A senhora tem a Aplicação?
(segue-se normalmente o rol de vantagens e alguma pressão para instalar).
~CC~
A senhora tem a Aplicação?
(segue-se normalmente o rol de vantagens e alguma pressão para instalar).
~CC~
Creio que nunca tinha visto uma câmara captar tão bem a felicidade e o amor conjugal, aquele que se situa entre o pequeno almoço e o deitar, se enrola nos risos das crianças, desdobra-se pela praia, vive também com os amigos e se demora na tarde lenta de um Domingo, num jogo a dois. Uma família em tudo o que ela representa dos laços que são necessários para iluminar a vida com um sol doce.
Muito depois do filme ter acabado viviam dentro de mim as imagens daquelas crianças, tão próximas das crianças que nós também fomos em Luanda, inocentes em tudo, imunes a tudo.
O que interrompe tal felicidade é brutal, intenso e doloroso. Um pai intensamente amado retirado à força de um dia para o outro. Eis o caroço da Ditadura Militar, a capacidade de levar pessoas das suas casas sem ter que indicar qualquer culpa ou crime, interrogando-as, torturando-as, matando-as. Pior, não sendo capaz de assumir essa morte, deixando um corpo por enterrar, a família com um luto por fazer. Uma ausência que mata e corrói, que deixa lágrimas no lugar daqueles risos tão belos. A luta daquela mulher é soberba porque é também a da sua transformação, embora venha aliada a tanta dor.
Um dos filmes que ficará para sempre em mim.
E eu que vi uma vida interrompida, perdendo aquela casa da infância, tantas coisas parecidas naquela largueza, no chão, na inocência, até as nossas lágrimas de crianças e sobretudo dos meus irmãos adolescentes, também nós deixando para trás um pai (que eu muito amava àquela data), eu soube que ao menos a minha dor significou a liberdade de um povo e isso foi um bálsamo que mais tarde actuou como um penso sobre a ferida. Ali não, nada houve de sentido ou significado, a ferida está aberta pois os responsáveis nem sequer foram julgados.
Este filme, neste português doce de além mar, é sublime.
~CC~
A tua voz do presente, como ela é diferente. Ainda lhe associo apenas um rosto do passado. Ficam assim incongruentes, numa mistura de tempos. Ganhaste um leve sotaque brasileiro e com ele muita leveza, na minha memória tinhas voz de rádio e um sotaque puro de alfacinha que gosta de bitoques e de pasteis de nata. Há quem vá atrás das amizades que ficaram para trás num mergulho sem hesitação, há quem rejeite preferindo deixar tudo onde ficou, no lugar em que aconteceu. No nosso caso, dos três, seria num certo café do centro de Lisboa, antiga leitaria, em que persistíamos em nos misturar com os velhotes, de tanto o fazermos vários mais novos começaram a entrar e a poisar. Não sei se não afastámos os velhotes, não tinha essa sensibilidade que só chegou muito depois. Eu nada fiz, nem procurei, apenas aconteceu o que parece impossível, ter-me cruzado acidentalmente com essa menina girafa presencialmente na grande capital a que raramente vou e que há muitos anos não via. Continua a ser alta, mas não a sinto tão alta. Tenho a certeza do momento da ruptura daquela amizade e que fui eu que a fiz, em parte por mágoa, em parte porque precisava de ir ver outros lugares.
Certo é que já tinha acontecido antes, num momento que não consigo precisar e que nada fiz. Não estava disponível, enquanto agora segui o vento e o vento trouxe dois, por ora. Não sei se vão ficar ou se é apenas um cruzamento, aquele lugar em que vemos alguém e sabemos que seguirá para a direita e nós para a esquerda. O que me surpreende em mim é lidar bem com isso, com a insegurança e com incerteza. Eu costumo querer e saber a direcção dos ventos.
~CC~
Velhos são os trapos, diria este miúdo cheio de lantejolas e aquela miúda de cabelo curto e sem medo das rugas.
Há que cantar para assustar o bicho papão, os que moram cá dentro e os que moram fora. Dancemos no mundo.
~CC~
A Helena afirma que o que mais a chocou foi a redução do mundo ao género binário H/M. Eu simplesmente não consigo escolher, creio que estive em estado de choque do princípio ao fim. Ainda assim, o estado da multidão que em sinal de apoio batia palmas e gritava foi o mais assustador, é no coletivo, massa humana de mente toldada pela emoção e cega por um ideário que reside a força capaz dos maiores e mais terríficos massacres. Ele existe porque eles existem.
~CC~
Afinal até valeu a pena um fim de semana quase roubado ao descanso que já mal existe.
Estava eu a falar da água como um bem necessário à vida que deveria ser gratuito (afinal a dita palestra era sobre os Direitos Humanos) e uma miúda (13, 14 anos?) na plateia (composta por gente dos 11 aos 70) levanta o braço. Dei-lhe a palavra. E ela explicou que do seu ponto de vista não devia ser gratuita pois era um bem valioso e era preciso responsabilidade no seu gasto, se fosse gratuita as pessoas provavelmente iam gastar em excesso e isso prejudicaria o planeta. Gostei do ponto de vista dela, não abdicando ainda assim totalmente do meu. Mas é isto que é preciso, diálogo. Depois dela, outros foram participando, ora para responder às perguntas que deixava no ar, ora para manifestar como eu pedia uma opinião que podiam indicar apenas levantando o braço direito, o esquerdo, ou os dois.
E ainda recebi flores, ora eu adoro flores.
~CC~
Corro atrás das horas e elas andam sempre para a frente a fugir-me, a escapar-me. Assusta-me não conseguir chegar onde prometi chegar mas faz-me profundamente infeliz tê-lo prometido, os meus compromissos já não deviam ser estes que estão sempre a chegar, a assolar-me, a tirar-me o sono. Tudo tem um ciclo e posso não ter chegado ao topo dos topos, seja lá o que isso for, mas agora é tudo o que eu menos quero. Houve um tempo que achei que de um lugar de poder conseguiria influenciar o mundo ou pelo menos uma organização e isso poderia valer a pena, estive quase a fazê-lo, mas houve sempre em mim alguma descrença.
Nunca pensei querer tanto que se esqueçam de mim. Não quero falar para plateias, desse lugar não vejo os olhos de ninguém, não consigo abraçar ninguém. E estou condenada, obrigada a fazê-lo, isto já é uma violência e parece estranho não poder dizer não, mas há circunstâncias em que não se pode fazê-lo. Quero estar com pessoas, mas de outra(s) forma(s).
Deixem-me um canto onde me possa abrigar e submergir na poética das coisas.
~CC~
Cinco subidas, três a parar no teu andar, junto à tua porta. É tão bela esta vista da ria, tão imensa quanto a saudade que tenho de ti e do teu amor por mim, o único que conheci que cresceu em vez de diminuir, bem mais certo é ser a segunda coisa a acontecer, seja em que tipo de relação for.
E, contudo, há um qualquer alinhamento de estrelas no horizonte, qualquer coisa que ainda não sei decifrar, o passado está a devolver-me gente que não imaginava voltar a ver. É um puzzle em que certas peças se encaixam como os bocadinhos bons que sobraram das muitas vidas que vivi, talvez finalmente as consiga conjugar numa harmonia de construir futuro.
É sábado à tarde mãe, estou aqui no prédio em que vivias, se quiseres podemos ir lanchar à baixa, ao sítio do costume.
~CC~
Saí do trabalho às 17h45 e o céu não tinha ainda anoitecido, pude ver a réstia de luz a passar entre as três amendoeiras do pátio e encher o peito dos fios rosa que se infiltravam num azul já a empalidecer. Às 18h, na entrada de casa, ainda havia crepúsculo.
Pensei luminosamente no fim do Inverno e do Semestre. Esses quinze minutos de percurso focados entre a beleza do céu e o pensamento em acontecimentos que trazem alento foram suficientes para apagar o cansaço, as tonturas, algum desânimo que se insinua quando as festas já se foram e os enfeites persistem mas entristeceram. O Inverno vai acabar, vou voltar a gostar de cirandar por aí.
Quando a chave entrou na fechadura surgiu a frase: mas ainda falta e este ainda é muito duro. Depois sentei-me a escrever isto no silêncio da casa.
~CC~
Vi dois filmes num só.
O filme em que as mulheres são em si próprias a luz que procura rasgar a tristeza em que todos os sítios estão mergulhados, não obstante as suas magnificas cores. A sua batalha que se faz sem choros, sem mágoas, aqui e ali deixando a raiva emergir, aqui e ali o inconformismo de uma condição a que são conformadas, ainda hoje os casamentos arranjados, a impossibilidade da escolha, a religião como imposição maior. E os seus sorrisos têm olhos tristes, sobretudo da mulher do meio, nesse seu nobre ofício que é ofuscado pelo abandono emocional a que se sente sujeita. Tão maravilhosa essa mulher que a todos dá um colo silencioso, sem grandes gestos de amor. Trabalhadoras incansáveis, movimentando-como formiguinhas em grandes percursos, parte deles já dentro da noite. E a mais nova, toda ela coragem, toda ela uma estrela riscando o céu com o seu desejo, os seus olhos pretos tão belos. E a mais velha, um rochedo, uma resistência, uma pedra atirada contra todos os muros que asfixiam. Surpreendi-me com este filme pois não tenho um particular fascínio pela Índia, ao contrário de muitos, nunca senti esse apelo de viagem.
E vi também outro filme, o das mãos nos caracóis do rapaz. Aquele rapaz era muito semelhante ao meu primeiro amor, digo amor, não namorado. As mãos dela nos caracóis dele, um arrepio tão intenso. A boca dele, tão parecida à boca do meu primeiro amor. O amor deles, tão parecido ao nosso amor, sem sítio nem lugar onde alojar os corpos que se queriam luz. Uma memória tão adormecida, assim a acordar numa matiné. Em que lugar morre de vez o nosso passado? Ou será que nunca morre?
~CC~
A rotunda incorpora um lago em jeito de monumento, talvez o seu todo seja um barco, na verdade não lhe consigo descortinar o sentido, parece-me sofrível como escultura. Contudo, as gaivotas gostam, há pelo menos seis pousadas na beirinha do lago-piscina e interrogo-me sobre a sua natureza. Quando foi que deixaram de preferir o mar? Quando foi que começaram a preferir o lixo urbano aos peixinhos retirados das ondas? E, sobretudo, quando é que saíram da poética do Fernão Capelo Gaivota em que planar no vento era o verbo que nos encantava para se arrastarem quietas nos becos e nas praças?
Diz-me uma amiga que se não usar a I-A nos próximos tempos, ficarei para sempre em desacerto com o mundo e que não o posso fazer, que ainda é cedo.
E eu desacerto-me com o gosto de quem sabe que comecei a descer o plano inclinado. Ainda sonho com voos picados diretos a retirar das ondas um peixinho mais descuidado e com aquele momento do dia em que me deixo ir planando.
Quando foi que envelheci?!
~CC~