segunda-feira, 29 de julho de 2024

Nenhum Verão devia ter dias difíceis

 

De que lhe adianta a minha tristeza? De que lhe adianta a minha ansiedade? Porque não vou outra vez dançar, talvez isso pudesse adiantar-lhe mais.

Mas agora não posso, não consigo. Até o barulho me incomoda, como a incomodava o latir dos cães na esplanada, era um dos seus tormentos.

Tenho que me animar eu sei, até porque assim triste não consigo visitá-la, lá nesse lugar em que algumas pessoas encontram a saúde e outras já não conseguem, não podem fazê-lo, só é possível minorar o sofrimento, conseguir a paz.

A tristeza eu tolero, sei-a, conheço-a, dou-lhe a volta. À ansiedade é mais difícil, ainda não lhe decifrei o código genético. Nenhum Verão devia ter dias difíceis. 

~CC~

sábado, 27 de julho de 2024

A menina dança?!

 

Foi quando fiz quarenta anos a minha última dança com todo o corpo, livre, cheia de vontade e completamente imune aos comentários que podiam advir da minha grande falta de talento. Dança com música cabo-verdiana, sem obrigação de dançar a par, havia mulheres com mulheres, adultos com crianças, muita gente a dançar sozinha, pouco importava.

Depois vieram lentamente os medos, as tentativas de fazer bem, de acertar o passo, a sensação sempre presente de ser avaliada e não conseguir, não estar à altura. Vieram as lições que quanto mais assertivas eram mais me inibiam. Nunca mais fui feliz a dançar, muito embora tivesse até procurado ocasiões em que isso acontecia de forma colectiva e podia passar despercebida. De insucesso em insucesso nos tornamos incapazes.

Até ontem. Um baile inteiro com um tributo aos Beatles. Um grupo informal, erámos uns 12 unidos por uma amiga comum, acho que quando fomos nem sabíamos quantos seríamos, eu pensava que seríamos três. E o grupo ampara-nos na queda, protege-nos da imperfeição, liberta-nos. Volteamos entre nós divertidos, sem avaliação disto ou daquilo, há apenas um único casal, todos os outros são apenas amigos. Nenhum de nós é novo e todos temos noção que o tempo escasseia, por isso queremos perder o medo. E há dois que não dançam, ficam por ali na varanda à conversa. E ninguém os chateia, ninguém os recrimina, ninguém os obriga, ninguém diz que se vieram ao baile é para dançar. 

A menina dança?! Sim, hoje consegue. Mesmo que amanhã não o faça. Quanto tempo fica a alegria a morar nossas células?! Preciso que perdure um bocadinho.

~CC~


quinta-feira, 25 de julho de 2024

Longos aros de fumo

 

Olha que engraçado, ainda se pede lume...fiquei tão estupefacta com o pedido que nem sabia o que responder, talvez por nunca ter fumado. 

Lembrei-me da minha infância e do meu pai, dos seus rolos de fumo no ar, uns atrás dos outros, aros que por vezes eu furava com os dedos, era tão belo aquilo. Da tentativa do meu pai para ensinar a minha mãe a fumar, pois as mulheres belas e finas faziam-no. Dos cigarros dos meus professores nas aulas na licenciatura de Psicologia, como se deles precisassem sofregamente para o escrutínio do nosso interior. Do meu primeiro grande amor com um beijo sempre a cheirar a fumo, que só por paixão eu suportava. E do cigarro da minha amiga, quase sempre apagado depois de duas ou três passas. 

Hoje que tanto sabemos sobre o seu malefício, que dores os levarão a buscar aquele apaziguamento. E tenho mais compaixão do que zanga, mas isso ocorre-me em quase tudo, espero que a idade não me leve toda a indignação.

~CC~


terça-feira, 23 de julho de 2024

Atendimento excessivamente personalizado

 

Procuro cada vez mais comprar nas lojinhas pequenas no centro e nas artérias laterais da minha cidade. Se aqui não se aplica o princípio do produtor-consumidor, há por certo outras lógicas, outros produtos, outra forma de encarar o cliente.

Mas às vezes as coisas não correm como esperamos.

Procurando um fato de banho ou um biquini, fiquei encantada com a forma como aquela montra os mostrava. E entrei. Directa a mim a senhora nem me deixou explorar o que havia, primeiro quis logo mostrar que era a proprietária, depois disse que me ia orientar na procura e por certo íamos achar "juntas". Até lhe perdoei o exagero, mas piorou quando ela tirou a fita métrica e sem qualquer aviso começou a tirar-me as medidas. Entrou sem aviso na minha bolha dos 20 cm e logo para medir o peito. Afastei-a não com toda a vontade que desejava e retorqui que sabia o que me servia, não era preciso medir. Ficou chateada e empregou uma qualquer palavra francesa para definir o seu trabalho de apoio, que era a sua missão profissional.

Nada mais correu bem a partir dali. 

Não só não comprei nada, como me esqueci dos óculos escuros e tive que lá voltar. Mas o pior foi a vontade que me ficou de voltar às lojas onde entramos, nos ignoram, provamos o que queremos e ninguém sabe que existimos. Afinal não gosto de atendimento personalizado, ou pelo menos excessivamente personalizado.

~CC~




domingo, 21 de julho de 2024

Chás não chega?!

 

- Então?

- Vou indo

- Tens tratado bem do teu corpo?

- Do meu corpo? Mas agora?

- Sabes bem do que falo, expliquei-te o que fazer, marca consulta novamente.

Estes gurus estão por todo o lado, este combinava o corpo esbelto com uma longa trança. Pelos vistos dava consultas. Qualquer um dá. Os mais pobres vão para os cultos evangélicos com mil e uma nuances. Os mais ricos para os espirituais, se lhes disserem para andarem todo o dia com um cristal no bolso ou para comerem sempre pitaia ao jantar, fazem-no. Antes, pagaram 80 euros por uma consulta. Bem sei que o poder da mente é coisa desconhecida e muito pode. Ainda assim, custa-me a ignorância crédula explorada. 

Fico-me pelos chás e pela militância moderada no grupo das plantas.

~CC~



quinta-feira, 18 de julho de 2024

Perdoem-me todos os outros

 

Pudesse eu ter tempo para escrever tudo o que guardo nos meus olhos e no meu coração. Uma parte ínfima chega aqui. Mas mesmo quando escrevo só para dentro de mim, é enorme o bem que me faz. São desenhos e desenhos de histórias, tantos rostos, tantos diálogos, tantos lugares, tanta dor, tanta felicidade.

Por exemplo, aquele lugar. O túnel debaixo do prédio na cidade cada vez mais turística. Nesse túnel vive alguém que tem uma cama no chão miraculosamente arrumada, uma pilha de t-shirts impecavelmente dobradas e dois pares de sapatos alinhados. Há um saco também, deve conter comida ou utensílios de higiene porque todas as coisas estavam limpas. Uma dignidade tão grande naquele lugar e a confiança em tudo deixar assim na sua ausência. É assim que vivemos, paredes meias com túneis que são casa, mares que são cemitérios e bombas que caem e matam sem sentido. Tragédias que nos arrepiam num minuto e que no outro esquecemos, afogamos a nossa impotência e amortecemos a nossa dor. 

E a tragédia que fica e nos corta o coração muito e muito tempo é sempre a de alguém que conhecemos e a quem chamamos irmão, mãe, amigo/a ou amor. A tua minha amiga, a tua. É a tua que fica a doer-me, perdoem-me todos os outros. Perdoem-me esta imperfeição.

~CC~

domingo, 14 de julho de 2024

Não te demores

 

Tu dizias: não te demores.

E eu aprendi assim a não me demorar, a chegar à praia e entrar logo na água, independemente da sua temperatura para depois secar e me vir embora.

Tu dizias: não te demores

E eu deixei de ir às praias mais longe, onde sabia poder haver trânsito no caminho, onde o estacionamento era incerto, onde o tempo podia não depender de mim.

Tu dizias: não te demores

E eu sabia que não podia fazer refeições demoradas fora, levar livros entusiasmantes em excesso, buscar a beleza noutras cidades próximas, nas feiras, nos festivais.

Estar aqui nos últimos dois anos contigo foi sempre não me poder demorar, esperavas-me para o almoço, para o lanche, para o jantar. 

E agora que posso demorar-me e já não me esperas, já não o sei fazer.

~CC~



sábado, 13 de julho de 2024

Era só para falar dos pássaros do sul

 

De lugar em lugar faço a viagem. 

Em cada um deles já houve um pedaço da minha vida inscrito, o encontro é marcado por essa memória e, contudo, o presente de cada um desses espaços é já outra coisa. Disponho-me a fechar os olhos e caminhar até ao sabor antigo, vejo-me, vejo-o, vejo-os. Depois abro os olhos e encontro a outra que eu sou, os outros que eles são. E das pessoas novas que me apresentam ou que se apresentam, registo pouco. Tenho pena que assim seja, como se a minha capacidade de acolher estivesse diminuída, não obstante a receptividade a todos os diálogos que se constroem e a apreciação do interesse que cada pessoa em si tem. Não há dificuldade em ir e em estar, mesmo quando vou sozinha ou estou com grupos que mal conheço. Mas passar desse limiar, confiar, enlaçar, navegar...nem consigo perceber a facilidade que os outros têm nisso, como do nada tecem a teia e nela se enredam. Em geral eu preciso do tempo longo e envolvente, seja na amizade ou no amor.

Já na conservação dos afectos sou mestre. O gosto que tenho em encontrar os amigos, saber deles, dos filhos, do trabalho, perco-me nessas conversas de revisitação olhos nos olhos, quero acolhê-los no meu abraço.

Por isso me doem as ausências, os lugares apagados, as transformações radicais dos sítios, espaços vedados. 

O meu dedo toca sempre no terceiro andar de certo prédio, não sei quando se apagará essa memória que o corpo tem. Às vezes também eu penso que poderia ser leve e ligeira como uma pena, inclinar-me para essa superficialidade que parece tornar as pessoas felizes. Mas sei que nada em mim é assim, tudo é profundo, denso e grave, tudo o que amo tem que ter consistência. Felizmente também me sei rir e até de mim e da minha gravidade, caso contrário talvez fosse sempre triste.

E isto era só para falar dos pássaros do sul. 

~CC~

 

sábado, 6 de julho de 2024

Cogitação de futuros

 

Ontem fui pela segunda vez entrevistar um pequeno grupo de imigrantes de origem asiática num meio rural de pequena dimensão. Da primeira vez comovi-me. Mas desta segunda vez indignei-me. Vim de lá às 19h30m e deixei a televisão desligada, não fui capaz de ver nada. Fiquei assim um bom tempo no silêncio e triste. Ali está a desordem do mundo no seu pleno. Entre a zanga, a esperança, a gratidão, eles vivem sem futuro, a palavra amanhã não é pronunciável. 

Ajudou-me que a rua também estivesse totalmente silenciosa, durante uma duas horas nada se ouviu, quase parecia o tempo da pandemia. E depois voltou o ruído mas sem festa e adivinhei porquê. Pouco a pouco voltei a mim e esbocei um sorriso com a série do canal 2, vivida num hotel à beira mar. E adormeci. Algum tempo depois acordei com os sinais de ansiedade que de quando em quando me visitam sem nome, sem origem conhecida, sem destino aparente. É a sensação de suor, tremor e falta de ar. É levar até ao limite para não tomar o comprimido e entristecer com cada capitulação que se faz ao químico. Penso no que o poderia substituir. Um quintal para ver as estrelas? Um lugar mais fresco para morar? Alguém a quem ligar? Um tempo sem trabalhar? Voltar com muito mais regularidade ao yoga? Psicoterapia?

Adormeci na cogitação de futuros e acordei mais tarde do que o habitual. E senti-me leve outra vez como as pessoas dizem que pareço estar, há quem diga mesmo que nunca me viu tão feliz, outros tão nova e há mesmo quem, como esta manhã, na loja, peça o segredo.

~CC~


sexta-feira, 5 de julho de 2024

Afinidades

 


Olho para ela demoradamente, vítima do incêndio de há dois anos nestas encostas de Palmela, que percorremos agora com quem anda a proteger cada carvalho, cada sobreiro novo que nasce. Há quem lhe pergunte qual a razão para não terem cortado estas árvores, algumas são só um tronco carbonizado na paisagem. É preciso esperar, disse. Algumas renascem por si, vão à luta.

Olho para esta árvore e sinto uma grande afinidade, apetece-lhe segredar-lhe ânimo e força e dizer-lhe: vais conseguir, nós conseguimos. 

~CC~





segunda-feira, 1 de julho de 2024

Adeus Gigantes

 

O que um pintou, o outro podia cantar.

Deixaram-nos dois gigantes.

Um nas Artes Plásticas, outro na Música.

O primeiro, Manuel Cargaleiro, conheci tardiamente mas foi com absoluto deslumbramento que visitei em Maio o seu museu em Castelo Branco. Foi mesmo o último museu que visitei e perguntei por ele ao guia, disse-me que estava vivo e cognitivamente capaz, embora frágil fisicamente. Teria fotografado quase todas as obras, não fora o tempo não deixar, apetecia-me trazê-las comigo para vê-las depois, saboreá-las.

Fausto Bordalo Dias maravilhou-me ainda adolescente, nos primeiros acordes de Rosalina. E continuei absolutamente maravilhada de disco em disco, tendo visto poucos concertos ao vivo (não era coisa que ele gostasse), apenas um, ao qual junto o último concerto do Zeca Afonso no coliseu. Coloco-o a par do Zeca, no mural dos maiores. Era ainda novo, parte com 75 anos, mas se a doença o tomava de dor, só podemos pensar que a morte deve ser sido apaziguadora. 

Nós, nós é que ficamos cada vez mais pobres. 

Adeus Gigantes.

~CC~