terça-feira, 28 de novembro de 2023

Corpo

 

Deixei-o esquecido como matéria ao abandono, talvez por ter sido ele a trazer-me as dores maiores. Olho-o agora com as suas cicatrizes, com as suas rugas, com os nódulos de gordura onde não devia ter e a magreza excessiva onde devia haver músculo. Olho-o com o pavor com que o alimentei do medo do toque, da dor desse toque. Coberto é bastante aceitável, descoberto é bastante incómodo. Em geral os corpos de meia idade quando nus só se aguentam no calor de outros corpos. 

Olho-o como o lugar onde o prazer deixou de existir marcado por fantasmas vários. E ainda assim há nele uma memória ténue do embalo de um abraço, do sabor de um beijo, da força de um desejo salgado. Não sei se ainda o consigo preparar para qualquer sementeira ou se prefiro que seja só esse lugar onde o vento se deita manso e se aquece a si próprio entre os lençóis de Inverno.

~CC~

domingo, 26 de novembro de 2023

Para memória futura

 

Algures, por ali, também escrevi qualquer coisinha para contribuir para a memória colectiva.

Sem papel, contudo, os livros caminham coxos, sem cheiro e sem glória, até os lançamentos são tristes.

Porém, parece que assim viajam muito mais.

~CC~


sexta-feira, 24 de novembro de 2023

Não é mais além

 

Num tempo tão sem esperança (a banalidade do mal a unir a América Latina ao centro da Europa) é no cinema que a vou encontrando. E é tão bom sair e ir ao cinema, mesmo no Inverno quando tudo me puxa para o chá e para o sofá.

É o coro final, cantando na mais bela língua do mundo um sol que o futuro há-de trazer (Nanni Moretti)

É dentro daqueles dois rostos, um velho tosco que gere um pub falido e uma jovem que atravessa fronteiras com uma máquina fotográfica em que fixa a resistência de existir (Ken Loach).

E essa luz que passa da tela para mim torna-me também mais capaz de iluminar-me e iluminar outros. A luta é sempre cheia de pequenos nadas. Apoiar uma amiga que perdeu a mãe, escutar com tempo um estudante, comprar algo num pequeno comércio, receber um cabaz da quinta semanalmente, mandar uma mensagem a alguém que precisa de alento. É no dia a dia que somos e nos revelamos humanos, não é mais além. E ser humano é luta contra a sombra, aquela, a da banalidade do mal.

~CC~

segunda-feira, 20 de novembro de 2023

Coisas bunitas

 


Tudo isso merecias ouvir, todas essas coisas sussurradas ao ouvido.

Esta é de todas as tuas músicas, a minha preferida. Vou ouvi-la muitas vezes e assim contribuir para que perdures na nossa memória colectiva.

~CC~




domingo, 19 de novembro de 2023

Passeio de Domingo

 

Esta é uma forma de lembrar a Luísa e a sua crónica, a chegar (quase) sempre com a regularidade das boas rotinas. 

Em criança, a minha mãe obrigava o meu pai a levar-nos ao domingo a comer um sorvete à Baleizão que ficava na baixa de Luanda, era muito longe do sítio onde morávamos, na parte de cima da cidade. A minha mãe vestia-nos com roupa de domingo, quase sempre feita por ela própria e arrumava-se como uma princesa. Ele nem sempre cumpria e quando o fazia era com aquele ar de frete de um homem muito ocupado, sem tempo para aquelas minudências de passear os filhos. 

Nunca liguei muito a Domingos até às crónicas da Luísa e à velhice da minha mãe. As crónicas da Luísa sugeriam que o Domingo devia ser verde e os pedidos da minha mãe era para sair, para ir dar uma voltinha, manteve até ao fim esse desejo de fazer daquele um dia diferente da semana. Eu sempre fui mais de Sábados. Mas agora a vida trocou-me as voltas e agora há muitos Sábados em que trabalho. Comecei assim a gostar de Domingos, a respirar neles e com eles. Da serra ao mar, fica-me o Outono.