quarta-feira, 31 de maio de 2023

Coisas boas acontecem

 

Comi cerejas pela primeira vez no ano!

A primeira vez, se quisermos, tem o mesmo encanto, não obstante ser a milésima e uma vez. Os beijos também são assim, mas só se dentro de nós brilhar a arte de fazer perdurar o encanto.

É um arte muito difícil, tão ou mais que tecer tapetes de arraiolos.

~CC~

segunda-feira, 29 de maio de 2023

Ano Sabático

 

Não coloquei na lista por saber impossível. Mas estava a precisar de um ano sabático, um ano inteiro para mim. Tantos e tantos anos a trabalhar, quando podemos reformar-nos muitos de nós já não sabem sorrir, estão corroídos por doenças, amarguras, incapacidades. 

Quando perguntaram à Isabela Figueiredo, na feira de literatura de Olhão, quais eram os seus projectos literários para o próximo ano, ela respondeu que não tinha, o próximo ano ela ira dedicar-se a não fazer nada, apenas viajar. Precisava alimentar-se.

Eu precisava de respirar, deambular também em torno de grandes e pequenos nadas. Ao contrário dela, talvez escrever um livro. 

~CC~

sábado, 27 de maio de 2023

Talvez ao engano


Querido Alberto Manguel, talvez te tenhas enganado no país que escolheste. É que a feira do livro em Lisboa encerrou as portas às 17h por motivo de festejos futebolísticos. Sim, isso mesmo, não não foi a ameaça de chuva forte, um tornado, ou qualquer outro motivo de força maior.

~CC~


quinta-feira, 25 de maio de 2023

Imperfeição


Cinco botões floriram. São pequeninas, nada exuberantes, meio estranhas assim pintalgadas, seres de outro mundo certamente. Como podia não amar coisas tão frágeis, tímidas e imperfeitas, ninguém as compraria numa casa de orquídeas. São como aqueles búzios que apanhei na areia, cheios de buraquinhos que o mar lhes tinha feito, e achei-os tão lindos.

~CC~



quarta-feira, 24 de maio de 2023

A estrada do Sul

 

Certas partes da alma estão cheias de fantasmas. Estão na maior parte do tempo quietos, calados, dominados. Mas nem sempre, às vezes emergem num lamento, num gemido. Para os aquietar, preciso de me esforçar.

Certas partes das cidades vividas estão brancas, como se nelas não pudesse mais passar. Certos sítios tornaram-se lugares de uma tristeza que procuro a todo o custo varrer. Só quero evitá-los, fingir que não existem mais. Por vezes nada no passado chora, é só o passado no seu verbo de transição. Por vezes no passado tudo chora, tudo é raiva e dor. Quando essas sombras querem emergir, só queria nunca mais voltar, é como se alegria de certos lugares me tivesse sido roubada e tivesse que contornar aquele bairro, aquela rua, aquela praia, aquela sala de espectáculos. Se eu vir bem, de olhos bem abertos, se calhar já nem eram lugares felizes mas eram ainda meus.

Perdi a alegria da estrada rumo ao sul, essa estrada de estevas que tanto amei. Sobras-me tu e a tua saudade como alento dos quilómetros a fazer.

~CC~


domingo, 21 de maio de 2023

Dois

 

Aquela lista das dez coisas surtiu efeito. Ajudou a focar-me. Sim, muitas das coisas ali escritas estão por realizar, mas como dizem os meus conterrâneos: estão em processo.

Duas coisas bonitas aconteceram com ela. A primeira na Ria de Alvor, consolidei ali uma amizade que talvez fique para a vida e eu gosto de coisas que ficam para a vida, ajudam-me a ter os pés na terra pois eu sou um ser um bocadinho alado. A delicadeza e a generosidade emocionam-me e é assim aquele meu amigo, um menino grande, tão, mas tão diferente de mim em tudo, sobretudo nas rotinas, eu um ser diurno e ele um ser nocturno, no entanto, conseguimos respeitar-nos.

A segunda também tem a ver com amizade (dois da lista), com um amigo que tenho desde os quinze anos, é tão raro nos vermos mas nunca, nunca perdemos contacto. E de cada vez que falamos é como se fosse ontem. Temos falado muito ao telefone, ainda não fui vê-lo. O me encanta nele é a profundidade das suas conversas, com ele nunca se fala do tempo, das coisas que fazemos, das trivialidades da vida. Com ele as conversas são sempre carne viva, faz-me pensar, obriga-me a ir lá dentro. É talvez dos únicos que me consegue incomodar, desarrumar-me, mas também me arruma, também acarinha. 

Afinal, a lista que parecia ser apenas de coisas leves e sítios onde ir beber alegria e alento (como preciso), revelou dentro dela uma das coisas mais preciosas a investir, manter os amigos e amigas, se possível aumentá-los ainda (mais difícil). 

Há quem diga que apenas a família virá socorrer-nos em caso de aflição, não acredito nisso, estes meus amigos viriam, o segundo com mais dificuldade pois tem dois filhos ao seu cuidado, mas dele guardo a insistência para me oferecer uma peruca quando fiz quimioterapia, uma de cabelo natural, daquelas caras, dizia ele. Laços são muito mais que o sangue que corre nas veias.

~CC~




sábado, 20 de maio de 2023

O peso dos séculos (2)

 

O médico receitou este, não sei se deve trocar. Eu protesto que preferia o outro, mas ela repete várias vezes que o médico e o médico e o médico...para eu falar com ele talvez. Acontece que a receita foi passada por uma médica e isso é bem visível, consta o nome e a cédula profissional dela.

Não sou especialmente contra o substantivo universal masculino quando a palavra não existe no feminino, custa-me andarmos aliás a inventar palavras como se elas pudessem mudar a humanidade (a par desta absurda política do cancelamento). O certo é que a palavra médica existe, aliás consta que estas já os ultrapassaram em número. O que diria um médico se fosse tratado por médica?

~CC~

quinta-feira, 18 de maio de 2023

O bicho torpor

 

As pessoas dizem com surpresa: mas nunca?

Sim, nunca. Fui sempre cautelosa até me fartar completamente das cautelas.

E não foi por falta de fazer testes e dos ditos bons, amiúde na instituição em que trabalho. Agora o dito caseiro foi inequívoco a revelar os dois tracinhos que indicam positivo para a Covid 19. Não é o fim do mundo mas não é, pelo menos para mim, vulgar constipação. Os mais vulneráveis são os que tropeçam. Ainda assim mantenho-me à tona, mas com um torpor assinável, como se tivesse tomado um ansiolítico e me tivesse adormecido os músculos (que no primeiro dia uivavam intensamente de dor) e uma parte significativa do cérebro. Os sintomas alteram-se de dia para dia, mas o torpor, esse permanece.

Com o atraso assinalável dos três anos perdi também os catorze dias que muitos passaram no sofá a ver séries, é o dá não fazer as coisas no tempo certo. 

~CC~


terça-feira, 16 de maio de 2023

Rita e Roberto

 

Imaginamos que aquela mulher de cabelo ruivo e visão irreverente, por dentro da cena rock mais alternativa do Brasil, viveu o amor como supomos que acontece naqueles meios, mudando de namorado quase ao ritmo de cada novo CD. Mas não. Rita esteve casada com Roberto 47 anos, tiveram três filhos, tocaram juntos, ela dedicou-lhe muitas canções de amor e achou-o lindo até à derradeira entrevista em que o chamou de "gato". Nos últimos 15 anos viveram no campo, ele cuidando do jardim e ela dos animais, enfrentando juntos a doença dela, com o apoio do filho mais novo que se mudou para a casa materna para poder ajudar. É tudo de enorme beleza, delicadeza, generosidade. 

Ao contrário das famílias que cumprem o ritual do casamento como algo inevitável, eles foram descobrindo que era junto do outro o lugar do amor. Duvido que ao longo dos 47 anos não tenham tido momentos difíceis, por certo sim, até porque a Rita não escondeu de ninguém as suas lutas contra processos aditivos. Muitas vezes, muitas mesmo, quis nomear casais felizes e tinha dificuldade em fazê-lo. Muitos dos casamentos que conheço com duração longa são ligações de interesses mútuos, ou seja, em que deixar o outro significa ficar pior, não só financeiramente, também porque a solidão pode ser assustadora. Já a Rita e o Roberto são uma luz, representam a esperança de que o amor se pode manter e perdurar. 

Não lhes perguntem qual o segredo, qual a receita, estou certa que essa só se encontra no interior de cada par e é irrepetível por outro. Sem ter a representação de que tudo e todos têm que ser assim, há mesmo muitas formas de se ser feliz, não posso deixar de achar bonito, muito bonito. 

~CC~

segunda-feira, 15 de maio de 2023

O peso dos séculos

 

Na pesquisa de consulta para a Ginecologia, só possível nos tempos que correm, no sector privado de saúde, apenas há vagas no hospital mais próximo e nos próximos dois meses para os médicos homens e para a médica negra. 

Como os séculos nos pesam.

~CC~

domingo, 14 de maio de 2023

Plantas de casa

 

Tinha deixado os bolbos de tulipa trazidos do mercado de Amsterdão para plantar na Primavera, quando os fui ver pareciam ainda ter hipóteses de vida, mas só metade vingaram, os outros morreram ao fim do 3º dia. Os que vingaram cresceram muito rápido. Parece que cada um, com sorte, dará apenas uma flor e não mais. 

A Orquídea, por sua vez, promete flores há 3 semanas. Mas só agora apareceu a primeira, pequenina mas muito bela, é pintalgada de branco e rosa escuro. É lenta e ainda não me parece muito saudável, mas vou falando com ela para a encorajar, pois seria triste se da meia dúzia de botões só um nascesse flor.

A hera das folhas pequeninas que trouxe oferecida de uma escola num vasinho é quase tão demorada a expandir-se como a orquídea e durante o Inverno poucas folhas verdes mostra, agora parece um pouco mais entusiasmada em trepar. 

O Bonsai está sempre bem, é um resistente, foi mesmo por isso que o quis, estava farta de ser aquela que deixa morrer as plantas.

É verdade, nenhuma delas é útil, no paradigma que só devemos ter aromáticas ou afins, mas todas elas têm uma singularidade a respeitar.

E quando penso nelas é como se pensasse na minha própria vida.

~CC~



sábado, 13 de maio de 2023

Vizinhança (II)

 

Arruma as suas coisas num cantinho das arcadas do prédio em frente. É um homem de meia idade, bem moreno, mas não consigo afirmar que é de proveniência asiática. Às vezes está sentado nas escadas com os olhos fixos nos carros que passam e já cruzei assim os meus olhos com os dele, tem uma aparência normal. Não o consigo abordar directamente pois bem sei que pode pensar que se trata de alguém que o quer fora dali e também não sei como o fazer, não posso questionar se precisa de alguma coisa pois por certo precisará de muitas, a começar por uma habitação. Contactei já uma instituição que costuma entrar em contacto com Sem Abrigo, encaminhá-los, mas mesmo assim hesito em lhes pedir que venham, apenas quis saber o tipo de trabalho que faziam. Às vezes desaparece, mas os pertences continuam ali, arrumados por baixo do cartão.

No outro dia eram 7 da manhã e ouvia-se bem o seu cântico, parecia uma reza e muçulmana, mas não tenho a certeza, apenas posso dizer que era de uma grande beleza e que a voz dele ecoava por estas ruas, poderosa.

~CC~

quarta-feira, 10 de maio de 2023

Vizinhança (I)

 

Apreciei-os como casal, sempre simples, entre calças de ganga e fatos de treino, quase sempre com um sorriso no rosto. Vi-a grávida duas vezes e fiz as perguntas triviais. Vi os dois miúdos crescer, rapazinhos, sempre de bola na mão. Acompanhei as obras e pedi-lhes a referência do construtor que rapidamente me cederam, com boas referências. Sempre tiveram cães, primeiro foi uma cadela e agora um cão. O carro deles sempre estacionado ao lado do meu, também vizinhos de parqueamento, por vezes segurei num saco ou na porta do carro quando a vi atrapalhada com os dois miúdos. Até há dois dias atrás eles eram os meus vizinhos simpáticos, aos quais admitia pedir salsa. 

Mas ouvi-os chamar pelo cão, não uma, mas umas três ou quatro vezes, as suficientes para ter a certeza do nome horrível que lhe colocaram, nome de um ditador. E num minuto até os seus rostos mudaram para mim, assim como a indumentária que usam, o modo como falam. Será possível que me tenha enganado tanto ou os anjos e os monstros podem conviver assim dentro de alguém?!

~CC~


sábado, 6 de maio de 2023

A noite dos pirilampos

 

Fiz uma lista de coisas que quero fazer nos próximos meses, num duplo compromisso comigo mesma. Primeiro, viver cada dia como merece ser vivido até à data do próximo exame de diagnóstico sem a amargura e a ansiedade da ameaça do que para aí vem. Segundo, não incluir na lista nada do campo profissional, não porque não continue a gostar do que faço e a ocupar aí um tempo significativo, mas por ter ocupado já demasiado espaço da minha vida. Cheguei ao extremo de aceitar que viajar tinha que ser por motivo profissional, para fazer alguma coisa, não simplesmente para usufruir do lugar.

Há um número sete da lista, inadequadamente designado por grupo dos desenhos, afinal é grupo das plantas. Sempre fui uma visita esporádica e por isso não percebia muito bem o que faziam. Agora sei que me proporcionaram uma das noites mais bonitas da minha vida. Primeiro aspecto positivo, é informal, sem burocracia, necessidade de inscrição ou de indicação de quem somos, o que fazemos, o que levamos para comer e tantas coisas mais que nos atrapalham a implicação nas coisas. Sabemos qual é o sitio, a hora marcada, mais ou menos o que vamos fazer. Umas vezes caminhamos e observamos plantas, outras desenhamos flores ou plantas na calma de uma salinha, ainda há momentos em que cozinhamos com ervas e outras coisas mais. Às vezes delicadamente, em certas sessões mais institucionais, alguém regista que estamos presentes. Que bom que é o verbo descomplicar.

Sabia que íamos ver pirilampos por ser o início da sua eclosão e por ser noite de lua cheia. Mas não estava preparada para a beleza do que aconteceu. Os campos acenderam-se e apagaram-se em pequenas explosões de luz voadora. Há quanto tempo não via pirilampos, a última visão, já há muitos anos, não foi em quantidade capaz de produzir este deslumbramento.

Transitámos do dia para o por do sol e depois para o início da noite e para a noite escura com iluminação natural. Cada uma das etapas foi intensa de beleza, qualquer coisa capaz de fazer transbordar um coração de felicidade. 

Doem-me as pernas, não, não me dói nada.

~CC~


Nota: Os pirilampos aparecem nos meses de Maio, Junho e Julho, precisam de um ambiente natural e de zonas relativamente húmidas. Dão-se mal com pesticidas, tal como os seres humanos.


segunda-feira, 1 de maio de 2023