quinta-feira, 8 de agosto de 2019

Paninho branco bordado


Os seus gestos tinham uma mímica única e a voz um ciciar lento, falando muito perto de nós e olhando-nos por breves momentos nos olhos. Falava muito dos seus meninos, das missões, do modo como fazia o seu trabalho, curiosamente nunca usando a palavra Deus. Como estava de férias e em casa de família não usava o hábito, por isso não sei se a conhecerei quando trajada a rigor. Assim que acabávamos de comer, levantava-se para nos tirar os pratos, não queria deixar-nos levantar para ir buscar alguma coisa ou para arrumar o que quer que fosse. Era talvez das únicas coisas que me incomodava verdadeiramente, como se servir os outros nas suas necessidades lhe estivesse entranhado até às células. Calava-se quando se contavam as histórias indecorosas dos padres da terra, ligeiramente incomodada, mas por breves momentos acho que lhe vi quase um sorriso. Apreciava-lhe a tranquilidade, a doçura, a paz. Às vezes parecia ficar triste, por exemplo quando falava de como a obrigaram a deixar o lar e o trabalho que a tinha ocupado durante onze anos, mas para logo resignar-se a uma nova morada, outra cidade, outro trabalho, afinal era mesmo assim, o normal era mudarem de sete em sete anos.

Interrogava-me amiúde como é que se aprendem gestos, um modo de falar, de estar, de pensar, que educação é aquela que penetra tão fundo. Nunca tinha vivido três dias na mesma casa do que uma freira. 

Guardo o paninho branco bordado que me deu, aquele abracinho terno e um respeito grande por quem é quem quis ser, ainda que me interrogue também se não tinha que ser quando se é uma de oito numa aldeia dos anos quarenta do século passado, em Trás os Montes.


~CC~

4 comentários:

  1. Se era assim serena, estava por vocação. À medida que os anos passam, quem entrou por necessidade ou motivos outros vai azedando. Mas a velhice das freirinhas é em geral muito triste, a vida religiosa afastou-as da família de sangue e poucos, ou mesmo ninguém, se interessam por elas; e a comunidade religiosa, a quem deram uma ida de dedicação e trabalho, trata-as como peso, certo empecilho que tem de ser mas só atrapalha. E depois, não têm liberdade nem meios de subsistência fora da comunidade, aliás, não têm um tostão de seu a não ser o que entenda algum familiar ou amigo compreensivo. Tudo têm de mendigar à directora. É uma vida difícil.
    Mas bordam paninhos e pequenas ofertas, sim. Há religiosas extraordinárias. Talvez tenha privado com uma:).

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  2. Excerto de uma entrevista dada em 2003 pela actriz Graça Lobo ao CM.

    «A Graça transmite a imagem de uma mulher irreverente e ‘fora do seu tempo’. Ou seja, moderna, avançada...

    Para mim, isso é um grande elogio. Sou mesmo assim, faz parte da minha natureza. Fui educada em países onde esta maneira de ser ‘ousada’ era aceite.

    Cresceu na Europa...

    Estudei no Colégio Inglês, em Carcavelos, depois fui para Paris durante dois anos, e de seguida para a Suíça. Pelo meio, estive num convento em Dublin.

    Num convento?!

    Foi a melhor altura da minha vida. Até quis ser freira e tudo. Nesse convento encontrei, talvez, a pessoa mais extraordinária que conheci em toda minha vida. Era uma freira muito alta, magríssima e de uma bondade e compreensão inacreditáveis. Parecia que ela, freira, já tinha vivido tudo, apesar de ter entrado no convento aos 16 anos. Foi a minha melhor amiga. Mais tarde - já tinha ultrapassado os vinte anos – voltei a Dublin para visitá-la.

    Que idade tinha quando esteve no convento?

    Estive lá dos 15 aos 17 anos. A minha mãe pensou que era um bom castigo para mim, porque eu era demasiado rebelde para a sociedade portuguesa. Mas curiosamente, foram os dois anos mais felizes da minha vida. A convivência com aquelas freiras foi extraordinária.O que me surpreende é que quis ser freira...(risos) Quis mesmo. Havia semanas em que pensava seriamente nisso. Acreditava que queria estar ali com Deus e, sobretudo com elas, para sempre. Deram-me uma lição de vida, de humanidade, de coragem, de compaixão, de inteligências, de cultura... de tudo».

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  3. belo relato, CC.
    nunca conheci uma religiosa assim tão de perto.
    mas não me importava.
    devem ter histórias incríveis.

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  4. Bea, é verdade, completamente reféns da organização a que pertencem...e muitas vezes a escolha fez-se para não ser mais um peso na família.
    Joaquim, lembro-me dessa entrevista, comigo não aconteceu fascínio, mas ternura sim.
    ~CC~

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