quarta-feira, 22 de outubro de 2025

A subtil diferença que vai construindo o mundo

 

Nas aulas, o professor tratava as meninas por princesas e por queridas e os rapazes pelo nome próprio. 

Dirão, e posso talvez confirmá-lo, que não o faria por mal, quem sabe para exprimir carinho e protecção. Embora não advogue um superlativo controlo da linguagem e muito menos a censura, sei que a linguagem também é uma representação do mundo e ao mesmo tempo algo que o reproduz e o constrói. 

~CC~

segunda-feira, 20 de outubro de 2025

Não posso mais perder-me de mim

 

Os hábitos dos mais próximos conheci-os bem, eram também os meus,

Mas em conversa com amigo recente, ele contou-me como os seus sábados de manhã eram passados a ler o jornal grande no café, numa rotina imprescindível e amada. Foram anos e anos a fio, era comum ver os cafés cheios de gente a ler jornais. Como acabou? Há quanto tempo? Porquê? Foi o jornal que se tornou desinteressante, o nosso tempo de leitura que se afogou nos mil e um afazeres ou o dinheiro que foi minguando? 

Partilhámos o mesmo processo, primeiro tornou-se semana sim, semana não, depois cada vez mais não, até que desapareceu. Como é que alguma coisa que tanto gostámos e valorizámos se torna dispensável? Ele diz que ainda passou pela fase digital, eu nem sequer isso.

Finalmente, depois de alguma subjugação às mil e uma leituras possíveis num telemóvel, acompanhada de um tempo cada vez menor na esplanada, substituí o jornal pelo livro do mês. Tem sido bom voltar a ler com dedos no papel e cheiro de café. 

Não posso mais perder-me de mim.

~CC~

sexta-feira, 17 de outubro de 2025

No calorzinho do sofá vê-se o ecrã (I)

 

Nunca fui uma fã de televisão, talvez por ter passado a minha infância sem ela, a adolescência também não me agarrou, tão ocupada que estava a explorar um mundo que pouco a pouco ia conseguindo alargar. Tão grande que era...

Passei incólume pela febre das séries e pelas plataformas pagas a que quase todos aderiram, nunca tive nenhuma. Quando a minha filha era adolescente víamos os episódios de Anatomia de Grey na data e hora a que passavam no canal, portanto apenas um. Recordo mais os nossos pés encaixadinhos do que qualquer episódio. Achei graça sem me deslumbrar à Casa de Papel e não fiquei ansiosamente à espera da nova temporada, nem senti necessidade de ficar madrugada fora a ver como acabava o conto de fadas moderno, uma espécie de Robim dos Bosques reinventado. A melhor série que vi até me deixar encantar foi sem dúvida The Handmaid's Tale, essa distopia sombria que parecia tão irreal quanto agora parece um assombro do que podemos vir a ter, era arrepiante e magnífica, ainda assim, talvez pela carga cinzenta, não conseguia ver mais do que dois episódios. 

Mas não digas nunca. Pois é. Vi os quatro episódios últimos dos oito de Normal People de uma vez. Gostava, contudo, que não caíssem na tentação de fazer com que aqueles jovens cresçam. Quero guardá-los assim nessa sua normalidade anormal, próxima do que todos somos. Foi esse o encantamento, é que sou eu e não sou, és tu e não és, são eles e não são, há um bocado de todos nós ali. É brilhante como cada um é desadequado à vez em função do contexto em que se situa, como cada um à vez se sente inferior ao outro e por motivos bem diferentes, como cada um magoa e se deixa magoar. E a representação é tão boa que não acredito que sejam actores, são dois miúdos que foram por certo buscar à vida real. Já passou quase um mês que vi e ainda não esqueci, apesar da vertigem da vida que vivo.

Ora aí está, por vezes há calorzinho no sofá e brilho na televisão. Ou então estou a envelhecer.

~CC~


terça-feira, 14 de outubro de 2025

Que a noite chegue mais cedo mas jamais nos engula

 

Olha só como a noite vem agora mais depressa, ainda assim tem chegado doce, em crepúsculos alaranjados e secos.

Permitiu-me um último banho de água em terras ainda banhadas pelo sol e brindes com sangria de champanhe, dotes desconhecidos da filha, nunca sabemos verdadeiramente tudo sobre eles, e o contrário também é verdadeiro.

Os retratos de família actualizam os laços que a dispersão geográfica torna difíceis e só a doses cada vez maiores de persistência permitem os momentos de partilha dentro dos anos que passam. 

Entre duas palmeiras houve festa, depois saímos de rompante para o dever cívico, concluímos que já todos os que ali estavam podiam votar, um deles pela primeira vez. É quase só o que nos resta, esse voto na e pela Democracia.

Que a noite chegue mais cedo mas jamais nos engula. 

~CC~