domingo, 21 de fevereiro de 2021

Solidão, solidões...

 

Lendo a crónica de Alberto Manguel sobre o confinamento, detive-me num pormenor que me fez lembrar também a minha adolescência. Ele diz que aos seis anos, em Paris, atirou pela janela alguns dos bonitos e caros vestidos da mãe.  Tinha crescido entregue aos cuidados da ama,  raramente vendo a mãe, mulher de embaixador e dedicada às obrigações que então ditava a carreira diplomática do marido, o que implicava vestir-se e maquilhar-se a preceito para brilhar nos muitos eventos em que tinha que comparecer. Fez-me pensar na solidão dos ricos e de como ela é tão diferente da solidão dos pobres.

Morei durante toda a adolescência e já no início da idade adulta numa das mais afamadas urbanizações de gente rica da periferia de Lisboa, na altura considerada inovadora em termos urbanísticos, talvez pela dimensão em altura dos prédios e do número de assoalhadas dos apartamentos. Eu morava na única rua dos pobres, a maior parte retornados, tinham ocupado as casas nos idos anos de 1975 e 1976. A minha rua dava por si só um romance. O contraste entre a minha vida e a de algumas das minhas amigas de outras ruas dessa urbanização era gritante. Uma delas tinha uma mãe que nunca acordava antes do meio dia, a empregada que entrava em casa às 8h tinha ordem para até essa hora o silêncio ser a regra, a mãe deitava-se tarde, não raro recebia amigos e a rotina da empregada começava por limpar os cinzeiros com beatas e os copos de uísque. A mãe não trabalhava porque não precisava e era uma mulher culta, mas o seu interesse pelas filhas resumia-se a que soubessem falar línguas, coisa que as obrigada amiúde a praticar à hora do almoço e a um questionário cerrado sobre as classificações escolares. O pai sumia-se em infinitas viagens, trabalhava muito e era bastante ausente, apesar de muito simpático. A solidão daquelas miúdas numa casa cheia e com uma mãe em casa era bastante estranha para mim, mas podia senti-la, uma espécie de revolta que a mais velha (e a minha amiga) acalentava, aproveitando para tecer aqui e ali um desafio, coisas que sabia não serem aceites na classe social a que pertencia (acho que  foi a primeira a quem vi calças de ganga rotas).

Se me deparo muito com a solidão dos mais pobres, até em termos profissionais, sei que a solidão atravessa todas as classes sociais, mas a sua espessura e os seus contornos são tão diferentes que parece que o seu plural é mais certo que o seu singular.

E no entanto é ainda solidão o que une o Manguel, um menino de seis anos, filho de embaixadores, ao cuidado de uma ama, com aquele menino, da mesma idade, que numa escola do Seixal acordava numa casa vazia e de tudo cuidava sozinho, até da irmã que ia para a creche, pois a mãe saia de madrugada para limpar escritórios em Lisboa, antes da entrada dos funcionários.

Gostaria de escrever um ensaio sobre a solidão, perdão, solidões (mas que mal fica a palavra no plural).

~CC~




6 comentários:

  1. São solidões efectivamente. A grande diferença que lhes noto é que, na dos pobres, em certos casos (por exemplo o dessa criança do Seixal), a raiva aos adultos não se cria, há antes uma compreensão amorosa acerca do que é necessário fazer para sustentar uma família e um carinho especial por quem tanto se sacrifica; por vezes assiste-se mesmo a forte união familiar. No caso dos pobres meninos ricos, creio que a raiva recai sobre os progenitores que, tendo todas as condições, abdicam da assistência e amor que devem filhos em prol da vida social. Daí a procura do escândalo, do choque e ofensa deliberada.
    Mas, se a CC escrever o ensaio, decerto dilucida nuances que escapam a um comentário. Nuances e não só.
    Boa tarde.

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    1. Bea, tem em parte razão, mas nem sempre os pobres ilibam os progenitores por esse legado e nem sempre a palavra "abdicar" combina com os ricos, eles não abdicam primeiro por não o entenderem assim (desde sempre que as amas fazem parte de um ritual de classe) e, por vezes, também não o podem mesmo fazer. Ou seja, o ensaio é complexo, logo vou desistir:)
      ~CC~

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  2. Onde leu essa crónica CC?
    Gosto muito do Manguel, tenho alguns livros dele, e ainda gostaria de ler mais.
    Escreva esse ensaio sobre as solidões, CC, é isso mesmo que são: solidões, pois não há duas iguais, semelhantes talvez, mas nunca iguais.
    Cada homem (em sentido lato) é ele e a sua circunstância e situações idênticas podem gerar pessoas muito diferentes, com solidões e comportamentos diversos, não podemos generalizar.

    Um bom resto de domingo.
    🌿🌼

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    1. Maria, já seguiu o código que permite a leitura:)
      Já viu com uma página para cada solidão quantas páginas teria o ensaio? Creio que já não vou a tempo:)
      Bom resto de semana
      ~CC~

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  3. O tema da solidão que aborda, dava pano para mangas, mas a CC teve a preocupação de o delimitar à infância, e mais precisamente à solidão directa ou indiretamente infligida pelos pais.
    Os dois primeiros comentários dizem muito e bem sobre o problema, um diferenciando a situação entre famílias ricas e pobres, o outro chamando a atenção para as particularidades do sentir de cada pessoa e das circunstâncias que a envolvem.
    Não há que ter medo das palavras. Não há como fugir, estas crianças, que sofrem as consequências negativas dos actos dos próprios pais, são vítimas psicológicas dos comportamentos dos progenitores, em especial nas famílias ricas que descreve; os meninos pobres sofrem mais o sacrifício do trabalho a que este obriga.
    Contudo, a APAV não as considera vítimas no stricto sensu da violência doméstica. Deveriam ser? Cada época e cada sociedade tem as leis de acordo com o seu estado de evolução. Poderíamos dar a estes infelizes alguma proteção jurídica, para além da censura moral e da mera reprovação de cada caso que vamos conhecendo? Será admissível haver denúncias de casos deste tipo (não vejo outra maneira) ou parece-lhe exagerado e descabido e um atentado à liberdade de cada um, fazer o Direito entrar na esfera pessoal das famílias?
    Ou deixar tudo na mesma à espera que as mentalidades mudem? Possivelmente o homem chega a Marte primeiro...
    São perguntas que se calhar merecem algum debate e muito possivelmente a CC já tem uma resposta em mente, no âmbito do seu projeto de ensaio.
    Até lá, boa tarde e fique bem.

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  4. Desde sempre que é solidão da infância a que mais me interessa, penso que é defeito de fabrico, perdão, de formação:)
    A junção entre a Psicologia e o Direito é complexa, parece-me...e estando eu muito mais do lado da primeira do que da segunda tenho uma certa deformação de olhar, para mim compreender vem sempre primeiro que legislar e punir. Se, no entanto, tudo isto merece debate? Certamente sim.
    Resto de boa semana Joaquim.
    ~CC~

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