sábado, 24 de junho de 2023

Curtas de Verão (II)

 

Se a noite estivesse fresca, poderia dizer que seria por isso que fui anoitecer para a varanda. Ao meu lado ela desfiando histórias de noites quentes destas, com passeios de mulheres pela avenida principal e os rapazes atrás a segui-las. Dentro dela é ainda essa jovem bela e admirável, nunca deixou de o ser, mesmo com o corpo primeiro aumentado e mais pesado pelos quatro filhos e agora mirrado pela velhice. Dentro dela ela não é esta, ela é ainda esplendor e vida e por isso sofre com o espelho, com a impossibilidade do passeio pela baixa da cidade, com as barras da cama erguidas para não sair durante a noite. Apagou de certa forma todas as outras mulheres que ela também foi e deixou apenas esta, a mais bela das belas irmãs.

É ao mais fundo dos fundos de mim que vou buscar o que nos pode unir, de tão diferentes que somos. 

Ambas partilhamos afinal a nostalgia que invade as noites quentes e a difícil arte de gerir as impossibilidades.

~CC~

8 comentários:

  1. Não sei explicar por que nos fixamos numa imagem. Mas o facto de ser apenas uma representação, julgo entender, não podemos, em cada vez, recordar a catadupa do que fomos e somos. De certa forma é privilégio ter cristalizado como a mais das mais. Mas tem também certa tristeza, abocanha a maior parte da vida deixando à vista apenas o pedaço que ajuíza ser o seu melhor. Mas terá sido?!
    Boa noite, CC. São pessoas um pouco cansativas.


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    1. As duas coisas são verdade: deixam-se ficar no seu melhor e isso ajuda-as a prosseguir mas também as cristaliza dentro desse ideal em que a beleza é um pedestal.

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  2. O mundo mudou, impulsionado pelo grande escultor, mas rejeitamos algumas evidências, principalmente porque a mente se mantém lúcida. Nesse caso, porque é que o corpo muda?, questionamos nós, longe de admitir que a parte física tem um prazo de validade muito definido, para lá das excepções.
    Um belo texto, CCF!

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    1. Obrigada AC. Eu em parte compreendo, uma parte de mim também ficou ali algures nos quarenta, nunca passei daí. E repare, nem tanto uma miúda ou uma jovem, mas ali na plenitude da idade adulta.

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  3. Contrariando Newton, a descida da montanha é muito mais penosa CC.

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    1. Sim, em parte. Mas também há coisas muito boas nessa descida, depende de como a fazemos.

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  4. Gostei dos olhares e da vida redescoberta 'dentro dela'.
    Se essa 'viagem' fosse mais comum, talvez não se olhasse tanto para os sinais da idade que parecem únicos de tão visíveis.

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    1. Algum segredo terá para em Agosto comemorar os 95...

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