quinta-feira, 1 de junho de 2023

Rosa, minha irmã Rosa

 

A miúda deve ter uns três ou quatro anos e só a vi três vezes naquele contexto de ATL de fim de tarde. Mas nunca consegui tirar os olhos daquela cara redonda, de olhos brilhantes e riso pronto. Nem da forma como se misturava com a terra, apanhava flores, manchava com gosto as mãos de tinta e se abraçava aos outros miúdos. Tudo nela é ampla liberdade. Desconheço os pais e o contexto familiar, assim como quase tudo sobre ela. Apenas sei que me apetecia ficar ali esquecida a vê-la brincar. Ainda há crianças que brincam.

Tão diferente da criança que eu fui, tirando o gosto por me sujar com terra e andar descalça.

Também há crianças sós, também há infâncias de solidão. Não posso dizer que tenha sido infeliz, havia sol, um quintal, mamoeiros altos aos quais retirava as canas para fazer bolas de sabão. Havia telhados e árvores para trepar, alguns livros e bonecas que nunca saiam do alto dos armários. Havia dois irmãos mais velhos que eram felizes, ou que o pareciam ser. Havia a rua, as brincadeiras na rua, quase sempre lideradas por eles, os mais velhos. Não havia quase nenhum dinheiro e às vezes apercebia-me disso. Um pai intermitente, uma mãe sempre presente mas totalmente ausente. Não sabia que havia solidão porque não tinha nome para o meu sentimento de estar num mundo só meu, atrás de uma cortina de vidro. Não sabia ainda que tudo iria piorar de um momento para o outro, acrescentado mais solidão à solidão já existente.

Para todas as crianças devia ser possível aquele sorriso da Rosa. Um sorriso que aprendi demasiado tarde a ter. Eu e muitas outras crianças.

~CC~


4 comentários:

  1. Foi pena, CC. Mas aprendeu-lhe o sorriso e talvez tenha até mais valor, foi um exercício de vontade enquanto nela é qualquer coisa de natural, uma característica, talvez expressão do seu carácter afável e de uma infância feliz e confiada. Há muito factor que não controlamos na infância: o ambiente natural e humano, por exemplo; as nossas próprias inclinações, a natureza genética e que o meio vai modificando mais ou menos por inter-relação, suponho. Mas há, de facto, pessoas que, contra tudo e contra todos, mantêm essa frescura quase inata e que dá gosto. Abençoadas.
    Bom fim de semana

    ResponderEliminar
  2. A CC tem a capacidade de olhar à sua volta e sensibilidade bastante para as pessoas que a rodeiam.
    Na minha infância e juventude senti falta de não ter irmãos nem primos. Senti-me só, somente com a minha imaginação por companhia.
    Pegando em palavras suas, nunca saberemos se algumas coisas ao serem diferentes no passado nos teriam também tornado diferentes.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Irmãos é bom, mas há muita maneira de os ir quase arranjando ao longo da vida, acho que tenho amigas que são irmãs.
      ~CC~

      Eliminar

Passagens