sábado, 29 de setembro de 2018

Ela(s)



Era a história dela. Não, não era unicamente a dela.

Ela era bem casada. Tudo no lugar. Os dois filhos, um rapaz e uma rapariga. A casa luminosa num dos melhores lugares da cidade. A carreira dele, brilhante. A dela, menos brilhante mas auspiciosa. As viagens amiúde. As férias sempre em bons lugares, primeiro da Europa e depois arriscando novos continentes. Ele trazia sempre um perfume ou uma jóia do seu agrado, sabia escolher. As famílias próximas sem grandes intimidades, uma linguagem partilhada de média/alta burguesia. Pequenos luxos sem ostentação nem novo riquismo.

Havia apenas aquele pequeno pormenor. De vez em quando ele tinha outras, pequenas paixonites. Ela via no tal brilho no olhar, no esmero para com o corpo, nas reuniões que sem aviso se tinham prolongado. Durava semanas, no máximo uns meses. Da primeira vez sofreu, das outras achou que já não sofria. Até um dia se olhar de frente no espelho do futuro. Quase a meio da vida e era aquilo, ia sempre ser assim. Criou distância do corpo dele, arrefeceu o dela. O que sobrava? A vida boa, certa, a segurança.

O que fazemos aqui, perguntou-lhe. Ele sorriu meio sem graça. Fez o que quase todos os homens fazem. Anulou a importância de tudo, realçou o amor que tinha por ela, trouxe flores. Não chegou a chorar, não podia simular tanta dor.

E ela fez as malas e saiu. 

~CC~







quinta-feira, 27 de setembro de 2018

Miragem



Como é que podemos não nos conhecer?

É certo que passaram 25 anos e que eu para ela não seria mais do que uma professorinha em início de carreira, ainda à procura de uma identidade.  Só mais uma que ela orientou com a sua voz pousada, os gestos muito lentos, um sorriso sempre presente. Eu toda uma revolução que ela ajudava a conter, aproveitando, contudo, o que isso tinha de melhor.

Esqueço tantos nomes e lembrei-me imediatamente do dela.

Estava mais forte, mais velha, mas a serenidade era igual. Igual a elegância com que lia, com que punha e tirava os óculos, igual o modo como se virava para dentro. Era ela. Ou não era?

Não era porque não podia andar de comboio, sair nos foros de Amora, estar ainda assim tão bem, depois de 25 anos passados, ser ainda tão loura, ter os mesmos olhos de cor indistinta.

O meu medo de lhe perguntar, de cair no ridículo, do que lhe poderia dizer depois de tantos anos. Eu ali ao lado, calada, hesitante, em viagem no tempo.

A Lisboa em que nos encontrámos já não existe mais, eu nem dou já aulas a meninos e meninas, nem quero mudar o mundo todo, contento-me com uns quantos pequenos nadas. Eu devo ter a idade que ela tinha quando nos encontrámos.

Quando sai ainda lhe lanço um olhar mas ela desvia os olhos dos meus. Deixo-a ir, não sei se ainda terá aquela voz doce. Nunca tive mestres, nunca segui ninguém, mas admirei algumas pessoas. Esta senhora foi uma delas. Ou alguém parecido com ela.

~CC~

quarta-feira, 26 de setembro de 2018

O lugar



No meio da semana, antes de uma comunicação num seminário, improvável ir, mas foi um apelo. Na primeira metade nada lhe achei de muito especial. Foi preciso esperar pela segunda parte para lhe encontrar a beleza. Cada personagem singular e a seu modo à procura de si ou de um lugar para poder voltar a si e a ser feliz. Um bocadinho feliz. Nunca terei uma casa destas junto ao mar mas às vezes precisava tanto dela. Mas tenho irmãos, já não é mau, posso voltar a eles.

 ~CC~


segunda-feira, 24 de setembro de 2018

22



Passavam cinco minutos da meia noite a sala levantou-se em ovação.

Brilhante a encenação e a representação. 

Uma das melhores actrizes portuguesas num dos seus melhores papéis.

Tive a certeza que era o melhor local, naquele ano, para entrar naquele novo dia, naquele novo ano.

Há anos em que não há festas, nem bolo, nem velas, nem brindes. São anos reservados a uma festa que se faz só no interior, na reserva dos momentos, são anos virados para dentro para contrariar os que são virados para fora. Da explosão do ano ímpar à contenção do ano par. Do que será depois nos dias seguintes e seguintes pouco sei. Segredo a mim mesmo alguns desejos, disse hoje alto dois deles, quando tinha levado dias a pensá-los. E só quando os disse alto tive consciência de que são mesmo o que mais quero.

~CC~




quinta-feira, 20 de setembro de 2018

As vizinhas



Dizem que eles e elas gostam de espaços abertos, verdes, são reservados, falam baixo. Dizem que nos acham PIGS.

Não são assim as minhas vizinhas alemãs, chegam pontualmente todos os anos nesta altura e ficam um mês a um mês e meio.

Tenho sérios problemas de convívio com as tardes que elas passam numa varanda minúscula, a beber, a fumar e a falar aos gritos. Riem muito, antes e depois do álcool. De quando em quando uma ensaia palavras de português e diz: estrada da Palmela, com a pronúncia que podem imaginar. As outras batem palmas e riem mais e mais. Não posso dizer que é o sol e a praia que lhes provoca este comportamento pois elas não saem praticamente da varanda. Está certo que da varanda se veêm dos dois castelos e a tal estrada de Palmela, mesmo assim é um horizonte bem limitado para passar férias. Ou talvez eu simplesmente não as compreenda, como imaginamos que eles não nos compreendem a nós.

~CC~


domingo, 16 de setembro de 2018

Reconciliação




Obrigada
Nada por isso.

Como é mano, estamos juntos?
Estamos juntos!

A primeira expressão usavam-na connosco, com um tom cortês, quase cerimonioso. A segunda correspondia a um sorriso mais aberto, usavam-na entre eles. Apetecia-me dizer aquilo assim também, daquela forma cantada, tão bonita. Também queria estar naquele estamos juntos. E estive um bocadinho, dia a dia mais. 

Estou de volta mas ainda estou a voltar. O tempo é mesmo relativo, foi tão pouco e pareceu tanto. Deve ser porque cruzar o equador muda tudo, os horizontes, o hemisfério que mais usamos, as palavras que sendo as mesmas têm outros sentidos. 

Um dia metade do grupo de formandos trouxe roupa amarela vestida, não tinham combinado, mas acertaram na minha cor favorita embora não a use. Fotografei-os assim de amarelo e a sorrir. Fotografei mais coisas, coisas que ficaram a doer cá dentro como as memórias da guerra civil que lhes levou pais, irmãos e irmãs mais velhos.

O muro que nos guardava era também um muro que nos agredia, alto, de arame farpado, o guarda à porta, a necessidade de avisar cada saída, de avaliar se seria ou não segura. Nós não sabemos como é.  Para não lhe chamar prisão, chamava-lhe um internato. 

Talvez não tenha sido apenas para vencer o medo, talvez uma parte de mim necessitasse de reconciliação. De os ouvir chamar-me pelo meu verdadeiro nome e sentir-me outra vez a menina que fazia bolas de sabão com as canas do mamão.

~CC~



segunda-feira, 10 de setembro de 2018

Outra razão



Hoje descobri que não vim apenas para vencer o medo. Vim também para acrescentar-me. Jamais poderia conhecer em Portugal vidas com estas histórias. Comovi-me, com a contenção necessária à situação, as lágrimas que deitamos podem ser para dentro.

~CC~




PS. Tenho muito pouca rede e muito pouco tempo....ainda assim se alguém vos ler de Angola, saibam que provavelmente fui eu,

terça-feira, 4 de setembro de 2018

Esta luta contra o medo



Foi em 2007 ou talvez em 2008, o boletim internacional de vacinas situa-o em 2007, eu é que pensava ter sido depois. Lembro-me de sentir muito o teu amor, dele estar muito presente, de me acompanhar. Ainda não nos tínhamos separado nenhuma vez, nem por vontade, nem por obrigação.

Voltava a Angola, lugar em que nasci, pela primeira vez. A emoção era enorme, vejo agora como era intensa. Nunca esquecerei a primeira imagem da terra vermelha, com o vento a levantá-la e o pó a cobrir-nos. Sim, era a terra onde nascera. Foi também nessa viagem e por causa dela que deixei de lhe chamar a minha terra. Mas isso seria certamente outra história para contar. Ia em trabalho por cerca de 15 dias. No último dia, antes da volta, adoeci gravemente e fiquei lá internada por quase uma semana. Poupo os detalhes de quem viu nessa altura a morte a rondar. Foi a primeira vez que passei os anos numa cama de hospital. Era Setembro, agora também é Setembro.

Dentro de poucos dias irei novamente em trabalho a Angola. Depois dessa vez enfrentei novamente duas situações de muito perigo, um acidente de viação e a doença, esse maldito bicho chamado cancro, nome que a minha filha me diz que devo evitar por não ser científico (displasia é o nome correcto, as coisas que aprendemos). Deixou marcas, não apenas as cicatrizes mas uma dieta para sempre, o perigo de me engasgar e vomitar. E o fantasma eterno do seu regresso.

Por tudo isto toda a gente me diz para não ir a Angola. A família abana a cabeça e profere o termo loucura. Os meus médicos são mais cautelosos e encorajam-me, dizem que devo procurar uma vida normal. Dantes esta era a minha vida normal, não é coisa que tenha iniciado agora, teria que ser algo que eu abandonaria. 

Se tenho medo? Sim, muito medo. E é por causa dele que vou. Não se pode deixar que seja o medo a ganhar a batalha. Vou para lhe fazer frente. Vou pela mesma razão que peguei no carro e voltei a conduzir a seguir ao acidente de viação. Vou porque se o medo me vencer, isso será também um modo de morrer, lentamente e em vida.

~CC~






segunda-feira, 3 de setembro de 2018

domingo, 2 de setembro de 2018

Bicho humano



Uma parte da tristeza do regresso ao trabalho foi atenuada pelo "Amor é" bem alto na rádio, enquanto se juntavam mais e mais carros na autoestrada de volta. Todo o programa (creio que a passar em repetição) foi em torno do livro "O romântico incurável", escrito por um psicólogo que relata os casos de desejo, frustação, amor e raiva que ao longo dos anos conheceu e procurou tratar através da terapia. 

Nunca tinha ouvido falar do livro nem do autor mas fiquei com vontade de ler. O Júlio Machado Vaz envelhece bem, continua a ser bom ouvi-lo, mesmo que o que diga nos seja afinal familiar, o que sabíamos já. Gosto dessa sapiência que não se arroga de sabedoria e se mistura com o senso comum. 

Achei piada ao modo como discutiram o ciúme. É tão comummente sacralizado como a quinta essência do amor ou, pelo contrário, odiado como um mal humano do qual devemos ter vergonha. Provavelmente a verdade anda ali pelo meio, se amamos uma pessoa é bem possível que não a achemos apenas digna do nosso amor mas também do amor de outros, que queiram o que nós temos, se é que ter é qualquer coisa que se possa dizer de alguém. E que a nossa insegurança surja, será que não aparecerá então esse alguém mais merecedor, mais belo, melhor, alguém por quem o nosso amor se interessará mais do que por nós? O ciúme nem precisa de um objecto concreto, é só conjectura, incerteza, dúvida. Excessivo mata-nos e mata o outro, é cinza. Já da sua ausência total ninguém fala? Existirá? Será mesmo verdadeiro o poliamor? Júlio conta-nos como no pós 25 de Abril se tentou decretar à esquerda o fim do ciúme, esse sentimento burguês de posse. E como falharam. 

Todos os sentimentos humanos me interessam em particular. É aliás o que mais me interessa, o bicho humano tem qualquer coisa de feio mas sem dúvida muito de belo também.

~CC~