terça-feira, 30 de setembro de 2025

Não vi, vendo sempre

 


Ela está à nossa volta mas são tantas as vezes que não a vemos.

Descobri um trilho que tem um caminho de pedras por dentro da zona verde que envolve o meu local de trabalho. Nesse caminho descobri charcos de água com juncos, inúmeros arbustos carregados de frutos incomestíveis mas belos, flores que sobraram do Verão, gralhas enormes que a todo o momento pousavam à nossa frente e cruzou o nosso caminho um pica pau lindíssimo de longa cauda. Apanhámos medronhos e comemos, um mês a quinze dias antes estariam maravilhosos, os arbustos estavam carregados e eles tinham já secado um pouco. Apanhei alecrim para os temperos. Há abelhas por todo o lado e nem nos ligam, centradas nas flores, até lhes perco o medo. Os múltiplos formatos dos sobreiros, enormes e majestosos, são um oásis para a vista. Também se luta e muito contra os mosquitos, por baixo dos sobreiros entramos no seu amado território. 

Mas estava tudo ali? Esteve sempre? Nunca vi, vendo sempre.

Quando os levar por este trilho, a ver o que estando ali nunca viram, vou saber se como eu se derretem na eco poética ou se lamentam, invocando o conforto da sala (e o telemóvel de uso livre por aqui) ou se dispõem a ver. É com estas coisas que todos os anos perco alguns para sempre, este ano quando começar a chuva e lhes disser que tragam capas e galochas para irmos pelo verde que mora na cidade, talvez me abeire de algum desastre, todos os anos fico perto. Arrisco saber se vão gostar de andar de olhos abertos, há também sempre quem goste ou quem aceite abri-los, mesmo que nunca o tenha feito. 

Sem desafio, tenho dificuldade de existir e ser.

~CC~



domingo, 28 de setembro de 2025

Musiquinha de Domingo (I)

 

Esperança, faixa 13

A ouvir, para além do single que passa na rádio.

Mais um presente bom, obrigada, lá estaremos.

~CC~




sexta-feira, 26 de setembro de 2025

O dia perfeito (II)

 

Entendi muito melhor José Saramago depois do Roteiro Literário sobre o Levantado do Chão. Um livro que nasce da escuta de um território, da capacidade do autor para ir entender o mundo a partir de uma terra tórrida e sofrida, vasculhando a memória de quem trabalhava de sol a sol para pouco comer. Tudo no livro é construído a partir das verdades vertidas em documentos que recolheu minuciosamente e todos os personagens são a sombra dos que realmente existiram. O mapeamento preciso dos lugares que ainda hoje são distantes uns dos outros mergulhou-me num percurso que demorava dias a fazer-se de carroça com mulher e filhos, de praça em praça de jorna, em busca do trabalho agrícola. E há agora novas praças de jorna, se Saramago soubesse...

Duas notas muito comoventes.

Uma das personagens do roteiro é uma mulher já idosa que se dispôs a falar sobre aqueles tempos idos, tão duros e amargos. E conta-os tão bem que todos se calam para a ouvir. Agora, dada a idade, já aparece pouco, por isso é o guia que nos conta a história. Diz-nos que os netos, vendo tanta gente de roda da avó, quando chegaram a casa perguntaram o que estavam ali a fazer aquelas pessoas estranhas e do que estava ela a falar, ao que ela respondeu: estava a contar-lhes as histórias que vocês não querem ouvir, de como era antigamente. E os netos, pela primeira vez, lhe pediram que também lhes contasse essas histórias e ficaram a ouvi-la, deixando-a feliz. 

Há no livro Levantado do Chão um menino com 10 anos que vai pela primeira vez à escola, é ele o primeiro a fazê-lo naquela família. E estamos ali, em frente à escola em que isso aconteceu. É ele que depois escreve a história da família, aquela em que Saramago se inspirou. Se todas as crianças pudessem perceber a maravilha do que é poder ir à escola.



Estou ali e apetece-me ficar ali à espera que as crianças cheguem e entrar com elas na sala de aula, como fazia na primeira escola em que dei aulas, há mais de trinta anos. Tive tanto medo de começar e, no entanto, foi tão bom. Nunca mais esqueci o aroma das rosas que os meninos me levavam.

~CC~


segunda-feira, 22 de setembro de 2025

Os relógios

 

Tenho saudades tuas mãe.

A tua voz hoje ao telefone, esse carinho que tão tarde chegou à minha vida, mas ainda a tempo, afinal o amor nunca chega tarde, vem sempre dentro da luz e ela é imune ao batimento dentro dos relógios. 

~CC~

domingo, 21 de setembro de 2025

O dia perfeito (I)

 

Um dia perfeito pode começar extremamente imperfeito. Engolir a minha refeição preferida num ápice e colocar o despertador para as 6h30m da manhã. 

E depois o dia endireita-se devagarinho rumo à perfeição e só no dia seguinte sabemos, quando acordamos com o corpo moído de cansaço, que foi afinal um dia perfeito. Tento moderar as minhas expectativas sobre as coisas, aprendi a aligeirar a fasquia depositada em cursos, conferências, viagens, passeios, restaurantes, espectáculos, livros, programas culturais. E se quero ir e não há vaga ou não me escolhem, isso também já não me gera grande sofrimento. Que tal não passe por falta de empenho ou paixão, talvez seja antes a camada protectora que coloquei sobre a pele sensível que toda a vida tive, sensível em excesso. O sol assim queima menos. Primeiro não podia ir pois tinha outros compromissos, depois não havia vaga, e por fim alguém ligou a dizer que podia ir mas não havia lugar para almoçar a maravilhosa degustação alentejana, declinei dizendo esperar outro dia, outra hipótese. E afinal tudo se encaixou, tudo se abriu como aquele céu azul depois da chuva.

Os nomes dados às coisas são tão piores que as coisas. Não gosto especialmente da designação Turismo Literário. Mas é só um nome, também aprendi que os nomes não dizem tudo. E se uma coisa é moda não corras atrás, pode ser gato por lebre. Mas não fujas também só por ser moda, pode ser uma boa moda, um rasgo que se abre num caminho ainda por fazer. Estou assim, tornei-me assim, alguém que ainda pensa três vezes para fazer uma coisa, mas não põe de lado um primeiro impulso, uma vontade, deixa que se aloje e segue. E sobretudo alguém que não põe o medo à frente da maior parte das coisas, que só o deixa vencer algumas vezes, não todas as vezes.

Ontem não venceu, até regressei de noite pela estrada do acidente horrível. Antes tentei vir pela auto-estrada mas era um desvio tão evidente e ainda por cima pago. Claro que no sitio exacto, a memória chegou e agarrei o volante e tremi um pouco, contei à pessoa que vinha ao meu lado que tinha sido ali, exactamente ali. Mas a noite estava clara e não chovia a cântaros. 

Juntar livros e paisagens, deixar que as histórias nasçam das pedras e dos lugares, é bonito, não é? Talvez volte para vos contar.

~CC~





quarta-feira, 17 de setembro de 2025

Com os dedos no papel

 Ainda preciso do toque, do cheiro, do som da folha quando a deixo para trás e passo à seguinte. Li apenas dois livros estas férias, nas antípodas um do outro. Humanos exemplares é de uma jovem brasileira, praticamente desconhecida entre nós. Comoveu-me muito por falar de dois professores que faziam da escola casa e família, uma escola pequeno mundo de afectos que já não existe mais. E pelo modo como o seu amor resiste e se transforma atravessando toda a ditadura brasileira. Eram mesmo Humanos exemplares, só no fim o título me fez sentido. Quanto ao grande Clássico " O idiota" é tão actual como absolutamente distante e datado, consegue a proeza dessa intemporalidade ao mesmo tempo que nos traz uma Rússia para sempre perdida. Intemporais são os defeitos e as virtudes dos seres humanos, nunca verdadeiramente transformados para melhor. 

Mas não ganhei uma rotina de leitura como gostaria, o que me faz duvidar do objectivo de ler um livro por mês. E em casa é onde menos leio, prefiro o café, o jardim, a praia, lugares que o Outono ameaça e o Inverno ainda mais. 

Ainda assim, sei que estou bem com os dedos no papel, ainda viajo.

~CC~


sábado, 13 de setembro de 2025

No escurinho do cinema

 

Em Setembro, voltamos ao cinema, não a um qualquer, ao nosso cinema. Felizmente não preciso de ir a um cinema sem porta para a rua. Contudo, fui hesitante. Prometia uma distopia, um filme que anunciava um futuro. Não é coisa que me anime muito. Mas o Último azul surpreendeu-me.

É uma sociedade que coloca os seus velhos sob tutela dos filhos e do Estado, para não estorvarem. Há uma data obrigatória de reforma e um destino de internamento num local vigiado e controlado, com as necessidades básicas supridas de forma igual para todos, como se todos fossem iguais. Até aqui, achamos que já conhecemos uma história assim, em que se tentam expurgar da comunidade todos os que, de alguma forma, fogem à norma.

Contudo, os atores, melhor, as atrizes ou ainda melhor, aquela atriz. Mulher mansa mas determinada, com um grito rouco e um indomável gosto pela liberdade. Corpos de velhas que se mostram sem retoques, sem medo, sem beleza e sem pudor. E até ficam belos pois integram-se naquela natureza exuberante e intensa do Brasil profundo.

Aquele barco deslizando rio acima é um farol de esperança, também eu gostaria de conduzir assim um na minha velhice, afinal ela que sempre quis voar acaba a deslizar na água, espelho que mostra o sol e a lua em todas as suas nuances. Mulher tão forte, tão arrojada, tão louca... e é a sua loucura que é a sua saudável salvação.

~CC~



segunda-feira, 8 de setembro de 2025

Lugares casa (último)

 

Cheira intensamente a mar e ouve-se muito o som das ondas, fortes, batidas contra a areia. Do outro lado corre a ribeira e o triângulo de areia recorta-se ali, ainda assim um vasto areal, entre a procura do doce ou do salgado, do selvagem ou do tranquilo, viaja-se na própria vida, feita também destes cambiantes.

Contei apenas catorze casas alojadas na falésia, duas ruas, uma muito íngreme e a outra um pouco menos. Tornou-se famosa sim, não é desconhecida, mas mantém-se praticamente inalterada há mais de vinte anos. Foi casa uma temporada de férias apenas, há já muitos anos e depois só voltei pontualmente. Mas não é o mesmo ir à praia do que estar na praia. Acordar e espreitar como está o sol, o vento, o céu, o lado do rio e o lado do mar, sentir a humidade da manhã, o cheiro a iodo, ver o areal apenas habitado pelas gaivotas ao início e ao final de cada dia. Durante dois períodos de férias não conduzi entre o dia de chegar e o dia de partir, apenas caminhei e fiquei, isso fez-me muito bem.

Num lugar tão belo não é preciso imaginar muito, o bar é apenas o bar da praia e a esplanada a esplanada do mar e mais adiante é o bar da ponta branca porque é o nome do rochedo em frente. Não há conchas, mas o mar traz muitos e muitos seixos de vários tamanhos e formas, ficam espalhados na maré baixa e isso baptizou a própria praia.

O ritual do pôr do sol mantém-se igual, parados, em silêncio, comovidos, um brinde com alguma bebida alcoólica a estarmos vivos mais um dia sobre a terra (isto foi o que A disse e todos concordámos).

Foi casa, foi o final das férias e o regresso à casa abrigo de sempre. Por momentos apetece-me chorar, não há melancolia maior do que a de Setembro. 

~CC~





sábado, 6 de setembro de 2025

Dessa tristeza que nos gela e nos indigna

 

Aconteceu numa manhã na serra de Montemuro, lugar de ser feliz. A manhã acordou cinzenta, estendi a mão e vi as cinzas muito lentamente a cobri-la, depois peguei nos bocadinhos de cinza e desfiz entre os dedos e eles ficaram negros. E o fogo andava longe, a mais de 30km. Essa cortina de cinza encheu-me de silêncio, que todo o centro do país possa arder assim é uma coisa que indigna. Mas as pessoas em comunidade falam e a fala traz o alívio do que é partilhado, pesa menos.

E assim foi também naquele fim de tarde, naquela praia bela, ainda com aquele recorte selvagem, aquelas ondas grandes e altas que os surfistas procuram domar, a cada 5 minutos o apito que não nos deixa entrar na água para além da meia perna. Foi assim que Lisboa chegou, esse lugar icónico, igualmente bonito, a tornar-se lugar de tristeza e de morte. Há sítios que pertencem a todos, mesmo que agora já não sejam iguais a antes, quando a nossa Lisboa ainda não era este destino tão massificado. E a tristeza ficou assim naquele gélido silêncio com que o que é incompreensível nos chega e nos aterroriza. Felizmente não estava ali sozinha, quando acompanhados de quem se gosta muito, a partilha do que se sabe e não se sabe, do que nos junta e nos revolta, traz algum alívio. De resto sabemos quanto a nossa dor é apenas ínfima se comparada com a daqueles que são realmente afectados, quando neles penso estremeço um pouco e espero que haja alguém que os possa abraçar e confortar. Não me inclino para respostas fáceis nem para impulsos justiceiros, revolta-me tanto os rios de tinta e horas e horas de comentário político sobre o assunto como qualquer silêncio que se faz ou venha a fazer-se.

E o que mais indigna é que tanto conhecimento gerado no mundo não seja capaz de mudar o que realmente importa.

~CC~



quarta-feira, 3 de setembro de 2025

Lugares casa (II)

Procurar fazer casa onde é possível fazê-la porque tratar por tu um lugar é algo que desde sempre procurei, como quem traça abrigos no mapa do país. Não pensava voltar assim tantas vezes ao Barlavento, era lugar distante desde os tempos da casa da colina em Lagos onde um dia até imaginei viver.

Pessoas que partilham as suas casas de férias são equivalentes às que antes se sentavam a partilhar o pão. O Algarve está caríssimo para a grande maioria dos Portugueses e fico atónita  com os preços de praticamente tudo. Até onde iremos?! Já o rapaz de tez morena e turbante que grelha o peixe (sim, até está atividade) com sorte ganhará o ordenado mínimo.

Claro que sou como todos os outros, pousados os olhos na beleza das enseadas e falésias esqueço-me dos males do mundo e o peito enche-se de sal e ganho sorrisos que coloco em armazém para dias cinzentos.

*CC*