domingo, 15 de janeiro de 2023

Gabriela (III)

 

Aquele beijo aos doze anos tinha sido bruscamente interrompido pela voz da irmã mais velha dela. E ela também tinha dito que se se voltasse a repetir, iria contar aos pais. Gabriela não repetiu. Talvez tenha sido esse medo, talvez apenas por serem tão novos. A verdade é que aos treze já frequentavam escolas diferentes. 

Anos mais tarde era mesmo ele junto ao camião de mudanças, apenas duas casas a seguir à sua. Retomaram a amizade, agora como vizinhos adultos, cada um com a sua família. Assistiu ao modo como a família dele foi crescendo, chegaram rapidamente às três crianças. Ela não,  primeiro por opção, depois por inércia e por fim por já não ter com quem. Os miúdos na verdade tinham quase crescido nas duas casas, eram como sobrinhos para ela. Nunca, em todos esses anos, uma palavra sobre cada um deles ter sido o primeiro amor do outro. Gabriela acreditava mesmo que ele já nem se lembrava. E havia harmonia, entendimento e paz naquela família, como tal ela não faria nada que perturbasse aquela união que só não designava como feliz por ter medo de o fazer. Na verdade não tinha sequer inveja, ela tinha outro rumo, outro modo de estar, não se arrependia do seu divórcio e amava a sua liberdade, a profissão leva-a para tantos cantos do mundo que estar amarrada a uma casa era impensável. Mas não podia negar que ele ainda a perturbava um bocadinho, que tinha arrumado tudo num canto e não queria mexer. 

Quando ele enviuvou sentiu-lhe a tristeza de perder a companheira de uma vida. Nos dois anos seguintes mal o viu, os filhos vinham buscá-lo com frequência, já eram adultos e tinham construído as suas vidas noutras cidades. Ela, bem pelo contrário, gozava finalmente a sua casa, a lareira, o silêncio, o prazer de ler. A amizade que durante anos tinha existido parecia ter-se evaporado, até aqueles que designava como sobrinhos já mal lhe batiam à porta. Mas depois ele foi voltando, estando mais por ali, sorriam, cumprimentavam-se, sentavam-se à mesa do café quando calhava, trocavam livros.

Tinha aberto aquele livro com muita curiosidade por ele ter dito que tinha gostado muito. Quando o abriu caiu qualquer coisa, parecia um talão de multibanco. Mas era afinal um bocadinho de papel, nele estava escrito: Temos um beijo por retomar.

~CC~






2 comentários:

  1. Mesmo que não fosse mais que isso, valeria pela última frase - existem interrupções sem retoma. É o sinal de presença interior que cativa. Apenas acho estranho que, embora noutra vida e contexto, haja sentimento que ficou e nunca, nem de leve, foi aflorado. Muito estranho mesmo, dada a proximidade que cultivaram. É muito difícil que uma figura do passado e a quem, afectivamente, nos sentimos ligados, sendo próxima, não estrague a tal harmonia. Mas cada homem é um incompreensível. E talvez a história seja mais bonita por essa sombra de sonho e irrealidade que projecta.
    Bom Dia, CC. Boa semana.

    ResponderEliminar

Passagens