Tem cheiro mas não é sempre o mesmo, às vezes ténue e outras muito intenso, depende da quantidade de algas circulantes e da dimensão da maré. É a maior coisa que possas imaginar, tem um princípio que nos toca os pés e o fim no horizonte que a nossa vista alcança. Dizem que é verde, às vezes escuro, dizem que é azul claro. Cerca-nos, abraça-nos, pode assustar-nos. É um abrigo para animais de sangue frio e uma paixão para os de sangue quente. Liberta-nos, pode aprisionar-nos. Sei que nunca o viste mas já viste o céu estrelado por cima do monte onde guardas os animais, é a mesma essa imensidão impossível de ter, que nos dá a dimensão da nossa pequenez e a ilusão de que na terra tudo é belo. Um dia vais crescer e virás. Contigo virão as cabras do monte dentro do teu olhar, irás soltá-las e elas fugirão dunas acima embriagadas pelo cheiro da perpétua das areias. Experimentarás, então, embriagado, enfrentar a tua primeira onda. Se tiveres medo não fujas, eu também tenho.*
Nos dias piores mergulhar nele é deixar lá uma parte da minha tristeza. Passo a língua pela minha própria pele e sinto o sal, não tomo logo banho, nem ele, deixamos ficar os corpos salgados a vaguear pela casa. Divido-me entre a beleza dos rios e a do mar, mas a segunda é mais parecida com o sangue que me corre por dentro.
~CC~
* A imagem do rapazinho, objecto de uma reportagem da TV, por passar as suas férias montes acima a tomar conta das cabras, misturou-se com a imagem dos meus primeiros alunos, miúdos que vivendo a 100km de Lisboa, no final dos anos oitenta, nunca tinham visto o mar. Queria, na altura, dizer-lhes como era, ao mesmo tempo que a vergonha de poder ter uma coisa que eles não tinham, tomava conta de mim.
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