sexta-feira, 20 de março de 2020

De como vivo



Os dias enrolam-se para mim muito rapidamente uns nos outros. Terça feira foi aquele dia em que saí só de carro para constatar que a minha roupa tinha ficado na engomadoria e que estava fechada, não podia assim recuperá-la. Pensei na falta que me fariam aqueles três pares de calças, dos que mais gosto. E o vestido. Para depois me rir de mim mesma pois certamente nos próximos tempos iria precisar de muito pouca roupa. Pela primeira vez a cidade pareceu-me vazia, já que no último fim de semana as esplanadas ainda estavam consideravelmente cheias de gente a almoçar peixe assado e choco frito. Talvez se despedissem, não quero criticá-los. Criticamos demais o que os outros fazem. Eu já não era capaz de o fazer, por mais que tivesse vontade, havia o alarme cá dentro, o medo já tinha ocupado o seu lugar de protecção.

Pela primeira vez olhando o estuário azul, tão tranquilo, com o sol a bater na água, pareceu-me tudo absurdo e surreal. E pela primeira vez as lágrimas chegaram, ou o desejo delas. Depois lembrei-me, na tentativa de reacção à tristeza de que já tinha vivido momentos muito piores. Lembrei-me ainda que há gente em todo o mundo a sofrer horrores, sem casa, sem conforto, com medo, longe da família. Tentei colocar-me no lugar daquelas crianças que estão sozinhas num campo de refugiados e que ainda assim são capazes de rir. Engoli as malditas lágrimas. E pensei, afinal o dia está mesmo bonito, este céu azul tingido de nuvens brancas é de uma beleza.

E quando cheguei a casa pensei que viveria muitos mais momentos destes, em que o desespero parece querer ganhar espaço para depois o afundar na energia que há em mim. E na consciência do mundo, ele não existe para nós nem à nossa medida, o nosso sofrimento é afinal pequeno no imenso sofrimento que o mundo contém.

~CC~


7 comentários:

  1. Não há como não ter medo mas, não podemos deixar que ele fique maior que nós. Vamos tomar os cuidados possíveis, e esperar, outra coisa não podemos fazer.

    Bom dia, com saúde

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    1. Ainda não é maior do que eu e eu não sou muito grande:)
      Obrigada noname!

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  2. Vamos lá a ver, medo, mesmo medo, aquela coisa que assusta e nos faz fugir em espontaneidade do gesto, acho que não tenho. O meu medo é apenas cautela. E muito instada e instilada por terceiros que me conhecem e sabem o quanto sou temerária e distraída de cuidados comigo. Que me proíbem como se fora criança. Sou-lhes grata cumprindo as ordens:).
    E também deixei os óculos de sol num lugar a que não posso voltar agora. Pensar que dei pela falta mal cheguei à rua mas ajuizei, "deixá-lo, levo-os para a semana". Tem o seu quê de bom, ando com uns mais ou menos estrambólicos que encontrei em casa e devo ter comprado não sei para quê, mas pode ter sido para levar à praia e é uma mudança. Viva! O mau é que não são graduados. Na praia não preciso muito de ver, é mais espapaçar ao sol a pensar vagamente que sou a mulher mais sortuda do universo por ter assim um lugar de toda a pele contente - a pele e o resto -, numa bonomia reverente que desconta até a areia invasora que só os pés festejam. E que isto se renove em cada ano é coisa que nem sei se mereço.
    Mas pronto. É de viver. E quando morrer, tal como Sophia, hei-de voltar. Mas volto para ficar. Fico por lá, pairando no sal das ondas que desmaiam, na vibração tremente do ar marítimo, no espelho azul esverdeado da água.
    E sim, há gente que sofre a sério pelo mundo todo. Os que choram os seus mortos; os que morrem a sós com o covid indesejado e mortal; os que estão infectados e lutam contra ele; os profissionais que os assistem correndo risco de contágio, que não têm mãos a medir e a quem são colocados dilemas exigindo resposta célere; as crianças, tantas, com a infância pela metade. E tantos, tantos outros.
    Boa tarde CC:)

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    1. "E quando morrer, tal como Sophia, hei-de voltar. Mas volto para ficar. Fico por lá, pairando no sal das ondas que desmaiam, na vibração tremente do ar marítimo, no espelho azul esverdeado da água."
      Puxa Bea, pôs-me a chorar. Assim não vale...

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    2. Ah, ah...Bea, ao Joaquim a chorar e a mim a rir, a imaginá-la com os tais óculos estrambólicos (adoro a palavra, não obstante o sr. google não a reconhecer).

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  3. Olhe CC, estou com a cabeça e o ânimo arrasados. Então não é que me deu para pegar na folha de Excel e registar diariamente os dados do covid em Itália, Espanha e Portugal e fazer gráficos e projeções... :(
    Que raio de forma de passar o tempo!

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    1. Realmente Joaquim...não tem aí uma varanda e umas sementes? É o que vou fazer agora:)
      ~CC~

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