Como mantemos a identidade em situações em que o nosso corpo é objecto de profunda transformação? Quando o espelho nos devolve uma imagem que nunca vimos e nos diz que somos nós?
O meu cabelo começou a crescer pois parei a quimioterapia há cerca de três meses. Tenho-o agora muito curto, desigual, ligeiramente espetado (naturalmente) e mercê da mistura entre brancos e pretos, está cinzento. Não sabia como estava pois pintava-o, acho que como a maioria das mulheres, tinha escolhido o castanho claro que era a cor da minha infância. Com o tempo acabava por ficar quase louro e as pessoas gostavam do tom, combinava bem com a minha pele. Para além do cabelo cinzento, terei menos 10 a 15 k, ou seja, sou oficialmente uma pessoa magra. Não era gorda antes, tinha talvez uns 5k a mais do que seria o meu peso ideal, o que me conferia um aspecto de gordinha ou talvez nem isso mas de certeza uma mulher com formas, com curvas. Ironia das ironias, às vezes queria emagrecer. Valia-me tu gostares de mim como eu era, não teres expectativas de me tornar mais elegante.
Por isso hoje olhar-me ao espelho significa muitas vezes confrontar-me com uma imagem andrógina, sinto-me quase um rapazinho, não obstante os cabelos cor de prata não me esconderem a idade. Sinto-me desconfortável na maioria das roupas, algumas antigas são impossíveis de vestir, outras visto, mas a sua largueza faz com que nada pareça o mesmo. Só uso sapatos rasos pois com a perca de peso estou muito fraca e não quero perder o equilíbrio. Eu usava saltos, não propriamente agulha, mas quase sempre algo que me conferia mais altura e gostava do efeito. Não tenho também muita vontade de comprar coisas novas, nem posso gastar muito dinheiro pois os gastos em saúde têm sido brutais. Não sei se com a imagem, outras coisas associadas se foram perdendo, designadamente este sentimento de ser mulher, mulher significa um ser sexuado, com inteira consciência do seu sexo, e isso é coisa que tenho pouco. Não quero dizer que tenha perdido a consciência de género, isso é outra coisa, é consciência social e essa mantenho igual.
Esforço-me, por ora, por duas coisas: me sentir um ser humano e não constituir um peso na vida dos outros. Isso significa passar ao lado dos espelhos na maior parte das vezes. Outras, mais raras, ponho uns brincos e acho que até não estou assim tão mal.
~CC~
Querida CC, eu acho lindos os seus textos. E são textos totalmente femininos.
ResponderEliminarUm abraço apertado. :-)
Leio o sentimento que descreve no texto como o de uma estranheza do próprio ser. Do ser a que a vida nos habitua, do eu que conhecemos desde sempre, da mulher que habitualmente vemos em nós. Penso que a transformação física não deixa de se refletir no mais íntimo do nosso ser. Mas talvez não se deva evitar os espelhos. Eles poderão ser importantes na redescoberta da mulher que se é e que nunca se deixa de ser.
ResponderEliminarSusana, que bom esse abraço apertado.
ResponderEliminarLuísa, a verdade é às vezes demasiado dura, por isso os evito, mas sei que não é a solução, tenho que me olhar para me adaptar.
~CC~
CC, entendo tão bem estas palavras. tenho dois casos muito próximos e acompanhei-os tão mas tão de perto.
ResponderEliminare do que me foi dado ver foi precisamente o tempo que às vezes é necessário para que se possa ver tudo de uma forma diferente.
deixo um abraço apertadinho