quinta-feira, 31 de março de 2022

Quantofrenia

 

Ela veio comigo até ao carro, bem bonito estava, lavadinho, parecia novo após a inspecção e os seus estafados oito anos de vida.

E disse em voz baixa: vai receber o questionário de satisfação, já sabe a escala vai até dez. Mas só pode preencher o 9 ou o 10. A principio nem percebi, mas depois ri-me. Mas ela falava mesmo a sério: e depois virá o telefonema da oficina e já sabe, é a mesma coisa. E digo-lhe uma coisa, se quiser dar oito, não atenda. Aí fiquei incrédula, será que despedem os que têm menos que 8?

E depois de muita insistência, lá atendi a oficina, a conversa a mesma, mas agora com 4 questões e a dita escala. Por mim tudo bem, 10 a tudo. Do outro lado, a mesma ansiedade: por favor, no questionário responda igual. Eu já nem queria acreditar,  disse-lhe que se fosse para ela fazer uma viagem de férias até ao Índico, dava 11 a tudo...mas creio que já não me ouviu, também deve haver um cronómetro a medir cada telefonema. 

Mas há alguém que acredite e se guie por esta maldita quantofrenia que tudo invadiu? Como viver neste mundo de "likes"? Eu já não sei. Tenho tantas saudades do quintal da minha infância, com terra, bolas de sabão feitas com canas de mamoeiro, flores com cola natural que pendurava no nariz, tudo a passar pelos meus cinco sentidos.

~CC~




4 comentários:

  1. O mundo foi invadido por nós e pela nossa estuporada forma de tudo medir e quantificar. O que sempre foi quantificável e o que não, o que era apenas qualificável tornou-se quantidade. E a quantidade "virou" elemento chave do sucesso. Pior, exige-se nota máxima, a mediania deixou de servir. Seremos todos excelentes? Nem por isso; julgo mesmo que perdemos capacidades e brio profissional, correr atrás de números não nos faz melhores, mascara-nos, isso sim. Mas este é o mundo em que vivemos e a que necessitamos adaptar-nos. Não foi o que nos ensinaram, talvez não seja o que desejamos. É o que existe, e a existência tem muita força.
    Contudo, dentro de cada um de nós mora a criança que fomos, nunca a perdermos de vista é o grande desafio. Não voltamos lá, à infância (quereríamos?), mas usamos esse lado de crença, infantil, curioso e inocente como antídoto - quase sem números. É uma questão de sobrevivência. Mais fácil a uns que a outros. Mas em tudo há gradação, não é mesmo? E, quem sabe, influenciemos alguém a virar-se para o lado qualitativo da vida e a contar também com ele.
    Bom dia, CC.

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    1. Tanto trabalho a criar estes algoritmos para afinal isto ser uma realidade absolutamente falseada, será que não se apercebem disso? Isto que se aplica a uma oficina, também se aplica a um restaurante ou à avaliação de uma carreira. Há que lutar...mas às vezes só me apetece mesmo assobiar para o lado, desistir.
      ~CC~

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  2. infelizmente é o que somos, números! despidos da nossa humanidade, dos sentidos, das fraquezas, realizamos tarefas como máquinas... engraçado, como nunca previ isto

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    1. Pois é Manel, nem tudo consegue prever-se, nem mesmo um Deus do bom (mau) tempo:). Bom vê-lo por cá.
      ~CC~

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