domingo, 29 de dezembro de 2024

A atravessar o longo silêncio do solstício, a dançar sem cair

 

O homem equilibrava-se num passo de quase dança, depois lançava um braço num desenho no ar e atrás dele ia a mão, ele ficava a olhar para ela, apanhava o balanço para rodopiar. Estava sozinho, encerrado no seu próprio labirinto, os outros pouco lhe interessavam. Fiquei a vê-lo, fascinada. Talvez tivesse sido bailarino no tempo em que a sua vida era como a nossa, com uma casa, um emprego, uma família. Agora é um homem da rua, nome que prefiro a sem abrigo.

E fiquei a pensar nessas três coisas que definem a vida do comum dos mortais, tão triviais, banais e que nos parecem a maior parte das vezes tão pouco dignas de nota. E, contudo, são pilares, nelas nos equilibramos por muito que por vezes nos gerem desequilíbrio. 

São reflexões de transição, esta não é para mim uma época de festa. É sempre de introspecção. O champanhe, o fogo de artificio, a festa, tudo isso é um ritual que não acompanho com facilidade, tenho tendência a ficar de fora a observar, talvez porque o que eu queira mesmo é observar-me, analisar-me, procurar o caminho do que quero deixar e levar comigo. Se eu fosse um bicho estaria agora a hibernar ou a mudar de pele. Por certo a atravessar o longo silêncio do solstício de Inverno rumo a um fogo onde se irá consumir o que quero deixar para trás e abraçar o que quero levar para diante.

Afinal eu e o homem da rua não somos assim tão diferentes, só queremos equilibrar-nos, dançar sem cair.

~CC~

Nota: Um abraço a todos os que rodopiam nesta rua e um bom ano.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

Natal, com os meus vivos e os meus mortos.

 


Estava apenas para lhe chamar: os meus mortos neste Natal. Mas talvez fosse demasiado tétrico. Quando o meu coração desliza para abraçar os meus mortos e permanecer na tristeza sem fim da sua ausência, sinto-me tão injusta com os meus vivos, que abandono rapidamente os meus mortos.

Porém, se o meu coração se alegra com a presença dos meus vivos e se ilumina na ventura desse contacto que irá durar alguns dias, logo os mortos me chamam para reclamar da minha presença, da minha tristeza.

Dantes o meu Natal não tinha mortos, o meu pai partiu há mais de dez anos mas foram tantos os Natais que passei sem ele que não reclamava pela minha tristeza. Agora sim, estas duas mulheres que partiram, uma já tão idosa e outra ainda tão jovem, elas sim, amiúde aparecem a conversar comigo. 

Não tenho as laranjas mãe, não tenho a certeza sobre o teu pudim, as filhoses já sabes, deixei de as fazer por falta de espaço e de apoio. 

Tenho os teus brincos amiga, irei colocá-los. Não haverá telefonema no dia anterior, todos estes anos houve. Mas falarei contigo um bocadinho junto ao mar, afinal há muito que o telefone já não tem fios.

Tenho de cuidar dos vivos. 

~CC~

NOTA IMPORTANTE: Aos amigos aí desse lado, rostos invisíveis que tantas vezes me enviam abraços que muito agradeço e valorizo, desejo que possam ter alguém a quem abraçar realmente nestas festas, não há nada como isso. 




quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

Três maravilhosos

 

Não tenho visto tanto cinema quanto preciso, mas tenho compensado com umas idas ao teatro. Chego invariavelmente esgotada ao início das noites e muitas vezes tenho ainda de cozinhar, logo não consigo esgueirar-me para a minha grande catedral, o cinema Charlot. Salvo-me embebendo-me nos únicos  canais que valem a pena para além dos de culinária e do canal 2.


Era uma vez na América - Sérgio Leone, 1984 Cine/TV

Antes deste filme eu apenas vislumbrava que na amizade também podia haver ciúme e traição, que mesmo ela, no esplendor da sua beleza, não era um amor incólume e à prova de bala. Tudo o mais é importante no filme, mas nesta relação intensa é que reside a maravilha que é.

Dias Perfeitos - Wim Wenders Cine/TV

Após os primeiros quinze minutos eu pensei que tanta calma, tanto silêncio, tanta coisa a acontecer sem acontecer realmente nada, me iam conduzir rapidamente ao sono profundo no sofá. Não reconheci o cineasta que me fizera vibrar, que me cortava a respiração. Mas depois fiquei absolutamente presa ao homem e à sua dança de limpeza, arrumação, perfeição. Ao mesmo tempo que pensava que esta personagem não podia mesmo existir, pois determinadas coisas não batiam certo como ser culto e limpar casas de banho públicas, essa sua estranheza prendia-me, queria perceber melhor. Afinal é possível escolher só ser em vez de ser e ter ou só ter. Tocante.

O Quarto ao lado, de Pedro Almodôvar - cinemas Charlot

Também não reconheci um dos meus cineastas preferidos, também ele envelheceu, só isso lhe permite fazer este filme quieto, gentil, triste. Disseram-me para não ir que me seria pesado, a personagem principal tem cancro e é incurável. São circunstâncias de convívio próximo. Curiosamente achei o filme leve. Escolher morrer e ter possibilidades de o fazer de forma tão favorável é um privilégio. Achei que também eu gostaria de escolher morrer assim, por mais que custe abandonar um mundo tão imperfeito quanto amado.

Vão ao cinema, preferencialmente num cinema a sério, não os abandonemos. 

~CC~


sábado, 14 de dezembro de 2024

Borboleta

 

Era uma reunião online, onde vejam, se consegue ser tão ou mais formal do que nas outras. Um a um os académicos apresentaram-se e desfiaram o currículo, à excepção das organizadoras que não conhecia mas que me pareciam ter outro ADN. Encorajada por elas logo ao início terem dito que vinham, uma de Itália e outra da Colômbia, arrisquei. Eu sou como uma borboleta disse, e a minha especialidade é poisar de flor em flor, transportando um pouco de pólen de cá para lá, nunca me alimento de uma só flor. 

A italiana soltou uma gargalhada, a colombiana também sorriu e eu senti que estava entre iguais. Nunca mais as vi, só hoje numa conferência. Vieram de lá direitas a mim: olha a borboleta! Eu que já não me lembrava da cena fiquei ali um minuto, parada sem saber o que dizer, até que me lembrei e lhes dei um abraço. E elas disseram: nunca mais esquecemos, foi tão divertido!

~CC~

quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

Ainda não é a altura?!

 

Consegui verbalizar junto dele com clareza: eu só quero paz. Só quando o disse, consegui entender o alcance da grandiosidade do que me alimenta.  O areal e as ondas mansas, as árvores dançando verdes e tranquilas, aquele momento em que o dia mergulha na noite e as estrelas despontam, os abraços cheios e verdadeiros. 

Sim, prefiro-a à paixão e ao desejo. Já tive o que baste, já não me apetece. Um dia tive um amor com o qual brincava aos beijos pequeninos, eram beijos leves, doces, roçávamos os lábios muito devagar e esfregávamos os narizes, nunca procurávamos a língua um do outro, fomos felizes enquanto aquilo teve aquela inocência, aquela leveza, profundamente infelizes depois. 

Não acrescentei porque não vinha a propósito, mas espero que a paz seja o ingrediente necessário para que o sangue continue a correr vermelho dentro das minhas veias, animado pela esperança de saúde, quero mais uns bons anos de vida, dez seria bom, vinte uma maravilha. 

Ainda não chegou a época dos desejos de ano novo e já estou aqui a prontificar-me para 2025.

~CC

domingo, 8 de dezembro de 2024

Segredos para desvanecer cansaços (II)

 

A entrevistadora tinha um microfone vermelho bem grande que só tinha visto na televisão e na sala havia barulho que ela conseguia bloquear. Não convivo muito bem com a publicidade das coisas, gosto só das coisas. Mas não pude recusar. E a jornalista foi de uma simpatia impar, disse que desde que começámos o nosso trabalho que nos seguia e já era para ter vindo à actividade anterior. Mais um abalo nesta minha crença de passar sempre incógnita. 

Mas o melhor que guardo desta entrevista foi mesmo o testemunho daquela estudante que mal conhecia. Disse ela que tinha decidido ir a todos os eventos que pudesse relacionados com as comemorações dos cinquenta anos de abril pois essa data, o 25 de Abril, era para ela um feriado tão importante quanto o Natal. Tinha vindo para o grupo atraída pela ideia que nos levou a criá-lo: juntar livros e liberdade. Momentos antes ela tinha entrado com a farda de escuteira e tinha ido à casa de banho vestir outra roupa para moderar o debate, estava longe de cumprir o estereótipo da jovem activista e entusiasmada com Abril. 

Pensei para comigo que enquanto me espantar com a beleza dos jovens consigo desvanecer cansaços.

~CC~




quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

Segredos para desvanecer cansaços

 

Este estudante veio para me enternecer os dias. Adivinho-lhe muitas necessidades naquele corpo magro, amiúde acho que tem fome, faz um esforço hercúleo para superar as dificuldades que tem mas age como se o mundo fosse todo ele um tapete azul onde se as estrelas não brilham, um dia irão brilhar. Hoje contou-me dos doces que ia fazer com a avó no Natal, coisas que ele sabe irá fazer perdurar na sua memória. Não percebi se vivia só com ela mas pareceu-me que teria pelo menos um lugar fundamental na sua vida. Não vos posso contar a história toda mas a conversa terminou com a promessa de fazermos uma oficina de pastéis de bacalhau. 

Por cada miúdo que nos anima renascemos professores, não há melhor para desvanecer cansaço e tanto que anda alojado em mim.

~CC~


segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

1º de dezembro

 

Certas coisas fazemos apenas por hábito e não são uma necessidade, afinal não são água que nos alimenta a sede. Demoramos a perceber, a distinguir, a conseguir deixá-las. Um dia conseguimos e nessa distância, nessa ausência, conseguimos perceber melhor o que a nossa cabeça realmente nos pede. E tanto que eu gosto de terra e raízes e a minha cabeça pede sempre ar, aragem, viagem. Só quando morrer quero ser árvore.

~CC~