quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

Advento (XVIII)

 

Não sei como absorvi tanta cultura judaico-cristã sem ter tido uma educação familiar consonante. A verdade é que o misticismo do meu pai foi talvez o factor preponderante antes de eu ter conseguido desconstruí-lo. Passei grande parte da minha vida a tentar ser o que comumente se chama "boa pessoa". Isso incluía grandes doses de generosidade, compreensão e compaixão. Andei perto do "dar a outra face". Custava-me compreender que alguém pudesse não gostar de mim sem nada ter eu feito que o justificasse. Demorei até conseguir perceber bem o verbo reciprocidade e mais ainda a exigir do outro o que eu sabia que dava. Enjoei de mim própria como pessoa boazinha. Só me arrependo disso não ter acontecido mais cedo. 

Esta semana tive a prova da minha cura.

No banco, uma fila enorme, muito tempo de espera. Ajudei uma série de pessoas mais idosas, é incrível como não há ninguém a apoiá-los, assim como duas cadeiras, apenas duas. Sentei uma senhora que coxeava numa cadeira do pessoal do guichet, já que havia cinco e apenas dois estavam a funcionar.  Tenho gosto nisso. Contudo, um dos senhores, também já idoso, culpava os emigrantes da longa espera, entupiam tudo, até os bancos. Não percebi a relação, até porque havia apenas duas mulheres brasileiras que tinham chegado depois dele. A sua retórica, curta e primária, era a que adivinham e rapidamente passou do banco para a saúde e para a educação, segundo ele, não deviam ter direito a nada. Fiz um esforço para não lhe responder. Pouco tempo depois veio perguntar-me qual era a minha senha, por acaso um número antes da dele. Perguntou-me se não me importava que fosse atendido antes de mim pois tinha muita pressa. Importo-me sim, disse eu, e não dei mais nenhuma explicação. Mostrou-me o cartão multibanco que estava danificado e seria simples, eu disse-lhe que o meu assunto era exactamente o mesmo (e era), por isso também seria simples. Chamem-me má pessoa se quiserem.

~CC~



4 comentários:

  1. Bolas, tenho que começar a ser bonzinho.
    Por mim, tinha-o mandado imigrar para França. Temos por lá uns bons apoiantes de imigrantes portugueses (claro que antes lhe tinha roubado a senha e ia para último).
    Fartinho desses discursos, fartinho de haver portugueses de primeira e de segunda...que triste

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    1. Ah, ah...realmente não fui tão longe. Logo nós, um povo que saiu para tantas partes partes do mundo...

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  2. Há alturas em que não temos vontade de ceder.
    Bom Natal, que lhe calhe a parte de Felicidade a que tem direito.

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    1. Obrigada! É preciso ir atrás dela...agarrá-la, nem que seja por momentos, para nos inebriarmos um pouco.

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