domingo, 1 de março de 2015

Rostos da crise



A história desta crise lenta, demorada, persistente, devia ser feita com rostos. Devíamos anotar tudo para a história.  Há os dramas grandes de quem perdeu quase tudo e os dramas mais pequenos mas igualmente dolorosos de quem viu degradar-se o seu nível de vida. Chegam-me essas histórias por várias vias. 

A de L, por exemplo, foi-me contada por ele próprio. Motorista de pesados, trabalhou anos a fazer várias viagens por dia entre Santarém e Lisboa, levando areia, pedra e demais ingredientes para mudar a face da capital, nomeadamente na zona da Expo-98. Ganhou dinheiro justo por tanto esforço, já que às vezes nem de noite descansava. Lembra-se de ter férias, de ir para o Algarve e para Espanha, de almoçar e jantar onde a classe média costumava parar, a pobreza parecia se ter enterrado para sempre. A partir de 2006 as obras começaram a escassear e a empresa a ameaçar fechar, depois de dois anos lentos de agonia em que já só recebiam o ordenado base e não as comissões e extras de antes, fechou realmente. 

Homem, na beira dos 50 anos, L perdeu o emprego. Do tempo no desemprego não guarda grande memória, durou mais ou menos um ano e chamaram-no. Não teve alternativa, aceitou o emprego que lhe deram como motorista de uma autarquia, pouco mais do que o ordenado mínimo. A mulher tinha sido incentivada a não trabalhar, na altura que o dinheiro chegava e sobrava e não era agora, com mais de 50 anos que ia arranjar trabalho. O filho, como jovem em quem tudo se apostou para estudar, não arranjou emprego na sua área e vai procurando agarrar  o que aparece, sem grande êxito. Com a sua idade , já não tem esperança de arranjar outro emprego em que ganhe mais. Mas o dinheiro não chega, nunca mais teve férias porque as gasta a trabalhar na apanha do tomate. 

Sim, não se passa bem fome, mas sofre-se tudo o resto, afirma que o pouco que resta "na lata" é para se houver uma doença porque se se lá for buscar, nunca mais se volta a colocar. É uma espécie de choro sem lágrimas aquele que dele oiço. Um homem grande, robusto, o perfil típico de um camionista, triste como um menino sem colo. 

~CC~



2 comentários:

  1. Conheço uma história muito parecida, que se passou quando eu tinha quinze anos. Talvez fosse nova demais para perceber toda a dimensão do problema, mas ficaram-me algumas impressões da angústia do principal protagonista. É lamentável que, volvidos 30 anos, haja tantas histórias como esta e outras muito piores.
    Abraço

    ResponderEliminar
  2. São tantas as histórias...
    Tem tantos rostos, esta crise... e tantos que se escondem na vergonha, uma vergonha que só quem a vive, entende.
    abço

    ResponderEliminar

Passagens