segunda-feira, 25 de julho de 2022

Da Inocência perdida

 

Quando fui a Cabo Verde tinha pouco mais de 30 anos e uma filha criança. Fomos um grupo de mulheres e meninas.  Em todo o sítio havia mulheres que por quantia simpática nos enfeitavam as cabeças com tranças e continhas. Sim, esses cabelos lisos de mulheres brancas, os meus e os da minha filha até eram meio loiros. Quando as fizemos, essas maravilhosas trancinhas, sentíamos que era também uma forma de homenagem aos incríveis penteados que usavam. Viemos com elas para Portugal e usei-as por mais uns quinze ou vinte dias. Ficavam-nos bem e era como se um bocadinho daquela beleza de lá do meio do Atlântico tivesse vindo connosco. Hoje, seriamos por certo condenadas, ostracizadas, ofendidas. É como se toda a inocência tivesse de súbito acabado na palavra "pessoa racializada". Depois de tantos anos a aprender que as raças afinal não existem, esbarro nesta palavra como numa rocha colocada no meio do percurso. 

E que dizer das mulheres da minha rua, lá na infância, mulatas e negras que passavam longos períodos de tempo desfrisando os seus cabelos para que ficassem lisos como os das mulheres brancas? Estariam a renegar a sua origem? A efectuar uma apropriação cultural indevida? Mas se lhes apetecia fazê-lo, se ainda hoje apetece a tantas, porque não o poderão fazer sem condenação.

Esta hipervalorização da diferença e amarras a uma cultura de origem é para quê? Somos todos mistura de várias coisas, fusões de átomos, pó de tantas estrelas, rios que desaguam em mares que comunicam uns com os outros. Acantonados seremos mais pobres, tenho a certeza. 

Não ignoro que o racismo existe, agora como antes. Nem que a discriminação com base na cor da pele continua a ser persistente, profunda. Mas em que é que estas coisas de não se poder fazer isto ou aquilo contribuem para a luta? As culturas têm que ser livres e o sentimento de pertença a elas também.

O vestido mais bonito que alguma vez tive foi de pano cabo-verdiano, um modelo pouco tradicional de lá, até bastante inovador, nunca me senti tão deslumbrante. Vesti-o quando fiz quarenta e fiz a festa no Espaço Cabo Verde onde dançamos até tarde as mais belas mornas e comemos cachupa até nos enfartarmos. Nenhum de nós tinha origem cabo-verdiana, amigos sim, muitos. Será que hoje teria que vestir um traje tradicional de Lisboa e festejar numa casa de Fado? Mas isso para mim não seria festa, antes um pequeno martírio.

~CC~


2 comentários:

  1. Cada um foi feito para andar e se apegar ao que lhe agrada e dá prazer desde que isso não prejudique terceiros. Está dentro do conceito de liberdade humana que assim aconteça. Desconhecia o termo racialização. Mas desgosta-me a interpretação do mesmo.

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    1. Cada vez a palavra liberdade está mais condicionada, vivemos cheios de pode/não pode, deve/não deve...enfim.

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