quarta-feira, 7 de março de 2018

Abismos humanos



Veio primeiro uma, depois a outra. Do interior ao exterior um abismo. 

Mãe e filha com um oceano pelo meio. Um oceano revolto e agreste.

A filha, a pedir colo aos vinte e um anos. A querer caminhar sozinha mas com pesadas grilhetas nos pés, uma família destruída como herança. Contive-me para não lhe oferecer o quarto vazio ali de dentro e o meu colo.

A mãe auto centrada, um equilíbrio forçado, uma ambição desmedida, chamando ainda "minha" a alguém que há muito já não era dela. A ambivalência é um dos grandes desnortes da maternidade, do que ela pode conter, do que ela pode fazer. Talvez esta mulher sofra também, algo que contudo, não está acessível, traz com ela um espelho onde o mais importante é olhar-se.

Ambas mulheres, apetecia-me apelar a essa cumplicidade. Mas nada entre elas se tinha erguido com esse alicerce.

O que delas mostram fora deste gabinete em que as recebo em nada condiz com o que mostram aqui dentro. Pergunto-me porque lhes abro a porta, porque as oiço, porque é que isto me acontece. Dizes-me muitas vezes para não lhes dar o telefone, não lhes abrir esta porta. Tens razão, não faz parte do meu ofício. Deste meu ofício. Mas há alguma coisa na minha pele que é visível, que é claro para eles, para elas. E não é curiosidade e não é pena. Talvez seja visível a minha apetência por tudo o que é humano, pela possibilidade de compreender de que matéria se compõe esta espécie, uma eterna investigação que nunca escreverei. Sim, porque a ideia de ajudar, se antes foi trave mestra da minha existência, há muito foi destruída pela minha auto consciência crítica. Acho que eles e elas sabem que não os posso efectivamente ajudar, não anuncio, nunca prometi, nada prometo.

Compreender como é que aquele que será, em princípio, o maior amor do mundo, se pode reduzir a uma amarga batalha, o mel em fel. A espécie humana é de uma complexidade que ainda me espanta.

~CC~

Nota: ocorre-me, já depois de ter escrito, a trilogia de Valério Romão intitulada "Paternidades falhadas" e penso na lucidez de tal título e no modo como aqui encaixa.










2 comentários:

  1. CC, os laços de sangue, ou 'estatuto equiparado' (pensando nas adopções) não devem servir de chapéu de chuva ou de descanso para não se cuidar da aplicação de valores como a confiança, a honestidade, etc., na expectativa de que os erros serão perdoados porque se trata de família. Até pode ser mais difícil perdoar precisamente pelo facto de ser família, já que se pode entender que deve haver mais cuidado.

    Também, o perdoar até pode ser o menos complicado, comparando com as barreiras afectivas que se podem erguer, o que é mais difícil de gerir.

    (Foi o que me ocorreu dizer, sem estar preocupada com eventual colagem ao texto, que não sabemos o que está na origem das divergências.)

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  2. Isabel, um mundo complexo o das famílias, aí se pode gerar tudo de bom, tudo de mau...e sim, provavelmente tudo mais difícil do que com as famílias que pela vida vamos adoptando (amigos, colegas, etc).
    ~CC~

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