quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

Para abutres e outros seres inumanos

 

Atendendo a que já morreram 43 mil palestinianos, a Riviera Palestina, a construir como futuro destino turístico será um lugar de banhos com cheiro a morte, bom para abutres e outros seres inumanos. Mesmo assim, deve haver quem compre o bilhete de avião.

Nem os ficcionistas mais loucos criariam este guião.

~CC~

Menos uma catedral

 

Eram só umas jovens de vinte anos num dia de sol, sentadas com os seus computadores frente a frente, aparentemente tão absortas quanto eu dentro do écran. E uma delas mostrou à outra o trabalho de Ciência Política, pedindo-lhe opinião. E a outra leu-o, talvez em dez minutos, disse que estava bom. Eu esperei que a conversa pudesse girar em torno do tema, não é todos os dias que se encontra alguém de vinte anos, na mesa ao lado, que estuda tal tema. Mas deslizaram durante mais de uma hora por objectos de marca, perfumes, prémios Grammy e cidades para as quais queriam viajar ou já tinham viajado. Os computadores continuam abertos, como um adorno, tal como o dito trabalho, apenas qualquer coisa para entregar a um professor qualquer num dia qualquer. 

Vi-as depois seguir caminho, tão leves, tão flutuantes, tão bonitas, só me esqueci foi de reparar nas marcas que levavam nos pés ou nos braços, mas provavelmente não saberia reconhecê-las como não sei reconhecer metade dos rostos ditos famosos. O café do CAM já não é o mesmo que intensamente habitei nos mesmos vinte anos delas, nesse tempo também não nos cobravam um chá por três euros e vinte cêntimos e os empregados não se dirigiam a nós em Inglês como se fossemos estrangeiros no nosso próprio país. Com estes preços, com este ambiente, nem a pala do edifício me fascinou. Até as catedrais de uma vida empalidecem. 

~CC~





domingo, 2 de fevereiro de 2025

É livre o pensamento

 


Enquanto estou aprisionada em tarefas múltiplas que me sugam todo o tempo disponível é quando o meu pensamento se liberta de mim e viaja a sítios inimagináveis onde provavelmente nunca irei. Hoje enquanto estava em casa presa ao computador fui a um festival de camélias em Sintra. Eram belas, de todas as cores, com a minha preferência para o branco que se destaca nas folhas verde escuro, exalavam um suave perfume que parece que me ficou agarrado à roupa. 

Não se riam, não dizem que a felicidade é uma busca interior?! 

Não que eu acredite, em certas circunstâncias extremas o pensamento agarra-se às coisas mais básicas: água, comida, agasalho, alívio da dor. Na presença delas, podemos deixá-lo ir a lugares onde seríamos felizes, posso imaginar-me.

~CC~


Nota: para quem possa levar o seu corpo até lá.

quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

Frases que se tornaram detestáveis (I)

 


A senhora tem a Aplicação?


(segue-se normalmente o rol de vantagens e alguma pressão para instalar).


~CC~



terça-feira, 28 de janeiro de 2025

É sublime

 

Ainda estou aqui

Creio que nunca tinha visto uma câmara captar tão bem a felicidade e o amor conjugal, aquele que se situa entre o pequeno almoço e o deitar, se enrola nos risos das crianças, desdobra-se pela praia, vive também com os amigos e se demora na tarde lenta de um Domingo, num jogo a dois. Uma família em tudo o que ela representa dos laços que são necessários para iluminar a vida com um sol doce. 

Muito depois do filme ter acabado viviam dentro de mim as imagens daquelas crianças, tão próximas das crianças que nós também fomos em Luanda, inocentes em tudo, imunes a tudo.

O que interrompe tal felicidade é brutal, intenso e doloroso. Um pai intensamente amado retirado à força de um dia para o outro. Eis o caroço da Ditadura Militar, a capacidade de levar pessoas das suas casas sem ter que indicar qualquer culpa ou crime, interrogando-as, torturando-as, matando-as. Pior, não sendo capaz de assumir essa morte, deixando um corpo por enterrar, a família com um luto por fazer. Uma ausência que mata e corrói, que deixa lágrimas no lugar daqueles risos tão belos. A luta daquela mulher é soberba porque é também a da sua transformação, embora venha aliada a tanta dor.

Um dos filmes que ficará para sempre em mim.

E eu que vi uma vida interrompida, perdendo aquela casa da infância, tantas coisas parecidas naquela largueza, no chão, na inocência, até as nossas lágrimas de crianças e sobretudo dos meus irmãos adolescentes, também nós deixando para trás um pai (que eu muito amava àquela data), eu soube que ao menos a minha dor significou a liberdade de um povo e  isso foi um bálsamo que mais tarde actuou como um penso sobre a ferida. Ali não, nada houve de sentido ou significado, a ferida está aberta pois os responsáveis nem sequer foram julgados. 

Este filme, neste português doce de além mar, é sublime.

~CC~