Nasci em África, naquela África branca mais para o pobre do que para o rico, de que pouco se fala. Apenas o ordenado de um pai polícia sustentava uma família com três filhos, um pouco mais tarde, quatro. Não havia luxo algum, eu andava na escola pública angolana. É verdade que tínhamos direito a um criado de cor negra (pela própria polícia) e a uma boa casa, isso mostrava que a nossa miséria era em tudo diferente da miséria dos negros. Como tantos outros, diríamos que a vida lá era maravilhosa. Era muito fácil ser feliz numa terra quente, com uma luxuriante natureza, com tempo, com o frenesim da celebração da vida. Uma terra onde a esperança não era um sentimento que se quer para o futuro, estava incorporada na própria vida.
Era apenas uma criança de dez anos quando voltei para Portugal e me tornei numa retornada, coisa que vim a descobrir ser má, por força de termos sido todos exploradores de negros. E sim, de certa forma, não havia propriamente inocentes. Todos sabiam que aquela era uma terra ocupada, há muito que a guerrilha o fazia sentir. Também não houve culpados. Por isso nunca tive, nem alimentei ódio a ninguém, muito menos aos políticos portugueses que trataram da descolonização e que são corporizados erradamente em Mário Soares. Nenhum deles poderia pagar pelo sofrimento destas crianças, homens e mulheres forçados a deixar o lugar que amavam mas que não era realmente a sua terra, por mais que isso lhes custasse a admitir. Não nego o sofrimento, vivi-o na pele, pobre era também a família que cá nos esperava, difícil e tormentoso acolhimento. Com a agravante desta terra nos parecer fria, chuvosa e triste. Mas como não apreciar e agradecer o que nos deram, mesmo tendo sido pouco? Como não agradecer aos políticos que criaram as condições necessárias para não morrermos de fome, não ficarmos sem tecto, podermos continuar os nossos estudos? Vivi de leite e queijo vindo da Holanda que íamos buscar a igrejas e a instituições de solidariedade. Mas quantos nestes tempos de crise não viveram de igual modo?! A quem culpam?!
Todo este ódio que começou a destilar assim que Mário Soares ficou doente é uma coisa anacrónica e injusta. E abre feridas que se julgavam cicatrizadas e cuja dor não nos é já necessária. Eu, pelo contrário, não tenho ódio algum, aprecio todos os que sabem rir, amar a vida, como ele sabia.
~CC~
PS. Dulce Cardoso não escreveu apenas a vida dela quando escreveu "O retorno", escreveu também uma parte da minha vida. O livro não tem um pingo de ódio e agradeço-lhe por isso. Um dia talvez lhe diga.
E eu, querida CC, aprecio muitíssimo essa sua atitude, aqui tão bem exposta neste belíssimo post. Bem haja.
ResponderEliminarBem haja Susana! Gosto tanto dessa expressão.
ResponderEliminar~CC~
CC, também li, há uns anos, "O Retorno", de que gostei bastante.
ResponderEliminarSobre o tema, aconselho "Teoria Geral do Esquecimento" do Agualusa. :)
Gosto do Agualusa, com preferência para o "Barroco Tropical", mas esse não li ainda. Andava eu a pensar escrever o livro que a Dulce escreveu...e pronto, afinal está dito. Beijinho
ResponderEliminar~CC~