Ainda estou aqui
Creio que nunca tinha visto uma câmara captar tão bem a felicidade e o amor conjugal, aquele que se situa entre o pequeno almoço e o deitar, se enrola nos risos das crianças, desdobra-se pela praia, vive também com os amigos e se demora na tarde lenta de um Domingo, num jogo a dois. Uma família em tudo o que ela representa dos laços que são necessários para iluminar a vida com um sol doce.
Muito depois do filme ter acabado viviam dentro de mim as imagens daquelas crianças, tão próximas das crianças que nós também fomos em Luanda, inocentes em tudo, imunes a tudo.
O que interrompe tal felicidade é brutal, intenso e doloroso. Um pai intensamente amado retirado à força de um dia para o outro. Eis o caroço da Ditadura Militar, a capacidade de levar pessoas das suas casas sem ter que indicar qualquer culpa ou crime, interrogando-as, torturando-as, matando-as. Pior, não sendo capaz de assumir essa morte, deixando um corpo por enterrar, a família com um luto por fazer. Uma ausência que mata e corrói, que deixa lágrimas no lugar daqueles risos tão belos. A luta daquela mulher é soberba porque é também a da sua transformação, embora venha aliada a tanta dor.
Um dos filmes que ficará para sempre em mim.
E eu que vi uma vida interrompida, perdendo aquela casa da infância, tantas coisas parecidas naquela largueza, no chão, na inocência, até as nossas lágrimas de crianças e sobretudo dos meus irmãos adolescentes, também nós deixando para trás um pai (que eu muito amava àquela data), eu soube que ao menos a minha dor significou a liberdade de um povo e isso foi um bálsamo que mais tarde actuou como um penso sobre a ferida. Ali não, nada houve de sentido ou significado, a ferida está aberta pois os responsáveis nem sequer foram julgados.
Este filme, neste português doce de além mar, é sublime.
~CC~