quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Rapar o cabelo

 

Por já ter rapado o cabelo e ter sentido a violência de (ter de) o fazer, imagino a dor misturada com revolta dessas mulheres que com as suas próprias tesouras cortam pedaço a pedaço o cabelo que não estão autorizadas a mostrar ao mundo. Que coragem a delas. 

Ainda nos querem convencer que aqueles panos que as cobrem são uma opção, que é (a) cultura. Se é cultura, cada um deveria poder optar por usar ou não usar. Um véu mal posto como passaporte para a morte em pleno século XXI, que arrepio frio me percorre a espinha.

~CC~

terça-feira, 27 de setembro de 2022

De mãos dadas

 

Caminhavam à minha frente calados, lado a lado. Poderiam ser imãos, amigos, namorados.

Ao final da subida, ele estendeu-lhe a mão, ela agarrou-a docemente e encostou a cabeça dela à dele, dando-lhe um toque. Foi bonito.

Não se vê muitos jovens de mãos dadas, na minha geração era tão comum.

~CC~

quinta-feira, 22 de setembro de 2022

Quem sou...

Hesitei nas portas, como não...

Uma infância de menina calada, em diálogo com os bichos, as histórias, observando mais do que vivendo. Mais silêncio no meio do caos, um pouco mais tarde. E mais ainda por dentro da adolescência, ainda que com momentos sonoros, estridentes, mais indo na onda do que a provocando. Mais tarde, a aprendizagem da fala, do seu valor, do seu poder, ainda assim comedidamente. Mais à vontade na poética escondida ou na palavra no campo da ciência, laivos de brilho às vezes.

Por isso a hesitação nas portas. Numa dizia "Blá", na outra "Blá, blá, blá, blá, blá..." . Demorei a chegar lá e mais ainda a entrar. Não me reconhecia naquela porta, nem a mim, nem a tantas mulheres. Talvez alguns homens também não se reconhecessem naquela porta, supostamente sua.

Apeteceu-me pintá-las, grafitá-las, dizer que não sou, não somos, algumas de nós não são, logo não somos todas.

E no entanto mulher, sempre, com gosto, em (re)nascimento.

~CC~



sexta-feira, 16 de setembro de 2022

Memória amarelada de um estremecer

 

Ocorreu-me pensar num beijo naquela fase de meditação da aula de yoga, um pensamento intrometido naquele azul que ela nos pede para inspirar e fazer durar toda a semana.

Curioso é que era um beijo abstracto, uma sensação sem pessoa lá dentro, uma experiência de memória estranha, na tentativa de saber se ainda gostaria. Por vezes tentava encaixar uma pessoa do passado lá dentro, a ver se funcionava melhor, mas a pessoa fugia ou tornava-se numa outra, não conseguia fixá-la. Experimentei então com pessoas que não tivesse realmente beijado mas tornava-se ainda mais ridículo, a sensação não aparecia.

Ficou a memória já amarelada de um estremecer. Que me desculpe a professora de yoga, sei que não é suposto.

~CC~

quinta-feira, 15 de setembro de 2022

Mais quietos

 

Adoecem as pessoas, mistura de corpo e alma feridos. 

Muitas vezes aquilo que deveria ser a fonte do seu bem estar, o seu trabalho, é afinal a fonte da sua dor, mal estar e insegurança. São inúmeros casos e não quero dar-lhe nomes finos e importados, teremos as nossas próprias palavras para designar a humilhação a que muitos são sujeitos, fazendo-os crer que valem pouco, quer seja no início, quer seja no final de anos de profissão. Sempre a tentar que as pessoas se sintam umas sortudas apenas por terem trabalho. E nem falo das nossas baixas renumerações, o meu olhar incide sobre o que é feito para incluir a pessoa, apoiá-la e fazê-la sentir bem no seu local de trabalho, aquele onde se passa mais de metade da vida.

Vejo por isso com grande satisfação este movimento que avança como uma espécie de revolta silenciosa contra o "vestir a camisola" que imperou durante décadas. Afinal quem vestia a nossa camisola? Quem se punha no lugar do trabalhador, agora designado como colaborador pelas teorias da gestão soft. Quiet Quitting foi traduzido por "demissão silenciosa", parece-me má tradução, mas percebo a ideia. Sofri desse mal estar de estar disponível quase 24 horas por dia e só muito recentemente aprendi a não ver mails de trabalho à noite. Vejo muitos outros, cuja recompensa foi nula. Aposto assim que as novas gerações vão estabelecer os limites que a minha não conseguiu colocar. E ainda me sinto a tempo de aprender alguma coisa.

~CC~



segunda-feira, 12 de setembro de 2022

A viagem


Julgamos que já conhecemos mas na realidade não. Ouvimos falar, disseram-nos umas quantas coisas, uns sítios para ver, umas trivialidades sobre aquele povo. Nem tudo é mentira mas certamente muito não é verdade. Os guias e os roteiros de viagem têm coisas úteis, mas tanto de inútil. Há lugares que não podemos evitar de tanto que nos foi dito sobre eles, mas descobrimos tanto além disso quando vamos mais a fundo. Basta abrir bem os olhos, procurar ao acaso numa livraria, deambular sem saber por onde, andar nos transportes públicos, abrir bem as narinas aos cheiros, entrar nos supermercados, parar pelos cafés sem pressa de coisa alguma, provar apenas o que nos apetece e não tudo o que nos dizem. Distinguimos então com clareza o que foi feito para o turista ver, consumir e levar do que não o é. E como não somos melhores que ninguém até trazemos algumas dessas coisas, mas com a consciência plena do que é o objecto icónico, pronto a consumir. E às vezes é bom.

Contudo, há mais beleza nos girassóis que por toda a cidade nascem em canteirinhos desordenados do que nos campos penteados de tulipas. E ainda que lhe chamem girassóis de Van Gogh, a verdade é que eles os pintou em decomposição, metade deles já sem as pétalas amarelas, quase nus. São assim também as viagens dos viajantes, nem tudo nelas é belo, doem-nos os pés, lamentamos as filas do aeroporto, os alojamentos baratos, os preços das coisas, o suor e as capas feias para a chuva, estão cheias de coisas que não constam nas fotografias nem nos postais. Ainda assim, trago o coração cheio da beleza da água, dos momentos cúmplices, do riso de estar longe de tudo. Ainda assim, vamos sempre que puderes.

~CC~





segunda-feira, 5 de setembro de 2022

Coração voador

 

Andar ao inverso nem que seja por breves momentos.

Ter o prazer de ir, quanto quase todos regressam. Ainda que tudo o que risca o céu e não é pássaro me cause calafrios.

Vencido o medo, o gosto que vai ser acordar numa cidade desconhecida. É o meu lado de coração voador.

~CC~

quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Eis Setembro 22

 

Chegou Setembro.

Eu mais adiante, também chegarei com ele, como aliás parte significativa da família, mistérios.

Não estou preparada para nascer, mas muito menos para voltar a tudo o que existia antes das férias. Dizem que nunca estamos. Porém, cada ano é mais duro.

Salva-me a certeza que em Setembro haverá chuva, quase sempre cai no dia em que nasci. Este ano, em vez de ficar chateada, vou deixar que me molhe o rosto.

~CC~