segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Rostos velhos no espelho



Ela é uma velha urbana que nunca sai sem colocar o seu batom rosa pálido, um toque discreto mas ainda assim poderoso. Custou-lhe ir perdendo a beleza mas ainda se olha no espelho a cada entrada no elevador e o que vê ainda lhe agrada. Sai para ir às compras, às lojas, ao café bebericar o seu abatanado, já teve mais amigas a ir com ela, foram adoecendo e deixando a rua, quase só ela persiste. Tornou-se exigente em tudo, zanga-se com a empregada, com as filhas, com as senhoras que a atendem na loja. É uma zanga que exorciza, que deitada cá para a fora a mantém ligada à corrente e poderosa. Tudo nela é urbano, destesta o campo e as coisas antigas com o mesmo vigor que adora as luzes brilhantes das ruas de Natal. Na doença eminente fraquejou por vezes mas a morte nunca foi opção, há sempre um motivo mais para mais um aniversário. Ainda lança uns olhares sedutores se se cruza com ela um velhote giro. Não pensemos que não passou ou não passa necessidades mas sempre as soube bem esconder. A cegueira ronda-a mas ela dá-lhe luta sem tréguas, mesmo considerando-a a maior das tragédias, às vezes não sei se é incapacidade funcional que a transtorna ou a impossibilidade de se ver no espelho do elevador.

Ele é homem e viveu toda a vida no mundo rural, as suas mãos, mesmo lavadas, ainda mostram os sinais da terra. A sua validade e utilidade como homem reside nos produtos que aprendeu a semear e a colher e se calhar nunca lhe ocorreu a palavra amor para conjugar com a profissão mas apenas a palavra obrigação. A honestidade da sua vida está na quantidade de coisas que conseguiu erguer a partir de um pedaço de terra que nem sua era, só muito mais tarde viria a chamar de seu um pedaço de chão. Um homem no mundo rural não tem reforma, só pára quando a doença o impede e se assim acontece põe-se logo a chamar pela morte. Um homem inútil no campo é como um animal que não dá mais crias e cuja carne de tão dura já não se pode comer, é como uma árvore que ganha uma maleita e que depois de várias curas ainda mostra o tronco escuro e não dá fruto. O abate dos seres vivos com sentença de morte é uma coisa tão natural que não há nada que impeça o homem de pensar em si do mesmo modo. A sua tristeza é pior que a sua doença e não é possível animá-lo com mentiras, ele sabe que não voltará a ser como antes. 

Estes mundos são tão antagónicos e não sei a qual deles pertencerei quando for velha. Por ora preocupo-me com estes velhos que sei que não são apenas os meus e que se reproduzem por aí nos pais de tanta gente. E, se antes as lágrimas me ocorriam às vezes quando pensava nela, tornam-se agora quase inevitáveis quando penso nele. 

~CC~





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