala para a formação de sábado. Mostram-me o écran de ultima geração, os robozinhos lego, as colunas, e toda uma parafernália de equipamento tecnológico do melhor. Depois de olhar com alguma incredulidade tudo aquilo, saiu-me o seguinte: pois é, isso é tudo para o meu colega que vem de tarde...eu só uso o espaço, a voz...e ah, também tenho um corpo...eu e os formandos.

~CC~


quinta-feira, 15 de junho de 2023

Querido mês de junho, como adorava estar contigo

 

É algo esmagador para mim que Junho, mês que amo por trazer esse esplendor da chegada do Verão (antes que tudo se encha de secura) coincida com o tempo em que não consigo respirar, abafada pelo trabalho avalassador do final do ano lectivo. 

Cada ano acho que conseguirei ter outro destino, outro modo, mas cada ano é pior, é muito além da avaliação dos estudantes, é uma espécie de psicose colectiva, como se tudo, mas tudo tivesse que estar resolvido antes de partirmos de férias. E creio que este ano este estrangular de felicidade será até ao último dia do mês de julho.

Querido mês de junho, como adorava estar contigo junto ao mar.

~CC~


segunda-feira, 12 de junho de 2023

Saudade de...

 

Vi uma imagem na série Conta-me como foi (RTP 1) dos autocarros de dois andares que havia em Lisboa nos anos oitenta. Que saudade...eu era daquelas que nunca hesitava em subir para ver a cidade do primeiro andar.

Há alguém aí que tenha sido adolescente/jovem nos anos oitenta? Do que têm saudades?


~CC~

domingo, 11 de junho de 2023

O amor nasce dos pequenos nadas

 Um

Ele entrou na sala com um sorriso e um pacotinho de bolachas na mão, perguntando se havia café. Era uma reunião formal, mas ele cortou o silêncio da espera. Nunca o tinha visto, embora o nome já me tivesse sido muitas vezes citado. Não combinava com a pessoa que esperava. Nunca bebo café sem uma bolachinha, para compensar a ausência do açúcar. Eu tenho a certeza que o meu sorriso foi grande, finalmente alguém me percebia, ainda por cima um homem. Mas quantos homens trazem pacotes de bolachinhas numa mochila? Só eu e ele tomámos café e comemos uma bolachinha, risonhos e cúmplices. Era capaz de me apaixonar por um pequeno nada destes. 

Dois

Alguém já me tinha dito mas não o próprio. Sozinho tinha criado uma miúda, a mãe tinha partido sem nada dizer. A ternura com que ele relatou o facto, mexendo também em tudo o que não tinha feito bem naquele acompanhamento de uma vida, tocou-me. Mas quantos homens se aguentam sozinhos com uma criança, levando e trazendo da escola, preparando as refeições e trabalhando a tempo inteiro e são ainda capazes de autocrítica quanto ao êxito da missão? Alguns haverá por certo e ele é um deles. São estas coisas as coisas. Não é o brilho da inteligência ou do discurso, não é a beleza. Sem me emocionar nada me acontece, se me emocionar tudo é possível. 

Atendendo a que durante tanto tempo nenhum homem me despertou qualquer emoção, talvez estes pequenos nadas signifiquem o que acontece a uma terra queimada quando chega a chuva. Não é ainda tempo de sementeira, talvez nunca seja, mas já é tempo retirar as cinzas, revirar a terra, deixá-la receber um pouco de água. Mesmo que tudo não passe do regresso às paixões platónicas da minha adolescência, o estremecimento é tão bom como um mergulho na água salgada, cristalina e fria da Arrábida. 

~CC~

sábado, 10 de junho de 2023

Dizer NÃO

 

Bem sei que hoje é um dia sério. Confesso, gosto muito deste país, só o trocava por uns outros dois ou três no mundo. Tenho sempre saudades de cá quando viajo, até no Brasil onde a maior parte deseja permanecer.

Só espero que não se torne num inferno turístico, Lisboa está a caminho do desastre. A Arrábida foi tomada pelos fundos monetários sem nome nem rosto. O Algarve era lindo antes da tragédia. Agora é aqui bem perto, do outro lado do Sado que a ameaça é mais intensa. Grandes resorts para alguém ocupar um mês por ano ou ainda menos. Não conheço sector onde as alianças mais estranhas aconteçam, parece que não há partidos políticos nem ideologias, apenas lucro à vista, mascarado de oportunidades de emprego para a população local. Não é possível proibir, nem desejável, todos devemos poder usufruir da luz magnifica que é singular de um país, mas há limites que deveriam ser claramente colocados. O mais possível a favor do travão ao alojamento local e outros travões semelhantes.

Hoje os discursos deveriam começar todos pelo que NÃO queremos que este pais seja, pois somos o país do SIM. 

~CC~



quinta-feira, 8 de junho de 2023

Trivialidades de um feriado

 

Gosto que Deus tenha um corpo para que possamos ter um feriado (que me perdoem os Católicos esta heresia).

Gosto que o feriado seja de chuva porque tanto eu como a pequena grande temos que trabalhar e porque a terra agradece este banho (que me perdoem os que estão junto à praia).

Só me preocupo com as cerejas lá nas terras quentes da beira, que não resistam e apodreçam num instante, causando prejuízo a quem delas faz sustento e um aumento de preço que fará com que não as possamos comprar (que me perdoem aqueles que acham ridículo pensar em cerejas num dia de chuva de Junho).

Aproveitando o melhor do pior, sempre posso trabalhar com uma chávena de chá Príncipe ao lado, em pleno mês de Junho. 

~CC~

terça-feira, 6 de junho de 2023

Esquadro (ou sem)

 

O nosso subconsciente, esse eu acordado enquanto o eu consciente dorme, é muito mais poderoso que do que pensamos. Ele e os futuros que estão para acontecer. Eu explico.

Há dias em que acordamos felizes e outros em que acordamos infelizes, claro que nós, os comuns mortais, aqueles que não vivem no limbo que é a ausência de emoção (e tantas razões há para viver nele, às vezes pura defesa). No outro dia acordei feliz e fui para uma reunião que não podia ter corrido pior. Mas nada era capaz de me chatear, tinha um almoço marcado com um amigo e era sexta feira. Hoje, passados alguns dias, consigo perceber que o trilho que se desenhou naquela reunião está cheio de pedrinhas que se calhar me irão magoar os pés. Mas naquele dia não, passei a tarde a rir-me de algumas pessoas que tiveram comportamentos atrozes, com pena delas, de se terem portado assim. 

Provavelmente naquele dia os sonhos nocturnos, aos que não acedi, deverão ter sido positivos e eu acordei cheia de futuros. Fico muito bem disposta quando sei que dentro do dia haverá algo bom naquele ou nos dias seguintes. Outros dias apresentam-se sem expectativas ou mesmo preocupantes e parece que ao acordar já se sabe isso, há mais peso e menos azul. Às vezes nem sei explicar as razões para a tristeza, como não sei para a alegria. Aceito agora muito mais que não consigo controlar tudo, pois se nem sobre mim tenho inteiro controlo.

Deixo a música a combinar, ouvida ontem ao vivo na grande sala do Sado.


~CC~