sábado, 3 de junho de 2023

Tantos anos depois...no Campo Pequeno

 

Sonhei contigo esta noite, sonhei que te encontrava lá. Não sei há quantos anos não te vejo, por certo mais de vinte. Provavelmente foi contigo que ouvi pela primeira vez uma música do Chico Buarque. Eras de uma família Lisboeta, de média burguesia, engajada na esquerda e muito culta. Eu era apenas uma miúda dos subúrbios, pobre e sem grandes horizontes culturais, na música o mais longe que tinha ido era ao horizonte dos Beatles e dos Génesis. Era milagre que me tivesses prestado atenção, atendendo ao meio em que vivias. Eu, tão tímida, reservada, média aluna, sem saber muito bem o que queria da vida, sem nenhum conhecimento dos meios artísticos ou culturais alfacinhas. Estava muito perdida quando me encontraste.

Um dia perguntei-te porquê eu. 

Usavas xaile, disseste. No dia em que te vi pela primeira vez tinhas um xaile, nenhuma miúda de quinze anos usava um xaile como tu usavas (nos anos oitenta).

Já não o tenho, nem sei bem como o arranjei, provavelmente pedi à minha mãe que o fizesse ou então encontrei-o lá por casa, deixado por alguém, já que a minha casa era também uma espécie de pensão.

Tenho contudo um ali muito bonito que raramente uso, não tenho coragem de usar algo tão excêntrico num tempo em que a excentricidade já quase não existe, é tudo muito mais banal. Lavei-o e estendi-o enquanto pensava em ti. 

Talvez o leve.

~CC~





quinta-feira, 1 de junho de 2023

Rosa, minha irmã Rosa

 

A miúda deve ter uns três ou quatro anos e só a vi três vezes naquele contexto de ATL de fim de tarde. Mas nunca consegui tirar os olhos daquela cara redonda, de olhos brilhantes e riso pronto. Nem da forma como se misturava com a terra, apanhava flores, manchava com gosto as mãos de tinta e se abraçava aos outros miúdos. Tudo nela é ampla liberdade. Desconheço os pais e o contexto familiar, assim como quase tudo sobre ela. Apenas sei que me apetecia ficar ali esquecida a vê-la brincar. Ainda há crianças que brincam.

Tão diferente da criança que eu fui, tirando o gosto por me sujar com terra e andar descalça.

Também há crianças sós, também há infâncias de solidão. Não posso dizer que tenha sido infeliz, havia sol, um quintal, mamoeiros altos aos quais retirava as canas para fazer bolas de sabão. Havia telhados e árvores para trepar, alguns livros e bonecas que nunca saiam do alto dos armários. Havia dois irmãos mais velhos que eram felizes, ou que o pareciam ser. Havia a rua, as brincadeiras na rua, quase sempre lideradas por eles, os mais velhos. Não havia quase nenhum dinheiro e às vezes apercebia-me disso. Um pai intermitente, uma mãe sempre presente mas totalmente ausente. Não sabia que havia solidão porque não tinha nome para o meu sentimento de estar num mundo só meu, atrás de uma cortina de vidro. Não sabia ainda que tudo iria piorar de um momento para o outro, acrescentado mais solidão à solidão já existente.

Para todas as crianças devia ser possível aquele sorriso da Rosa. Um sorriso que aprendi demasiado tarde a ter. Eu e muitas outras crianças.

~CC~


quarta-feira, 31 de maio de 2023

Coisas boas acontecem

 

Comi cerejas pela primeira vez no ano!

A primeira vez, se quisermos, tem o mesmo encanto, não obstante ser a milésima e uma vez. Os beijos também são assim, mas só se dentro de nós brilhar a arte de fazer perdurar o encanto.

É um arte muito difícil, tão ou mais que tecer tapetes de arraiolos.

~CC~

segunda-feira, 29 de maio de 2023

Ano Sabático

 

Não coloquei na lista por saber impossível. Mas estava a precisar de um ano sabático, um ano inteiro para mim. Tantos e tantos anos a trabalhar, quando podemos reformar-nos muitos de nós já não sabem sorrir, estão corroídos por doenças, amarguras, incapacidades. 

Quando perguntaram à Isabela Figueiredo, na feira de literatura de Olhão, quais eram os seus projectos literários para o próximo ano, ela respondeu que não tinha, o próximo ano ela ira dedicar-se a não fazer nada, apenas viajar. Precisava alimentar-se.

Eu precisava de respirar, deambular também em torno de grandes e pequenos nadas. Ao contrário dela, talvez escrever um livro. 

~CC~

sábado, 27 de maio de 2023

Talvez ao engano


Querido Alberto Manguel, talvez te tenhas enganado no país que escolheste. É que a feira do livro em Lisboa encerrou as portas às 17h por motivo de festejos futebolísticos. Sim, isso mesmo, não não foi a ameaça de chuva forte, um tornado, ou qualquer outro motivo de força maior.

~CC~