terça-feira, 28 de novembro de 2017

Andar em pézinhos de lã



Apesar de falar bastante da doença, não vivo já com ela a tempo inteiro, deixou de ser o meu centro e está na minha periferia, desloquei-a para lá. Às vezes, na semanas em que tenho consulta, como acontece nesta, até é estranho pronunciar essa palavra, parte de mim voltou a ser aquela pessoa que nunca ia ao médico. Vivo com algumas limitações é certo, algumas coisas nunca voltarão a ser o que eram, designadamente comer. Mas quantas pessoas não levam uma marmita para o trabalho e comem sozinhas, quantas por opção de vida não comem mais devagar que as outras e têm que evitar certos alimentos. Percebi que provar é infinitamente melhor que comer. E continuo a gostar imenso de cozinhar, sobretudo se for para os outros. E a última cirurgia diminuiu efectivamente o mal estar causado por um esófago demasiado curto e demasiado apertado.

Levanto-me quase sempre com energia mas ao final de um dia de trabalho sinto-me cansada e adormeço amiúde no sofá sem conseguir concluir uma série ou um filme que até estava a gostar de ver. Mas quantas não sentem o mesmo? Retomei por completo as aulas desde Setembro e não faltei ainda uma única vez, assisto a reuniões, participo em projectos e voltei a ter ideias, muitas ideias. Não vivo com pena de mim, vivo com muita vontade de viver.

Inevitavelmente a consciência da minha transitoriedade, da minha finitude, da minha fragilidade, das minhas limitações também vive comigo. Tento não correr para absolutamente nada. Tenho mais paciência com os outros e até comigo. Deixo passar coisas pelas quais antes me zangava. Concentro-me mais no essencial, no belo. Ainda não consegui coisas que queria mas hei-de lá chegar. Voltar ao yoga a sério (não ao especial para doentes oncológicos) e às caminhadas (não gostei do ginásio). Sair um fim de semana por mês para passear. Retomar a actividade associativa. Planear e executar com cuidado uma viagem que implique avião (tenho receio de sair de Portugal e tenho que o vencer). 

Isto é derrotar uma doença aos poucos, respeitando-a, não sei como dizer isto melhor. Derrotar o que respeitamos parece contraditório mas neste caso não é. Trata-se de pensar que nós, os médicos, a ciência, tudo isto age num contexto que tanto nos é conhecido como desconhecido, que tanto é feito de êxito como de fracasso, que mesmo quando bem devemos ser contidos na forma como cantamos qualquer vitória. Quando as crianças são pequenas, para não as acordarmos, não nos importamos de andar em pézinhos de lã, é assim que eu também ando.

~CC~










3 comentários:

  1. Que bom sentir essa energia positiva.
    Força, CC!

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  2. «Isto é derrotar uma doença aos poucos, respeitando-a, não sei como dizer isto melhor.»

    Não podia ser melhor dito, CC. Aliás, dito e feito.

    Abraço

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  3. Isabel, quase sempre!
    Obrigada Impontual, sinto amiúde que as palavras me faltam quando quero falar disto.
    ~CC~

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