domingo, 14 de outubro de 2018

Este estuário




Um estuário não é mar nem é rio, é um lugar híbrido que mistura doce e salgado, inaugurando assim um conjunto de outras hipóteses para a vida selvagem, essa que tantas vezes vive escondida dos nossos olhares. Este meu estuário é um enlace tranquilo do rio Sado com o oceano Atlântico, é tão belo que golfinhos o escolheram habitar. 

Querem agora que se torne maior e mais fundo para deixar entrar navios de grande porte, mais cargueiros, contentores pesados, sirenes a sério. Nada que não se consiga fazer atendendo ao retorno económico para o Porto. Há uns estudos ambientais a realizar, nada que não se consiga fazer aprovar. Há umas vozes de associações ambientalistas que irão protestar, meia dúzia que será fácil de calar. Meia dúzia a falar do perigo de perdermos a beleza destas praias de água cristalina e fria e de areia transparente, das alterações no habitat dos golfinhos, das lamas que serão depositadas em área de pesca artesanal, do volume pesado destes navios a navegar no estuário. Uma luta que parece pequena num mundo doente e a precisar de lutas maiores. Mas ainda assim uma luta digna, uma luta a que me junto. Este estuário é também o meu mundo, a minha casa.



~CC~

sexta-feira, 12 de outubro de 2018

Um escritor na minha biblioteca



Richard Zimler estava ali, a meia dúzia de metros de mim. Mais, estava sentado na biblioteca da minha escola a conversar sobre livros, sobre o penúltimo dos seus livros. Este homem escreveu um dos livros da minha vida, "À procura de Sana".

Pergunto-me porque gostamos de os conhecer, de estar perto deles, que nos assinem os livros. Logo nessa arte, a mais privada que há. Pergunto-me sobre o que nos acrescenta aquela hora que estarão ali, disponíveis para as nossas questões.

Zimler é ele próprio, vê-se que tem o seu grau de timidez incorporado na aparição pública. Sorri, agradece-nos a presença e gosta de falar dos seus livros. Da manufactura da obra, de como ela nasce e se constrói. É no entanto comedido, não faz de cada resposta uma palestra e não insulta quem pergunta, mesmo que a pergunta não seja perfeita. E não se martiriza, não fala da dureza do ofício, mas também não o engrandece como a melhor das artes. É um homem a falar do seu trabalho, como eu ou tu poderíamos falar do nosso. E é bom, é uma hora bem passada.

Porque o queremos conhecer? Da mesma forma que queremos conhecer alguém que nos interessa, que nos marca, que nos desperta, que nos abre horizontes. E no final fica-me a pergunta. E ele, será que também tem curiosidade em conhecer os seus leitores? O que levará de cada um de nós?

Certo é que o meu dia ficou melhor por ter um escritor na minha biblioteca.

~CC~







quarta-feira, 10 de outubro de 2018

Freud e eu



Freud sabia muita coisa, ou pressentiu-a, já que hoje, tudo sujeito a prova científica, teria que suar as estopinhas para lhe aprovarem qualquer artigo sem umas estatísticas a preceito.

Sonho com um acidente em que o camião amolga toda a parte direita do meu carro porque uma mulher polícia me mandou desviar do curso que eu queria seguir, eu hesitei e ele não viu. Conseguir explicar o que se passou e que não tive culpa é quase impossível pois a mulher polícia desapareceu do seu posto. Acordo e continuo a discutir, a debater, a combater. E digo a mim própria que já estou acordada que não passou de um sonho e que não vale a pena continuar. Mas continuo. O camionista faz dois de mim e diz que não tem culpa. Ninguém pára, ninguém quer saber.  Ele preenche os papéis verdes e faz desenhos a explicar o acidente, quer que eu assuma a culpa. E eu digo que não mas não tenho papéis, nem canetas, nem nenhuma forma de desenhar. Já tirámos as viaturas do meio da via pública e por isso não posso chamar a polícia, constato que ingenuamente pensei que ele admitiria a culpa.

Nem preciso do Freud para saber o quanto isto traduz tantas coisas da minha vida. Só isto de ser uma mulher a polícia e dela se ter esfumado me preocupa, não tenho chaves de interpretação.

~CC~




segunda-feira, 8 de outubro de 2018

Meu irmão



Eu enfiava os pés na areia enquanto sentia o vento a crescer na praia vermelha e o meu olhar se prendia no teleférico que cruzava os céus mas sobretudo nos morros que ladeavam aquela pequena enseada, onde as casas e casinhas de muitas cores e feitios se empoleiravam num engenho de natureza e humanidade. As favelas eram os lugares onde a vista do mar e do rio se desfrutava mais, estavam mais perto de Deus e sabemos como o Deus brasileiro é diferente do europeu, é um Deus que dança e ri.

Nesse tempo parecia que as favelas se iam transformar num imenso lugar turístico, a classe média emergente subia para lá comer nos botecos, perdendo pouco a pouco o medo e havia alemães e ingleses pasmados com os bailes de funky em nos terraços cimentados por cima das barracas cambaleantes. Falava-se em pacificação e não era apenas a miragem que hoje parece, havia esperança.

Esse Brasil que eu vi atrair os europeus e tantos portugueses jovens não era o país para onde fugiram os retornados que não aceitaram a descolonização (a esses, adivinho-lhes o voto). Esse país que eu vi em plena ascensão, no tempo em que o real subia na cotação dos mercados, organizava competições desportivas e mandava estudantes para a velha Europa para realizar mestrados e doutoramentos numa ânsia de qualificação da população, esse pais existiu, brilhou como uma estrela que nos iluminava e nos transmitia uma crença desmesurada nos nossos irmãos. Recordo como admirava o facto de haver um dia semanal de acesso gratuito ou de muito baixo preço à cultura, fosse uma ópera ou um museu. 

Por isso não entristeço apenas, há uma parte de mim que está consternada, chocada, perdida. Sim, eu sei, já havia a Polónia, a Áustria, a Hungria...e os EUA...mas este país fala a minha, a tua, a nossa língua, é nosso irmão. Sinto-me como se sentem os irmãos quando um deles nos vira as costas e segue sem olhar sequer para trás, é um amor a morrer.

Três semanas, apenas três semanas para poder recuperar o meu coração partido. Ou para ele se quebrar.

~CC~







terça-feira, 2 de outubro de 2018

O que falta?!



Tem sido um estranho início de ano lectivo, pois os meus anos têm esses dois andamentos, o civil e o lectivo. Sinto que parte de mim anda algures, nem sei bem onde. Terá ficado em África? Terá ficado ainda deitado na areia junto ao mar? Sim, acho que não completei totalmente o ciclo de férias. Ou soube a pouco. Acontece-nos o quê quando sentimos que as férias nos sabem a pouco? 

Não descobri exactamente em que reside a minha estranheza. Vou acumulando factores. Está demasiado calor. A noite chega mais cedo. A escola está irreconhecível por causa das obras e não há lugares para estacionar, uma das coisas melhores que tinha era haver sempre lugar. Os alunos gastaram uma semana nas malditas praxes. Também eles não me parecem estar bem de volta, ainda flutuam algures. Há demasiado luz e por causa dela fecham as janelas todas e passamos os dias na escuridão. Sinto-nos um bocado deslaçados, mesmo os que eram próximos. O comboio está em andamento mas nós não o estamos a acompanhar. 

Acordo sem saber muito bem onde estou, que dia é e o que tenho para fazer, tenho que perguntar-me isso logo cedo. Só falta perguntar quem sou eu. Fazem falta as transições, a mudança de estação, a primeira chuva.

É estranho que possa ser eu a pedir uma primeira chuva, logo eu uma criatura que adora o sol. Mas reconheço-lhe o papel iniciático, a marca da água. 

~CC~