domingo, 5 de maio de 2024

Cuidarei do teu lugar em mim

 

Mais tu

Visto-lhe os casacos que me ficam invariavelmente grandes, pois no fim da vida ela tinha diminuído em altura e em peso, mas não deitava a roupa fora, cuidava dela como ninguém, lavando à mão e separando cada coisa por cores.

É o primeiro dia da Mãe em que não lhe oiço a voz. Era ela quem me prendia a estas convenções, sabendo que delas eu não sou adepta, perdoava-me a falta de fascínio, mas pelo menos o telefonema tinha que existir. Ela gostava muito de rosas e de orquídeas, enquanto eu prefiro as flores do campo e as de jardim, as estrelícias, os girassóis, as flores sem nome ou cujo nome não sei. Sendo duas mulheres tão diferentes, não sei o que nos aproximou tanto nos últimos anos. Talvez tenha sido eu, tardiamente a reconhecer-lhe o esforço de uma vida e o desamparo em que ficou, talvez a sua solidão tenha tocado na minha própria solidão. Dei-lhe a protecção que ela não me deu, perdoando-lhe ausências, omissões e escolhas menos boas. E comecei-lhe a achar-lhe graça, uma coisa fundamental para nos ligarmos a alguém, não é apenas o laço de sangue que o faz.


Mais eu


Cuidarei do teu lugar em mim.

O casaco castanho fica-me tão mal, tu nem deixarias que o usasse, com o teu fino sentido estético. Mas olha, sou eu e sendo assim também me importa que me cubra toda e não tenha que levar o guarda-chuva neste dia em que ela cai amiúde. 

~CC~

sexta-feira, 3 de maio de 2024

Mais do que...


 

Umas pedras retiradas da terra. Uns paus apanhados pelo campo. A infinita paciência de um artesão. Tenho a certeza de que não lhe chamavam reciclagem, era apenas a lenta sabedoria de aproveitar o que  estava ali à mão. A peça era única e mesmo assim quase sem custo. Tanta coisa deixada para trás, resta saber o que ganhámos, o que aprendemos a fazer, o que construímos. Às vezes penso no que acontecerá quando a tecnologia estourar no centro de qualquer pandemia ou efeito semelhante. O que saberá cada um fazer com as suas mãos?! De salientar que isto não é apenas sobre o outro mas também sobre mim própria, como aliás quase tudo o que escrevemos. Luto para as minhas mãos saberem fazer muito mais coisas do que apenas disparar letras no teclado, luto para dar abraços reais, com cheiro e tudo.

~CC~


quarta-feira, 1 de maio de 2024

1º de Maio, dedico-o às seis Nepalesas

 


Aos quinze anos comecei a trabalhar durante as férias (na altura "grandes") num restaurante. O patrão pagou-me um mês em dinheiro pois no mês a seguir saí de lá para outro trabalho numa roulotte de praia. Nesse mês experimentei o assédio dos clientes e o ainda mais sistemático o do filho do patrão. Tudo se dizia a uma miúda de quinze anos sem posses, era presa fácil. Outras começaram muito mais cedo que eu e foram sujeitas a muito pior, sem opção. Na roulotte já era quase dona do meu tempo e do que fazia e já tinha aprendido a fazer cara feia aos clientes mais inadequados.

Nunca mais deixei de trabalhar desde essa altura, acumulando com os estudos, primeiro naquilo que agora se designa de trabalho parcial, depois no precário e por fim com contrato de trabalho, ainda assim durante muitos anos a termo certo (anual). Sobre assédio e pressão no mundo laboral vi muitas coisas e sob várias formatos e batalhei para não me tornar vítima e muito menos agressora, mas não é fácil. Ao mesmo tempo fui fazendo coisas que me deixavam grata e feliz.

Passamos metade da nossa vida no trabalho e para muitos de nós é uma metade muito dolorosa, seja pelas condições de trabalho, seja pelo vazio que não preenche, seja pela falta de identificação. Quase tudo no mundo do trabalho necessitava de uma revisão profunda. Para já começaria por diminuir o tempo que lá passamos e por mudar para a reforma gradual, em vez de abrupta, quando a saúde já não dá a muitos de nós grandes tréguas.

Este ano tenho em particular no meu coração as seis jovens Nepalesas que entrevistei numa zona rural e recôndita deste país e que trabalhavam num lar de idosos, a sua dignidade, o seu sorriso e a forma como responderam quando lhes perguntei como comunicavam com os idosos e elas usaram a mímica para representar como o faziam.

~CC~

segunda-feira, 29 de abril de 2024

Aqui na terra

 

É verdade que a Primavera arrefeceu toda a vontade de mar. Mas deixou-me os mergulhos no verde. Que belos se oferecem os campos na sua imensidão de cor e que estonteante ficou o céu raiado de ora branco, ora cinzento, ora azul. Às vezes chove e cheira a terra molhada, ela pulsa, respira e absorve. Pouco a pouco tudo desligo-me das amarras e é como se pudesse finalmente descansar. E tanto que preciso de descansar, o corpo pede, mas a cabeça pede ainda mais.

Não há renovação se não sairmos do mesmo lugar, se não partirmos de quando em quando das casas que habitamos, esses lugares que são casulos e nos guardam e protegem, são também os lugares que nos criam as rotinas, os vícios, nos prendem às obrigações. Nem é de viajar que se trata, não é esse frenesim que de tudo tomou conta como se não houvesse lugar que não pudéssemos conhecer à face da terra. Para mim é apenas olhar-me noutros espelhos, contemplar o céu de um outro prisma, reparar que as borboletas têm outro voar e a vegetação muda. Com a distância o que dói e incomoda, dói sempre menos, seja qual o quadrante do corpo em que a dor se situa, nem todas se instalam dentro de nós como incuráveis.

Pausa é pousar ao de leve numa das cores do arco-íris e sentir a bênção do silêncio que habita a noite.

~CC~


quarta-feira, 24 de abril de 2024

Somos Livres

 



Todos têm uma canção. Esta foi das primeiras que aprendi e liguei a Abril. É boa de trautear e popular. E era das que a minha mãe cantava.

Todos têm uma palavra amada, estimada, guardada como um tesouro.

Gosto mesmo da palavra liberdade, gosto ainda mais da minha liberdade, estimo-a, pratico-a, sinto-a. Ao longo da vida senti as pequenas ameaças. Mas agora parecem crescer, já não em torno de mim, mas em torno de todos nós.

Por isso o cravo do LD tocou-me.

 Biblioteca de Palmela


E que bonito isto.

Descemos amanhã a avenida?!

retirado daqui: https://www.tndm.pt/pt/odisseia-nacional/pecas/25-de-abril-de-1974/


~CC~