domingo, 31 de agosto de 2025

quinta-feira, 28 de agosto de 2025

Da possibilidade de ser feliz (III)

 

Uma parte de mim ficou lá, só vou regressando lentamente.

Isso acontece-me sempre nos lugares bons, fico a saboreá-los como um rebuçado de longa duração que desembrulho para encher as células de ar feliz.

São duas aldeias muito próximas, vizinhas. E desta vez não consegui ficar na aldeia do festival de teatro, é verdadeiramente difícil, até na outra é. Achamos que as aldeias repelem os estranhos como se fossem mosquitos incómodos, mas ali não é assim, todos nos cumprimentam e acolhem. Mas é verdade que a população triplica com os familiares que chegam e fico impressionada com as pessoas que moram longe e que vão todos os anos, estejam ou não em Portugal. Há assim jovens e crianças por todo o lado, renovando amizades que só existem nesta altura do ano, mas que são um destino certo. De repente toda a aldeia não é mais do que um conjunto de primos que ora almoçam numa casa ora noutra e vemos as pessoas a circular com as sobremesas, o pão, o vinho, já que a água, essa vai-se buscar fresquinha à fonte.

Esperam por nós todas as noites para descermos ao festival, formamos o grupo e vamos e voltamos juntos e a pé. Na ida conversamos e trocamos ideias e histórias e na volta falamos sobre a peça que vimos. Há um céu imenso por cima de nós, pejado de estrelas. A sensação de felicidade é intensa, parece estar tudo bem e no lugar certo, até eu.

~CC~


terça-feira, 26 de agosto de 2025

Da dificuldade de ser feliz (I)

 

No final de julho, no cabeleireiro, um homem na casa dos quarenta proferiu uma daquelas frases que parecem saídas de algum catálogo sobre bem viver. Pois bem, disse que para ele qualquer dia de férias era melhor do que um dia de trabalho. Nova geração, pensei, muitos homens da outra sentiam vazio ou inquietude, não sabiam estar de férias, alegrou-me que ele soubesse e ri-me. Claro que ele me perguntou logo se eu  concordava, com aquele sorriso radiante que anunciava muito gin, muito aperol, muito sunset. 

Não podia dizer-lhe, por isso só sorri e abanei a cabeça, concordar poderia aumentar ainda mais aquela felicidade que já parecia inundá-lo.

No silêncio do Verão, sobretudo se está muito calor, chegam por vezes sombras. Começa como uma onda pequenina em torno de um desgosto, um sinal de desamor, uma injustiça que me foi feita, uma memória má que tanto pode ser recente como tão lá atrás que escavo, escavo para chegar até ela. E essa onda cresce, cresce... e já não é fora de mim, é cá dentro junto ao coração e não me deixa respirar. E se estou em casa as paredes parecem inclinar-se e prestes a desabar e não consigo estar em lugar nenhum, vou de espaço em espaço à procura de um lugar mas não encontro abrigo. E já não há qualquer ligação ao motivo triste que originou tal coisa, já é só a coisa, um monstro que corre atrás de mim e dentro de mim. Não consigo então fazer as coisas mais simples: comer, tomar banho, ler, ver televisão. Muito mais em casa, mas já aconteceu no cabeleireiro, no dentista, no café, na rua e até na praia. Posso colocar-lhe um nome, chamar-lhe crise de ansiedade ou de pânico, mas para que servem os nomes? Claro que tenho medicação de emergência mas ter que tomá-la deixa-me muito triste, por isso evito e tento outras soluções. Poderia talvez já ter encontrado, mas na verdade o que resulta uma vez, pode não resultar uma segunda, por isso continuo na minha busca.

Como pode tal coisa acontecer nesta estação do ano que é toda luz e brilho? Como pode isto acontecer no tempo em que é possível apanhar conchas, andar dentro do mar, comer gelados, ver crepúsculos tão tardios e belos?! Esta desarmonia desarruma-me, evidencia-me com clareza que tenho tanta facilidade em ser feliz como dificuldade. Quis dizer-vos porque dizê-lo, é talvez das únicas coisas que parece sempre resultar, com a palavra fora de mim chega pouco a pouco uma acalmia, sobretudo se ela é acolhida.

~CC~


domingo, 24 de agosto de 2025

Da possibilidade de ser feliz (II)

 

Estou a 1000m de altitude, o ar circula de forma diferente.

Em grupo eles cantam, os mais velhos têm destaque, mas procuram integrar os mais novos. Admiro até à medula o trabalho daquelas pessoas e dele, sobretudo dele. Há uma humildade, uma singeleza, uma energia tranquila, os olhos azuis muito bonitos num rosto levemente tisnado. Já deve ter sido um homem muito bonito mas conserva, creio mesmo que a idade lhe terá acrescentado mais beleza. O poema é sobre a mãe, de um autor popular, desconhecido. E ele chora, chora tanto que abandona por momentos a sala.  Poderia amar aquele homem, talvez o ame. E contudo esse amor chega-me sem desejo de possuir ou de ter, tenho a consciência de que as nossas vidas jamais se poderiam cruzar. 

Mas enche-me de felicidade achar um homem belo, admirá-lo. Em geral não acho os homens nem atraentes, nem interessantes, raramente me fascinam. Este congrega a lua e o sol em grande harmonia.

~CC~

sexta-feira, 22 de agosto de 2025

Da possibilidade de ser feliz (I)

 


A maré desceu muito, quando assim acontece e é manhã bem cedo, tenho um invulgar prazer em deixar os meus pés marcados na areia. Deixo-os na ida e na volta e fico a observá-los como quem confirma a sua existência. Hoje tive um encontro inédito e belo com um polvo bebé. Nunca me tinha acontecido. A princípio vi apenas algo a mexer-se na areia, quase tão transparente como a água. Afastei as gaivotas que rondavam para ver melhor, o polvo queria voltar à água e mexia-se devagarinho pela areia, talvez tivesse sido surpreendido pela descida súbita da maré, talvez não estivesse bem. Queria muito ajudá-lo mas não sabia como. Como pegar nele sem o magoar e sem me magoar e deixá-lo ir para que crescesse, tivesse ainda dias de algas e mergulhos. Não sabia, como podemos ser tão ignorantes. Mas ele mexia-se muito corajoso e decidido e a maré estava a subir, fiquei apenas a afastar as gaivotas, com receio que alguma o debicasse. E ele lá foi, tão transparente como a água.

~CC~