segunda-feira, 29 de abril de 2024

Aqui na terra

 

É verdade que a Primavera arrefeceu toda a vontade de mar. Mas deixou-me os mergulhos no verde. Que belos se oferecem os campos na sua imensidão de cor e que estonteante ficou o céu raiado de ora branco, ora cinzento, ora azul. Às vezes chove e cheira a terra molhada, ela pulsa, respira e absorve. Pouco a pouco tudo desligo-me das amarras e é como se pudesse finalmente descansar. E tanto que preciso de descansar, o corpo pede, mas a cabeça pede ainda mais.

Não há renovação se não sairmos do mesmo lugar, se não partirmos de quando em quando das casas que habitamos, esses lugares que são casulos e nos guardam e protegem, são também os lugares que nos criam as rotinas, os vícios, nos prendem às obrigações. Nem é de viajar que se trata, não é esse frenesim que de tudo tomou conta como se não houvesse lugar que não pudéssemos conhecer à face da terra. Para mim é apenas olhar-me noutros espelhos, contemplar o céu de um outro prisma, reparar que as borboletas têm outro voar e a vegetação muda. Com a distância o que dói e incomoda, dói sempre menos, seja qual o quadrante do corpo em que a dor se situa, nem todas se instalam dentro de nós como incuráveis.

Pausa é pousar ao de leve numa das cores do arco-íris e sentir a bênção do silêncio que habita a noite.

~CC~


quarta-feira, 24 de abril de 2024

Somos Livres

 



Todos têm uma canção. Esta foi das primeiras que aprendi e liguei a Abril. É boa de trautear e popular. E era das que a minha mãe cantava.

Todos têm uma palavra amada, estimada, guardada como um tesouro.

Gosto mesmo da palavra liberdade, gosto ainda mais da minha liberdade, estimo-a, pratico-a, sinto-a. Ao longo da vida senti as pequenas ameaças. Mas agora parecem crescer, já não em torno de mim, mas em torno de todos nós.

Por isso o cravo do LD tocou-me.

 Biblioteca de Palmela


E que bonito isto.

Descemos amanhã a avenida?!

retirado daqui: https://www.tndm.pt/pt/odisseia-nacional/pecas/25-de-abril-de-1974/


~CC~


segunda-feira, 22 de abril de 2024

A minha poesia

 

Aquele sorriso, ano e meio a trabalharmos juntas. Um 19 bem merecido. E atrás dessa classificação miúdos que viram tanta coisa no quadro da Guernica, que discutiram o que era a guerra, que encontraram espaço para falar da Ucrânia e da Rússia, coisas que só superficialmente lhes entram em casa e sobre as quais ninguém fala com eles. O trabalho final da tese tem lá dentro tudo isso. 

Dizem-me que trabalho muito. Senti-o as vezes sem conta como uma crítica. E muitas vezes não soube o que responder. 

Mas hoje ocorre-me dizer que formo pessoas para formarem outras pessoas e que empregar muito do meu tempo nisso não é certamente uma coisa negativa, bem pelo contrário, é essa a minha obra. Do registo disso pouco haverá, pouco se dirá, pouco se escreverá. Mas pouco importa, é a minha poesia.

~CC~


domingo, 21 de abril de 2024

Não me quero perder


 Caldas da Rainha, Portugal


A maior parte das pessoas tem medo do seu envelhecer externo, dos cabelos brancos, das rugas, das pregas por baixo dos braços e em torno dos lábios, de tudo o que significa a decadência do corpo. Nessa matéria, a diminuição da mobilidade é o que me assusta mais.

Mas o que me assusta mesmo é o que vejo acontecer por dentro das pessoas. Um envelhecer feito de desatenção ao outro, um excessivo centralismo nas necessidades do próprio, a diminuição da empatia e da consideração pelo que os outros sentem ou fazem. Por outro lado, quando o analiso, parece-me que provavelmente essas pessoas sempre foram assim e essas características só se acentuaram com a idade. Mas acentuaram-se, de repente apenas eles estão no centro do mundo e torna-se difícil dizer-lhes que existimos por dentro da carne, temos sangue, suor, lágrimas, vidas muito cheias de tudo, tão cheias de coisas que lhes poderíamos contar, caso nos pudessem ouvir. Mas já não querem, isto se algumas vez quiseram. Vou buscar às vezes algo para lhes dar ao cerne da bondade que me habita, mas como não sou só bondade, às vezes não consigo.

Gostava de envelhecer atenta aos outros e às suas necessidades, com capacidade de escuta activa. Ontem vi um bebé que não devia ter mais de dois meses e estava ao meu lado num evento público, ao colo da sua cuidadora (a mãe estava em palco) todo ele era desejo de relação, ele sorria, olhava atento e tentava chamar a nossa atenção. Uma maravilha de ser humano na pequenez da sua existência. Onde nos perdemos? Não me quero perder.

~CC~



quinta-feira, 18 de abril de 2024

Todos juntos no palco do teatro

 


Houve partes muito difíceis, fechei os olhos e apetecia-me tapar os ouvidos. Os relatos da tortura nas prisões da pide causaram-me mal estar, enjoo. Nas partes mais arrepiantes duvidei mesmo que pudesse ser assim. Mas no final a encenadora (Teresa Sobral) chamou-os, os que prestaram depoimentos e tinham estado ali todo o tempo, bem no meio de nós. E o menino que aparece abraçado pela sua mãe presa, os olhos baixos, esse menino é um dos actores da peça. Mas foi com a alegria que chorei, com aquelas imagens de um povo em festa, a comoção de ter sido possível e ter sido tão bonito. Eu era só uma miúda, lá longe num quintal, a seguir os carreiros que as formigas enormes faziam. A primeira consciência que tive da desigualdade foi contudo ali, as meninas negras da escola perguntavam se podiam vir comigo e apanhar as mangas caídas por baixo da enorme árvore e eu abria-lhes em segredo o portão, pedindo para não fazerem muito barulho.

~CC~

terça-feira, 16 de abril de 2024

Tão belo como cruel o mundo.

 

Alentejo amado.

Lugar de tapetes alternados de flores amarelas, brancas, lilases. Terra a perder de vista.

Altas estevas nos lugares da serra, imagino perder-me entre elas, dissolver-me.

Céu imenso de azul, mais logo alaranjado e depois pleno de estrelas.

Bebo-te a beleza como um elixir de vida. Volto a sonhar com a casa branca com a chaminé grande e uma inscrição de números a condizer com o século passado. Isso tudo com a consciência cada vez mais plena de nunca vir a acontecer. 

E como a vida não é apenas um postal ilustrado nem um sonho eternamente adiado, lá estão as fileiras de oliveiras alinhadas a perder de vista, parentes distantes daquelas que um dia conhecemos como livres e dispersas na paisagem. Tão belo como cruel o mundo.

~CC~


sábado, 13 de abril de 2024

Sopra forte o vento e alto o grito dos pavões

Também ela morava no 20, outro 20.
 

Terra varrida pelo vento. Ela dizia sempre isso, que este era um lugar de vento forte.

Terra lisa de beijos e abraços, pouco a pouco se foi desertificando.

Ainda assim a segurar os laços ténues, os que sobram ou sobraram.

O elevador marcado para o terceiro andar, por hábito da mão, é assim que percebemos que o corpo também regista e ordena. Depois o cérebro corrige. E já corrigiu a curva numa certa rotunda, já não vira em automático para o bairro do quintal com cheiro de goiaba.

O grito dos pavões é aflitivo e contudo parece ter origem amorosa. Desconheço-lhes a idade, sei que a minha parece incapaz de se afligir assim por necessidade de amor, dele ainda há contudo uma inscrição, não sei se mais forte na memória do corpo, se no cérebro ou coração ou nessa junção de todas as partes, dizem que é aí o lugar do eu.

~CC~

quinta-feira, 11 de abril de 2024

Deixo-te cravos

 

Vou a caminho e comprarei cravos para te deixar. 

Havia tantos no quintal do teu pai, meu avô. É verdade que nem todos eram vermelhos, eram sobretudo mesclados de várias cores, tu acreditavas que o teu pai é que os tinha inventado com misturas de corantes e que antes dele todos eram monocromáticos. Tinhas crenças assim, não valia a pena explicar-te.

Apesar do corte radical das nossas vidas que representou esse Abril de há cinquenta anos, nunca odiaste quem o fez, bem pelo contrário. Claro que lamentavas tudo o que tinha ficado para trás mas compreendias que tinha sido algo inevitável, ainda que te custasse usar a palavra justo.

Posso deixar-te cravos vermelhos porque sabes que são meus e por isso compreenderás a escolha. 

~CC~

terça-feira, 9 de abril de 2024

Apenas e só uma

  


Regresso ao escrutínio que após um ano anterior atípico em que teve carácter praticamente trimestral voltou a ser anual. Deu tempo para a visita se fazer a um novo edifício, ainda a cheirar a novo, pareceu-me excessivamente monumental e com menos verde. Ainda assim reconheceria sempre aquelas linhas tão consonantes com as do vizinho, não obstante a sua beleza senti-o outrora como uma prisão. O aperto de mão idêntico, assim como o meio sorriso, esforço máximo que o clinico consegue, mas após sete anos já lhe perdoei tudo e sei o que posso ou não esperar. 

Acho Abril um mês de esperança e por isso é bom que se mantenha este como aquele em que a visita se faz e que seja apenas e só essa.

~CC~






domingo, 7 de abril de 2024

Tamboril de caril

 

Almocei um tamboril de caril com arroz de coentros. Coloquei a mesa como deve ser. Sentei-me tranquila e com tempo. Ainda bebi meio copo de cerveja-sidra.

Pensarão portanto que cedi por completo à insignificância do que tenho para dizer ou que estou em transição para um blogue de culinária. Quanto ao blogue de culinária, não houvesse trezentos mil e talvez me aventurasse, às vezes a família pede. A sobrinha no dia de Páscoa pediu a receita da lasanha de camarão que acho que inventei. Quanto à insignificância da minha pessoa acho que já disse tudo no post anterior.

Quero dizer-vos da importância da dignidade das pessoas que vivem sozinhas. De como a construir a cada dia. Uma das coisas mais importantes é cozinhar uma refeição completa, não ceder aos cereais, ao pão com queijo, à eterna sopa. Comprar comida, ter comida em casa, fazer comida, colocar a mesa, sentar à mesa, saborear. É verdade que às vezes não apetece e o "só para mim não vale a pena" paira ali algures na cabeça. Eu nem ligo a televisão, fico ali no meu silêncio entre cada garfada, feliz por poder demorar-me. E não acho triste o que tantos acham triste. Talvez por não acontecer sempre, talvez por pensar que se quisesse teria alternativa, talvez por não ter morado bem sozinha e ter por aqui de quando em quando duas borboletas (o A e a A) que muita companhia fazem.

Tamboril de caril com arroz de coentros, ainda pensei arranjar os morangos, mas prefiro a fruta a meio da tarde. O lanche, esse terá amigas.

~CC~




sexta-feira, 5 de abril de 2024

Uma pessoa assim assim

 

Ontem perguntei a uma estudante se podia despedir-me dela com um abraço. Invulgar em mim, desconheço-me ou simplesmente modifico-me. 

Decidiu fazer luto após meses a tentar sobreviver, manter-se à tona. Em três meses perdeu a mãe para o bicho mau. Nunca pensei respeitar alguém que desiste, eu fui treinada para a sobrevivência a todo o custo, para seguir em frente, para empurrar com a barriga. Erros, falhas, fracassos, tudo isso tentei sempre limpar do meu horizonte, batalhar até ao limite do cansaço. Mas hoje tenho consciência de que fui tão longe quanto a minha origem humilde e a precaridade da condição financeira me permitiu e vejo com nitidez mas sem lamentar aqueles que foram mais longe e são mais capazes que eu em tantas coisas no campo profissional. Nunca aprendi línguas como deve ser, nunca fui um às nas tecnologias, sempre me aborreci com referências bibliográficas e manobrei plataformas e folhas de cálculo com alguma dificuldade. Mesmo no uso da língua portuguesa, tenho limitações. Todas estas falhas eram motivos de descontentamento e auto agressão, inaceitáveis.

Mas deixei de me importar, hoje sou capaz de ir ter com uma estudante para a ouvir e lhe dar um abraço, é essa a semente que quero deixar, na certeza que tal não me colocará nunca no topo da carreira.

Vejo no espelho uma pessoa assim-assim, antes seria assustador e agora é confortável. Talvez tenha passado de uma visão anticapitalista do mundo para essa visão aplicada à minha própria condição humana.

~CC~


quarta-feira, 3 de abril de 2024

Troco campos minados por campos de nuvens ou flores

 

Quando pisamos um terreno minado, é preciso avançar com audácia e cautela. E que difícil é o equilíbrio entre os dois. Vivo muitas vezes assim. São assim os campos profissionais em que muitos de nós se movem. 

E sonho que um dia, ainda em plena terra, poderei caminhar apenas entre nuvens. Ou entre campos de flores. E que não seja demasiado tarde, que ainda possa caminhar com vontade e segurança.

~CC~