domingo, 11 de junho de 2023

O amor nasce dos pequenos nadas

 Um

Ele entrou na sala com um sorriso e um pacotinho de bolachas na mão, perguntando se havia café. Era uma reunião formal, mas ele cortou o silêncio da espera. Nunca o tinha visto, embora o nome já me tivesse sido muitas vezes citado. Não combinava com a pessoa que esperava. Nunca bebo café sem uma bolachinha, para compensar a ausência do açúcar. Eu tenho a certeza que o meu sorriso foi grande, finalmente alguém me percebia, ainda por cima um homem. Mas quantos homens trazem pacotes de bolachinhas numa mochila? Só eu e ele tomámos café e comemos uma bolachinha, risonhos e cúmplices. Era capaz de me apaixonar por um pequeno nada destes. 

Dois

Alguém já me tinha dito mas não o próprio. Sozinho tinha criado uma miúda, a mãe tinha partido sem nada dizer. A ternura com que ele relatou o facto, mexendo também em tudo o que não tinha feito bem naquele acompanhamento de uma vida, tocou-me. Mas quantos homens se aguentam sozinhos com uma criança, levando e trazendo da escola, preparando as refeições e trabalhando a tempo inteiro e são ainda capazes de autocrítica quanto ao êxito da missão? Alguns haverá por certo e ele é um deles. São estas coisas as coisas. Não é o brilho da inteligência ou do discurso, não é a beleza. Sem me emocionar nada me acontece, se me emocionar tudo é possível. 

Atendendo a que durante tanto tempo nenhum homem me despertou qualquer emoção, talvez estes pequenos nadas signifiquem o que acontece a uma terra queimada quando chega a chuva. Não é ainda tempo de sementeira, talvez nunca seja, mas já é tempo retirar as cinzas, revirar a terra, deixá-la receber um pouco de água. Mesmo que tudo não passe do regresso às paixões platónicas da minha adolescência, o estremecimento é tão bom como um mergulho na água salgada, cristalina e fria da Arrábida. 

~CC~

4 comentários:

  1. Do que escreveu, também me parece uma pessoa sui generis. Mas é tudo consigo, CC:)

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  2. É um keeper, garanto!
    Vá sem pensar muito mas muito devagarinho! Diz-lhe alguém que ainda anda a soprar cinzas da terra.
    Beijinho,
    Ana

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    1. Soprar cinzas Ana...é isso mesmo, bela expressão. Beijinho

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