segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Caixas e caixinhas

 

A passagem era um pouco estreita para cabermos as duas, mas com jeito cabíamos. Mas ela fez questão de dizer: desculpe, eu sou gorducha. Acho que fiz um sorriso amarelo, na verdade nem foi difícil passarmos, conseguimos fazê-lo sem nos tocarmos. 

Nunca ninguém diria: pode passar à vontade que eu sou magra...ou desculpe que eu sou muito alto.

Malditas caixas em que nos encerram e nós nos encerramos.

~CC~

quinta-feira, 17 de outubro de 2024

À bolina

 

Sonhou uma família grande e teve-a. Não são todas as pessoas que têm quatro filhos, só talvez as muito corajosas. Contudo, a harmonia que idealizou, um grande piquenique com todos a partilhar a merenda, a rir e a brincar, esse ficou fora do postal.  Tenho muito carinho pelas suas lágrimas, entendo-a. 

Mas as famílias não são coisas que possamos sonhar, são mais barcos no mar aberto e devemos aprender a navegar à bolina. 

~CC~

terça-feira, 15 de outubro de 2024

Lisboa que desaparece

 

As cidades transformam-se perdendo mais e mais identidade, num movimento que parece impossível de travar. Um lugar torna-se sucesso mesmo sendo originalmente um território de armazéns fabris meio feio, é transformado em restaurantes, lojas de design e de moda. Do que ele era não sobrou um pequeno museu, uma homenagem, uma memória, tudo se varreu. Mas logo noutro ponto da cidade acontece exactamente o mesmo, e são os mesmos armazéns, a mesma lógica, quase as mesmas ementas. São também pessoas muito semelhantes os clientes, gente jovem de classe alta ou média alta, já seguros na vida ou desde sempre seguros.

Se fechar os olhos e os abrir de repente não sei onde estou, circulam empregados de origem asiática que mal falam e percebem inglês e muito menos português, mas sorriem sempre apesar dos seus olhos permanecerem tristes. As cervejas têm que ser artesanais, tem que se comer pouco ou não mostrar grande apetite e os pratos desiguais, assim como as cadeiras ou os bancos.

Fui a convite mas não já consigo sentir-me confortável nestes lugares. A minha Lisboa desaparece aos poucos.

~CC~

Nota: paga-se à entrada e colocam-nos uma pulseira, a partir daí podemos comer o que quisermos do buffet...pensando bem, alguma analogia com os processos fabris que em muito se basearam na desumanização.

sexta-feira, 11 de outubro de 2024

A nobel da Literatura

 

Senti-me muitos frustrada com o três últimos prémios nobel, não conhecia nem tinha lido nenhum daqueles autores.

Agora finalmente sim. Li a Vegetariana e o Livro Branco. Os livros mais estranhos que alguma vez li. Ainda hoje não consigo dizer se gostei ou não de cada um deles. Com a Vegetariana senti a mesma sensação de náusea que senti com o Ensaio sobre a Cegueira de Saramago, é como se a humanidade se tivesse perdido de si mesma, há uma tristeza colada a cada palavra e é como nos encerrassem num beco sem saída. Sofrer com os livros é uma coisa que me custa, não se trata de querer livros com histórias bonitas e finais felizes, é mais não conseguirmos encontrar empatia com aquele sofrimento, é essa a dificuldade. A mulher retratada na Vegetariana é um ser humano em absoluta queda e, no entanto, é difícil compreendê-la e amá-la. Já com o Livro Branco é de poesia que se trata, ainda que escrita em prosa. Mas e também hermético, gelado, um pouco amargo, escapa-se entre os dedos como água que corre. A princípio achei que era uma diferença cultural, que ela transporta na sua voz o Oriente e que o meu coração sabe ouvir melhor as vozes do Ocidente ou de África. Mas vendo bem, não é isso, ou pelo menos não é apenas isso, é mesmo a sua singularidade. 

Talvez a sua estranheza se chame originalidade e ela mereça mesmo este prémio, considero que sim.

~CC~


quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Um ano de saudade


 Minha senhora das plantas, das catatuas e das orquídeas, minha mãe.
Um ano de saudade.


Desculpa, hoje nem consigo ir aí para a limpeza e arranjos que te são devidos, minha senhora que muito prezavas a beleza.

~CC~