sexta-feira, 30 de março de 2018

Chuva oblíqua


Pensava que a chuva oblíqua era uma imagem poética. Mas hoje vi-a cair assim, com grande intensidade, inclinada sobre o campo, esse lugar onde o meu coração descansa como em nenhum outro.

~CC~

terça-feira, 27 de março de 2018

Dia T




TE-A-TRO

emoção
das primeiras a sério

nunca esqueci a voz
a voz dele a ecoar na sala

o esforço de sair de mim
de olhar nos olhos de alguém
de tocar a pele dos outros

nova, tão nova
não pude, não soube aguentar a intensidade
parti de um dia para o outro

era luz a mais, intensidade a mais, incerteza a mais

e fui voltando devagar
espectadora com c
amante com A 

pronta a render-me 
à arte maior
soberba quando é bela.

~CC~



domingo, 25 de março de 2018

Navegar



São os outros que me dizem que ainda sou uma pessoa doente, enquanto eu sou toda o esquecimento disso.  Nem é querer ser normal, é grande parte de mim já se situar nesta outra vida que ganhei. Eu era doente naquela outra vida. Foi na minha escola que a secretária, com genuína preocupação e incrédula me perguntou: mas pode levar vacinas para ir a África? E eu nem soube responder. Por uns segundos nem percebi porque é que ela me estava a perguntar aquilo. Perguntei-me sobre a pergunta dela e não sobre a resposta a dar-lhe. Talvez exagere porque está a fazer apenas um ano que saí do hospital, mas a maior parte do tempo não tenho a consciência do meu exagero. Só acontece quando pego um peso que não consigo erguer, quando o cansaço ao fim do dia me derruba, quando não dormi como devia ser porque espreitaram os sintomas (como hoje). Limitar-me em termos dos desafios a enfrentar pela doença não me faz sentido, não há protecção que nos valha em relação ao regresso do bicho mau. A reflexão sobre o sim e o não em relação ao que escolho ou não fazer não pode ser por aí. Tenho que avaliar mais pelo prazer que as coisas me irão dar. Contudo, nem sempre é fácil fazer essa avaliação. Cada coisa boa pode trazer lá dentro uma coisa que gosto menos. Por exemplo, gosto de viajar mas não gosto de andar de avião. E nem sempre o que eu sei que me daria mais prazer é possível, nem tudo é possível, às vezes falta a companhia, o dinheiro, o tempo. Mas vou avançando por pequenas aventuras, alargando o círculo do que faço, enfrentando um risco maior a cada mês que passa. Não é mau que os outros me lembrem das minhas limitações, são a minha consciência no exterior de mim, a vigilância que não faço. Mas há ali um limite, uma fronteira ténue, se exageram sinto que me atribuem um estatuto de incapacidade que me dói. Para eles também não é fácil, trata-se de proteger sem abafar, cuidar sem exagero, deixar navegar avisando dos riscos da navegação, uma coisa que as mães, quase todas as mães sabem como é.

~CC~







quarta-feira, 21 de março de 2018

De manhã bem cedo apetecia-me



De manhã bem cedo apeteceu-me escrever-te um poema. Da forma como me disseste que não te apaixonavas, que não sabias já o que era isso. Eu não me importei muito, vinha de uma paixão estúpida, daquelas que se incendeiam mais rápido que um fósforo e depois pouco sobra, um quase nada. Eu disse que me apaixonava mas que não me apetecia apaixonar-me. Ficámos juntos não apaixonados. Ou talvez sim. A dizer amo-te de quando em quando. A passarmos por várias primaveras, vários dias da poesia, a dizermos poesia uma e outra vez.  A amarmos a poesia. A amarmos dias de Primavera. A amarmos o que encontrámos de poesia um no outro, a amarmos o que encontrámos de Primavera um no outro. De manhã bem cedo apeteceu-me escrever-te um poema. E  como não podia, não sabia fazê-lo, liguei-te e foi a tua voz o meu poema. 

~CC~

domingo, 18 de março de 2018

Ofício



Às vezes canso-me, mas quase sempre batalho.

Uma batalha longa, como uma corrida de fundo, sem fim à vista. Uma batalha pela Educação, pela Escola, outra Educação, outra Escola. De vez em quando, contudo, acho que a escola tal como existe está de tal forma esgotada que devia acabar.

Ontem mesmo, um sábado de manhã, tão precioso para ver chover. E eu lá, na batalha. Trabalhar com adultos e profissionais é muito mais difícil do que com jovens em formação. Perguntando pelas perguntas que fazem. Pela importância de fazer perguntas, de deixar fazer perguntas. Como diz Tony Wagner, uma criança de 4 anos faz cerca de 100 perguntas por dia. E na conversa eles dizem: os alunos olham para as perguntas à procura da rasteira...e só lhes interessa a resposta. E quem lhes ensinou tal coisa? Emudecem, olham para o lado, mas há gente corajosa no meio: fomos nós.

Desafiamos, confrontamos, confortamos às vezes que também é preciso e ninguém retira a dificuldade do ofício. Ao fim de dois dias alguns anunciam que vão desistir. Dantes talvez me preocupasse, arrepiasse caminho. Agora não, se não há algum conflito, não há mudança. Sim, quem não está a gostar, pode desistir, há mais caminhos, cada um trilha o que quer. Ficarão por certo alguns e com esses também aprenderemos coisas.

~CC~





sábado, 17 de março de 2018

E não obstante...


E não obstante a chuva e o frio que não desaparece, elas estão ali, vieram fazer o ninho no mesmo lugar do ano passado. E são novamente quatro. Talvez a Primavera as venha acompanhar. Eu espero-a, como sempre a esperei, pelas coisas simples, com nomes simples, como flores e borboletas.

~CC~

segunda-feira, 12 de março de 2018

O teu dia



Tu vieste para me anunciar a Primavera. Por seres linda como uma flor, divertida como a brisa ligeira, aluada como um passarinho, persistente como uma estação que quer ganhar ao Inverno. Combinas com os primeiros dias com os pés descalços, as primeiras idas à praia, o sabor dos morangos e dos gelados (ai em Roma), a sonolência dos primeiros calores, a vida a transbordar dos ninhos. A vida sem ti existiria mas seria uma outra coisa e eu um ser menos inteiro, menos rico, menos feliz. É o teu dia mas como sei que gostarias de chamar teus a todos os dias da tua vida.

~CC~

sábado, 10 de março de 2018

É junto ao Sado...






Tudo com mais sabor, apareçam!
Mais informações em https://www.facebook.com/moveassociacao e inscrições aqui.
~CC~


quinta-feira, 8 de março de 2018

Uma coisa boa de ver


Gosto das mulheres. De quase todas.

Talvez por isso me custe mais quando elas se derrotam, se desequilibram, se desunem.

E fique mais feliz quando são elas que mostram o caminho, vão à luta, dizem não.

Uma mulher feliz é uma coisa tão boa de se ver. Guardo comigo imagens de mulheres felizes, do seu riso.

~CC~


quarta-feira, 7 de março de 2018

Abismos humanos



Veio primeiro uma, depois a outra. Do interior ao exterior um abismo. 

Mãe e filha com um oceano pelo meio. Um oceano revolto e agreste.

A filha, a pedir colo aos vinte e um anos. A querer caminhar sozinha mas com pesadas grilhetas nos pés, uma família destruída como herança. Contive-me para não lhe oferecer o quarto vazio ali de dentro e o meu colo.

A mãe auto centrada, um equilíbrio forçado, uma ambição desmedida, chamando ainda "minha" a alguém que há muito já não era dela. A ambivalência é um dos grandes desnortes da maternidade, do que ela pode conter, do que ela pode fazer. Talvez esta mulher sofra também, algo que contudo, não está acessível, traz com ela um espelho onde o mais importante é olhar-se.

Ambas mulheres, apetecia-me apelar a essa cumplicidade. Mas nada entre elas se tinha erguido com esse alicerce.

O que delas mostram fora deste gabinete em que as recebo em nada condiz com o que mostram aqui dentro. Pergunto-me porque lhes abro a porta, porque as oiço, porque é que isto me acontece. Dizes-me muitas vezes para não lhes dar o telefone, não lhes abrir esta porta. Tens razão, não faz parte do meu ofício. Deste meu ofício. Mas há alguma coisa na minha pele que é visível, que é claro para eles, para elas. E não é curiosidade e não é pena. Talvez seja visível a minha apetência por tudo o que é humano, pela possibilidade de compreender de que matéria se compõe esta espécie, uma eterna investigação que nunca escreverei. Sim, porque a ideia de ajudar, se antes foi trave mestra da minha existência, há muito foi destruída pela minha auto consciência crítica. Acho que eles e elas sabem que não os posso efectivamente ajudar, não anuncio, nunca prometi, nada prometo.

Compreender como é que aquele que será, em princípio, o maior amor do mundo, se pode reduzir a uma amarga batalha, o mel em fel. A espécie humana é de uma complexidade que ainda me espanta.

~CC~

Nota: ocorre-me, já depois de ter escrito, a trilogia de Valério Romão intitulada "Paternidades falhadas" e penso na lucidez de tal título e no modo como aqui encaixa.










sexta-feira, 2 de março de 2018

Por causa do cinema...



Sempre gostei muito de cinema. Entre as muitas coisas que poderia ter sido, estar atrás de uma câmara poderia ter-me feito feliz, à frente dela nem tanto. Gosto muito especialmente de documentários.

Mas nunca liguei muito às cerimónias de atribuição de prémios nos diversos festivais e aos Óscares em particular. Se bem, que ultrapassada a fase anti americana, via de vez em quando a cerimónia, sabia o que se passava, quase sempre atenta. Mas a minha costela mais anárquica e crítica sempre a considerar como é possível que só se fale de cinema a propósito de uma parcela do mundo, como tanta coisa magnífica a passar-se no resto dele.

Mas no ano passado tudo mudou. Estava internada nos cuidados intensivos em que não havia televisão. Mas estive sempre consciente, literalmente sempre. E as pequenas coisas tinham um valor imenso, tudo era sinónimo de vida, de normalidade, de encontro com os outros. O médico responsável pela unidade gostava de cinema, eu, ele e a minha filha falávamos de cinema. E apostámos em conjunto em torcer pelo Moonlight para melhor filme. Eu tinha visto o filme com ela. numa televisão portátil que eles tinham trazido. O filme ganhou e na manhã seguinte o médico veio dizer-me eufórico que tínhamos ganho. Mais tarde disse-me que quando o filme foi vencedor intuiu que também eu seria vencedora.

Emocionei-me hoje por os ter vindo ver, dizer-lhes como esta batalha também se ganhou com eles.  Para o lembrar que a cerimónia é já este domingo. Em quem apostamos desta vez perguntou ele. E eu respondi que nos "Três Cartazes à beira da estrada" para melhor filme. Ele disse que para melhor actor Daniel Day Lewis, pela Linha Fantasma. Eu não vi mas se puder ainda vejo. E rimos.

Mas pela primeira vez em muito tempo tive uma genuína vontade de chorar, segurei as lágrimas a custo. 

~CC~