domingo, 5 de janeiro de 2025

Tanta é a luz

 

Vi dois filmes num só.

O filme em que as mulheres são em si próprias a luz que procura rasgar a tristeza em que todos os sítios estão mergulhados, não obstante as suas magnificas cores. A sua batalha que se faz sem choros, sem mágoas, aqui e ali deixando a raiva emergir, aqui e ali o inconformismo de uma condição a que são conformadas, ainda hoje os casamentos arranjados, a impossibilidade da escolha, a religião como imposição maior. E os seus sorrisos têm olhos tristes, sobretudo da mulher do meio, nesse seu nobre ofício que é ofuscado pelo abandono emocional a que se sente sujeita. Tão maravilhosa essa mulher que a todos dá um colo silencioso, sem grandes gestos de amor. Trabalhadoras incansáveis, movimentando-como formiguinhas em grandes percursos, parte deles já dentro da noite. E a mais nova, toda ela coragem, toda ela uma estrela riscando o céu com o seu desejo, os seus olhos pretos tão belos. E a mais velha, um rochedo, uma resistência, uma pedra atirada contra todos os muros que asfixiam. Surpreendi-me com este filme pois não tenho um particular fascínio pela Índia, ao contrário de muitos, nunca senti esse apelo de viagem. 

E vi também outro filme, o das mãos nos caracóis do rapaz. Aquele rapaz era muito semelhante ao meu primeiro amor, digo amor, não namorado. As mãos dela nos caracóis dele, um arrepio tão intenso. A boca dele, tão parecida à boca do meu primeiro amor. O amor deles, tão parecido ao nosso amor, sem sítio nem lugar onde alojar os corpos que se queriam luz. Uma memória tão adormecida, assim a acordar numa matiné. Em que lugar morre de vez o nosso passado? Ou será que nunca morre?

~CC~

sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

Quando foi que envelheci?!

 

A rotunda incorpora um lago em jeito de monumento, talvez o seu todo seja um barco, na verdade não lhe consigo descortinar o sentido, parece-me sofrível como escultura. Contudo, as gaivotas gostam, há pelo menos seis pousadas na beirinha do lago-piscina e interrogo-me sobre a sua natureza. Quando foi que deixaram de preferir o mar? Quando foi que começaram a preferir o lixo urbano aos peixinhos retirados das ondas? E, sobretudo, quando é que saíram da poética do Fernão Capelo Gaivota em que planar no vento era o verbo que nos encantava para se arrastarem quietas nos becos e nas praças?

Diz-me uma amiga que se não usar a I-A nos próximos tempos, ficarei para sempre em desacerto com o mundo e que não o posso fazer, que ainda é cedo.

E eu desacerto-me com o gosto de quem sabe que comecei a descer o plano inclinado. Ainda sonho com voos picados diretos a retirar das ondas um peixinho mais descuidado e com aquele momento do dia em que me deixo ir planando. 

Quando foi que envelheci?!

~CC~