quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Vizinhança

 

A vizinha desapareceu misteriosamente durante a pandemia. A varanda, antes tomada pelas amigas alemãs que bebiam madrugada dentro, falando em voz alta e soltando gargalhadas capazes de chegar ao outro lado da cidade, está agora tomada pelos pombos. Verão após Verão eu sabia que elas chegariam, que eu teria dificuldade em adormecer, que as vozes delas ficaram a ecoar na minha cabeça dentro dos sonhos. A vizinha parecia então outra pessoa, não baixava os olhos ao passar por nós, às vezes até sorria. Ora depois da morte do seu querido cão grande ela passou muito tempo sem sorrir.

A varanda está abandonada, suja e triste. Não sei o que fazer para saber dela sem ser intrusiva. Já pensei tocar à campainha, ligar para a administração do condomínio, perguntar ao vizinho que tal como eu e ela somos aqui os mais antigos. Nunca pedimos salsa uma à outra, nunca trocamos mais do que duas palavras, nunca nos ajudámos no que quer que fosse. Percebi, pelas suas ruidosas conversas na varanda, que muito me separava dela. Mas era também era uma mulher livre, senhora de si, disso eu gostava.

~CC~


8 comentários:

  1. Terá tido medo de vir fazer a época balnear a Portugal. Ou, pior, esteve de quarentena e agora tornou-se cuidadosa e não arreda do país de origem e está neste momento a rir alto com outras companheiras que são as de todos os dias lá no café do bairro onde vive. Ainda pior: morreu durante a pandemia; sofreu um AVC; ficou com alzheimer, parkinson ou assim, males que pouco escolhem, atacam as independentes e o extenso leque das que o não são. Vírus malvado.
    O abandono das coisas bem mostra a falta de vida.
    Boa noite, CC.

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    1. Ela morava aqui a tempo inteiro, as amigas é que vinham fazer a época balnear...gosto de pensar que foi simplesmente cuidar de alguém, mas não vir aqui nunca?!
      Bom fds Bea, aproveite sol e mar enquanto duram...

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    2. Obrigada pelos votos. A época de praia está a terminar, foi longa e de qualidade mas aproveitei pouco este bem que tarde conheci.

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  2. Antigamente, ficar nas escadas, nos patamares ou entrar nas casas dos vizinhos aos finais de tarde ou nos fins de semana, conversando, era mais que um hábito saudável. Além de se cultivar amizades, ajudava a conhecer as pessoas que dividiam o mesmo prédio. Sou do tempo em que as famílias dos vizinhos iam à praia juntas, e até chegavam a fazer almoçaradas. Outros ainda "arranjavam" emprego para os nossos filhos.
    Hoje em dia o individualismo impera, o apartamento é o local de conforto individual ou da família, que protege contra as agressões da cidade, dos vizinhos incomodativos, das crianças barulhentas, das pestes, stresses e outras poluições.
    Sinais dos tempos.
    Boa tarde.

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    1. Nao podia ter descrito melhor essa mudança social. O joaquim fê-lo muito bem. Eu vejo vantagens nos dois. É preciso que a casa seja um refúgio individual para paz e sossego. Mas também faz falta cultivar amizades de vizinhos. A maior diferença e a causa maior desta mudança estará talvez na extraordinária capacidade feminina. Sim, porque isso que conta foi possível porque a maioria das mães eram domésticas. Então o seu escape ao mundo das crianças e da lida da casa era a vizinha do lado. Isso cria laços. A mulher saiu do lar e agora não há tempo ou paciência para esses rituais. Mais por falta de tempo que outra coisa.

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  3. Olha o Joaquim! Também lhe notei a ausência mas imagino-o numas férias grandes e desligado destas máquinas, se assim foi, fez muito bem. Eu ainda gosto da "sua" vizinhança, mas tem que haver reciprocidade para a praticarmos e esta vizinha era a custo que nos cumprimentava. Outros são bem diferentes, mesmo em prédios de apartamentos...
    ~CC~

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  4. Se foi a pandemia que a afastou, já pelos meus lados a pandemia trouxe maior permanência do vizinho de Lisboa. Antes era raro vê-lo e à mulher. Esporadicamente a mãe passava alguns dias. Agora parece que tem um nunca acabar de férias. Desconfio que se vai mudar para cá. :)

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  5. REsultado do Covid, da quarentena, da distância social.
    Provavelmente está bem ou então transferiu a festa para outro quintal! :D

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