domingo, 27 de outubro de 2013

O corpo



O que a doença nos traz, qualquer que ela seja, é a escuta do corpo. Não é o corpo sacralizado como objecto de desejo e via para o prazer, esse já o vimos endeusado por tudo o que é publicidade e exposto mil vezes, primeiro pela indústrias que dele se ocupam e vendem e agora vulgarizado e acessível nas mil poses adolescentes e adultas que invadem as redes sociais. É verdade que o corpo do desejo também se aprende com dificuldade, porque do que está exposto até ao que e genuíno e é nosso, vai uma grande distância.

Mas esta é uma outra aprendizagem. De repente comanda o que nunca comandou, o que nos habituamos a dominar, quase a humilhar, castigando-o quando não nos quer responder. A brufen qualquer gripe se leva ao trabalho, há muito que a maior parte de nós não sabe o que é deixar um dia o emprego por estar doente. Não acredito na profusão dos atestados médicos impostores, sobretudo nos tempos que correm, essa é um prática muito mais abandonada. É por esta ditadura que exercermos sobre o corpo que a velhice nos custa horrrores, quando o corpo já não responde, é o caminho para a nossa desorientação. 

O meu corpo tratei-o sempre mal, com o desprezo de quem ama muito mais o intelecto. Nunca lhe pratiquei a escuta, muito menos o cuidado. Agora oiço-o. Se tenho dores mantenho-me em casa, se elas desaparecem saio um bocadinho. Se não posso andar depressa, ando devagar. Se não posso estar tanto tempo em pé, procuro sentar-me mais. Trata-se de construir uma relação, um diálogo. Se não for assim, será ele que nos dominará com a sua desistência da vida, é pelo corpo que morremos. Lembro Vinicius e o modo como o corpo o fez morrer cedo, não penso que o quisesse, amava a vida. Se há coisa que tenho aprendido é que esse amor nem sempre diminui com a idade, pode até aumentar. À medida que o meu corpo me dá sinais de mal estar, percebo melhor o seu valor como instrumento de vida e sinto que isso me modifica também interiormente.

~CC~


2 comentários:

  1. É ele que nos traz vivos - sem ele, deixamos de viver!! É o nosso "templo sagrado"! Como ontem também foi "sagrado" o nosso passeio à beira mar. Credo!!! Tanta conversa para pôr em dia ... nem me tinha dado conta! ... :-) ...
    Trato-o bem!
    Beijos

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  2. e todos os dias devemos agradecer-lhe o ser veículo, para que possamos sentir, cheirar, ver, ouvir, saborear. porta aberta para sensações e emoções. e saibamos também ouvi-lo, compreende-lo e sobretudo, aceitá-lo. o nosso corpo.

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