sexta-feira, 4 de outubro de 2024

O que é a poesia?!

 

Esta semana o cabaz de frutas e legumes que me chega da quinta trazia uma flor amarela.

- Olha, mandaram uma flor! Disse eu contente.

- Pois, não percebo, não se come nem se bebe! Disse ele com algum desdém.

E abriu-se ali logo um fosso.

Senti isto tantas vezes com algumas pessoas e muito próximas. Eu fazia um percurso para ir beber um café junto ao rio, perto de um jardim ou tão só num lugar com plantas e alguém me dizia que o supermercado era mais perto e mais barato. Era tão difícil explicar que poesia não é ler poemas ou escrevê-los, é a forma como se encara a vida e se é sensível ao mundo em redor. 

Está ali a poesia pousada na flor amarela dentro do cabaz.

~CC~

quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Muito a custo e sem chegar ao fim

 

A Ruivinha tão nova e singela, de olho azul, talvez por me ver ali a almoçar confortável numa mesa de um, pediu também uma mesa. De salientar que a especialidade da casa eram os hambúrgueres mas havia algumas outras opções, outra que escolhi e estava bem deliciosa. Ela demorou e demorou na escolha, embora a lista não fosse grande e optou pelo mais simples, apenas com queijo. Reparei no seu uso da língua castelhana, em vez da inglesa, que lhe parecia assentar melhor como (sua) língua nativa. Talvez se julgasse em Espanha ou talvez por simpatia tenha querido escolher a língua mais próxima da nossa. Numa eternidade de tempo, talvez uma hora ou mais, ela apenas debicou o seu repasto, tendo deixado rigorosamente metade no prato. Vi-lhe o esforço que parecia quase causar-lhe lágrimas. O empregado esforçou-se por não a incomodar, mas depois de tanto tempo lá lhe perguntou se já tinha terminado, uma vez que ela não tinha usado os talheres e não havia nenhum sinal da sua decisão. Envergonhada, disse que levava aquela metade, que estava bom mas não tinha fome. 

Acabei o meu livro, li-o numa hora*, exactamente o tempo que ela dedicou ao seu esforço de comer uma refeição. Pensei em como eu própria, por motivos de saúde, já tinha tido igual vergonha. No caso dela, a juventude não me parecia poder coincidir com uma doença como a minha, mas de modo igual, o seu desconforto. Apontaria qualquer distúrbio alimentar pois ela sentou-se para fazer uma refeição, simplesmente não conseguiu. Do mesmo modo que outros não conseguem parar de comer ou de beber. 

Tão nova, tão bonita, tão singela. Apeteceu-me abraçá-la. Mas claro que me impedi, não fosse levar um tabefe em espanhol.

~CC~

* o livro é o último do Gabriel Garcia Márquez, bem pequenino.




sábado, 28 de setembro de 2024

Cinco conchas e um último banho de mar

 

Finalmente a praia grande, a da areia fina, bem alojada na minha memória dos dias felizes. Creio risível ter claustrofobia nas praias pequenas ladeadas por rocha que num instante se fazem a pé e em que se parece sufocar no ínfimo espaço para estender a toalha, não obstante a sua beleza. Rio-me de mim mesma mas respiro bem melhor nas praias grandes que não parecem ter princípio nem fim e onde basta caminhar para encontrar espaço. A cor deste mar é tão bonita como a cor do mar na minha terra e tem uma transparência e uma calmaria que me faz sentir tranquila e em paz. Tenho consciência que o Verão está a acabar e que o meu número de banhos de mar ficou numa média muito aquém do amor que lhe tenho. Como tal, entro na água fria para lhe sentir o sal, suspeito que pela última vez. Venho despedir-me, murmuro. Não há peixe nem gaivota que me responda. 

Encontrei um desenho de conchas na areia, eram grandes e bonitas. Quem apanhou conchas tão belas e as deixou ficar?! Trouxe cinco, deixei cinco para o próximo que as queira levar ou para o mar as engolir de novo. Não gastar tudo, não consumir tudo, não ter a avidez das coisas. Quase ninguém está nesta praia sozinha como eu, não anda pela cidade, não se senta para almoçar onde lhe apetece, às vezes sinto que me olham com pena. Mas eu sou feliz a conversar comigo, são longas conversas de mim para mim, momentos de introspecção absolutamente necessários para escavar e encontrar-me.

Cinco conchas e um último banho de mar.

~CC~



quinta-feira, 26 de setembro de 2024

O Algarve no Outono


Olhando para o lado direito a vista maravilha-se, que lindas enseadas que se recortam nas rochas, deixando aqui e ali passar o mar. Quem não viria até cá olhando para a foto, provavelmente o que as agências de viagens mostram. Não olhem, contudo, para o lado da terra, deixem apenas os vossos olhos poisados nas ondinhas de espuma e no horizonte.

Se virarmos o rosto para a terra, o monstruoso cenário aparece e retira-nos qualquer suspiro maravilhado, são dezenas de prédios de várias cores, algumas bem feias, amontoados na desordem que foi a construção entre a Praia da Rocha e o Alvor. O Outono levou os banhos de mar e no cinzento da paisagem o lixo aparece inclemente, os buracos da estrada tornam-se visíveis e o verde das falésias aparece descolorado e tristonho. Não quero pensar para onde correrão os esgotos desta enorme malha urbana, a maior parte vazia e a outra parte habitada por quem vem com as promoções de final de época.

Na verdade quase não oiço falar Português, o Inglês é a língua franca destes aposentados ingleses e americanos que salvam os cafés e restaurantes de uma falência previsível, talvez alguns sejam alemães. Os empregados de mesa também falam Inglês mas são predominantemente asiáticos. Alguns deles insistem na praia e há alguns na água, afinal foi para isso que vieram, não importa o chuvisco. 

O Inglês proprietário do restaurante onde almocei e onde só havia falantes de Inglês fez questão de usar o seu parco português para falar comigo, talvez afinal ele tenha chamado Jacarandá ao lugar na expectativa de se cruzar com povos latinos e aspirar outros perfumes. Já eu devia ficar mais tempo para praticar o meu Inglês sem ir a Inglaterra. 

~CC~



quarta-feira, 25 de setembro de 2024

Não podemos ignorar!

 

O homem cresce* e da sua boca saem palavras fortes, decisivas, assustadoras. Cada uma delas é um lamento por mais uma bomba, mais uma criança morta ou que ficou sem pais ou sem casa. Cada palavra dele é um alerta para o ambiente, os países desfeitos, as fronteiras dos tratados ultrapassadas, a vida humana sem qualquer valor. Mas ontem ele disse o que não queríamos ouvir: a ONU já não tem poder para quase nada e precisa de ser refundada. Maldito poder de veto, na sua origem o mundo já deturpado.

Quando nos desiludimos, tendemos a querer partir, não deixar cá crianças ou nos alhearmos de tudo. Mas não é a solução, temos que educar as nossas crianças para erguerem a sua voz nos locais em que o podem fazer, nós próprios o temos que fazer. Eu também fecho os olhos, eu também mudo de canal muitas vezes, eu também me sinto impotente, eu também não sei bem o que fazer, só sei que não podemos ignorar.

~CC~


* António Guterres