Entendi muito melhor José Saramago depois do Roteiro Literário sobre o Levantado do Chão. Um livro que nasce da escuta de um território, da capacidade do autor para ir entender o mundo a partir de uma terra tórrida e sofrida, vasculhando a memória de quem trabalhava de sol a sol para pouco comer. Tudo no livro é construído a partir das verdades vertidas em documentos que recolheu minuciosamente e todos os personagens são a sombra dos que realmente existiram. O mapeamento preciso dos lugares que ainda hoje são distantes uns dos outros mergulhou-me num percurso que demorava dias a fazer-se de carroça com mulher e filhos, de praça em praça de jorna, em busca do trabalho agrícola. E há agora novas praças de jorna, se Saramago soubesse...
Duas notas muito comoventes.
Uma das personagens do roteiro é uma mulher já idosa que se dispôs a falar sobre aqueles tempos idos, tão duros e amargos. E conta-os tão bem que todos se calam para a ouvir. Agora, dada a idade, já aparece pouco, por isso é o guia que nos conta a história. Diz-nos que os netos, vendo tanta gente de roda da avó, quando chegaram a casa perguntaram o que estavam ali a fazer aquelas pessoas estranhas e do que estava ela a falar, ao que ela respondeu: estava a contar-lhes as histórias que vocês não querem ouvir, de como era antigamente. E os netos, pela primeira vez, lhe pediram que também lhes contasse essas histórias e ficaram a ouvi-la, deixando-a feliz.
Há no livro Levantado do Chão um menino com 10 anos que vai pela primeira vez à escola, é ele o primeiro a fazê-lo naquela família. E estamos ali, em frente à escola em que isso aconteceu. É ele que depois escreve a história da família, aquela em que Saramago se inspirou. Se todas as crianças pudessem perceber a maravilha do que é poder ir à escola.
Estou ali e apetece-me ficar ali à espera que as crianças cheguem e entrar com elas na sala de aula, como fazia na primeira escola em que dei aulas, há mais de trinta anos. Tive tanto medo de começar e, no entanto, foi tão bom. Nunca mais esqueci o aroma das rosas que os meninos me levavam.
~CC~
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